Biodireito geodireito tecnodireito

AutorNatalino Irti
Páginas23-37

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Biodireito

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O que significa, propriamente, "vida" no direito de ontem?

Uma simples duração, um intervalo de tempo entre o nascer e o morrer. O direito não era presente antes do nascimento e, tampouco, depois da morte. Os "momentos" de uma e de outra traçavam limites sagrados e invioláveis. Quando o direito tinha a necessidade de superá-los, recorria a metáforas e ficções: "conceptus pro jam nato habetur" ("o concebido se tem já por nascido"): se tem, isto é, se dá, se considera, se quer que seja no mundo jurídico. Nascer e morrer pertenciam à natureza, dados por uma realidade externa, que ao direito se impunham na sua incontroversa objetividade.

Um sentimento de mistério envolvia o início e o fim da vida: o sagrado incumbia fosse a alegria do nascimento, fosse a angústia da morte. O direito estava, em termos, marcado pela natureza, pela forças criadoras e destrutivas que se desenvolviam fora de toda vontade humana. A "in-tegralidade da vida", defendida pelas normas do direito penal e elevada a princípio da moderna civilização, ainda indica isto tudo, esta originária inteireza, que ninguém ousa violar e atingir. A "integralidade da vida", em que se respeita e reflete acerca da dignidade da pessoa, é integralidade de todo e qualquer corpo: não do meu ou do teu corpo, mas do corpo como algo indissociável e inerente a qualquer um de nós.

O direito de ontem, na sua tentativa de proteger a vida humana, tutela e defende o corpo, porque o homem é (ou é também) o seu corpo, esta coisa física e tangível, que as forças destrutivas procuram no nada. O direito assume a posição de um espectador, perante aquele que desenvolve o teatro do nascer e do morrer. Ele pode pouco ou nada: estender redes de proteção em torno ao mistério de qualquer indivíduo.

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A técnica não pára perante a vida, nem ao nascer, nem ao morrer, nem ao corpo do homem. Ela domina o mundo e transforma tudo isso que está ao nosso redor nos próprios e indefinidos objetivos. Este domínio reduz cada coisa a um simples objeto, à matéria de cálculo, de controle racional, de capacidade manipulativa. Não existe nada que não seja factível epro-duzível, não existe nada que não possa ser subtraído às sombras do mistério. A técnica rejeita o acaso e o destino, isto é, as obscuras forças às quais o homem estava submetido no nascer e no morrer.

O corpo adquire um significado diverso, assume uma nova posição no mundo. Paul Valéry, que foi um escritor muito perspicaz e implacável observador do nosso tempo, nos socorre com uma página de Variété, onde distingue três corpos: o pri-

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meiro é o-meu-corpo, a coisa presente, que nos pertence e à qual nós pertencemos; o segundo - escreve Valéry - "é aquele que é visto pelos outros e é também aquele que nós vimos, mais ou menos, em um espelho ou em um retrato"; e, por fim, tem-se o terceiro corpo, que está aí como junto das partes, feito de pedaços e recomposto à unidade apenas no pensamento. Ora, o terceiro corpo de Valéry é propriamente o corpo da técnica, que não conhece o-meu-corpo, nem a visão que outros têm dele, mas considera o corpo, o corpo de qualquer homem, como simples objeto. O corpo da técnica é a estrutura física de uma espécie biológica, que o mundo nos apresenta ao lado das outras estruturas animais e vegetais.

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A objetificação do corpo atinge o seu grau mais alto. O corpo da técnica é o corpo de ninguém: não o meu ou o teu corpo, de um ou de outro, mas o corpo em si, na sua objetiva e indiferente neutralidade. Pesquisas, resultados científicos, aplicações médicas, voltam-se para um corpo sem titular, assim como sem titulares são os produtos que saem das indústrias e as mercadorias que ainda não foram colocadas no varejo do comércio. Todas pertencem ao reino do factível, disso que o homem está em condição, ele mesmo, de manu-facere, de retirar do nada ou de colocar no nada.

Pensemos nessa extraordinária e terrível transformação! A vida, em que o homem se encontrava entre a maravilha e a angústia, entre o sentido do mistério e os medos ocultos, é agora um "manufatto", uma coisa do mundo, que ele está em condições de produzir. A palavra decisiva e essencial "produzir" ultrapassa os velhos limites até incluir a vida humana, a vida daquele homem que é, simultaneamente, produtor e produto. A impiedade da técnica se revela na sua audaciosa grandeza: retira o acaso e o destino da vida, entregando-a ao saber calculante do homem. Nascer e morrer não são mais apenas do homem, mas pertencem ao homem; não são mais um simples acontecer, mas um resultado do querer.

Acontecer e querer aparecem em uma antítese radical. A vida é retirada do reino do puro acontecer, dos eventos que o homem encontra fora de si e diante de si, e que, por isso, reinviam a outro (seja a um deus criador ou a uma lei intrínseca à espécie ou, ainda, a um destino enigmático). Não existe necessidade do "outro", pois o homem tomou a vida nas próprias mãos de artífice, colocando-a ao lado de todas as coisas por ele calculáveis e produzíveis. A sua vontade de domínio assume o lugar que, em outras épocas, tinha o acaso, o inesperado, o incompreensível. Como na vida social, o acaso - que decretava a inserção em uma ou outra classe e por isso marcava todo o caminho do singular - é circunscrito ou eliminado com medidas econômicas ou com considerada mobilidade de ofícios e funções; assim, ele é afastado da vida individual; e uma e outra vêm governadas por uma vontade calculadora.

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A vida, liberada do acaso e do destino, sai de sua originária naturalidade e, de certo modo, se torna história dos homens. Não pertence mais à natureza, a um imutável reino que o homem pode apenas observar e conhecer, mas ao processo de saber e aos objetivos do querer. Se chamamos "natureza" uma dada imagem do mundo - a imagem da fé religiosa e da tradição cristã -, então o corpo da técnica é propriamente antinatural, artificialidade do "manu-facere" que substitui o curso espontâneo das coisas. Não é sem razão que um filósofo italiano, entre os maiores do nosso tempo, Emanuele Severino, escolheu como título de um dos seus últimos livros a abstrata

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radicalidade do verbo "Nascere ”. O nascer não é, agora, um dado da natureza, evento externo, que "acontece" ao homem como lhe acontecerá, um dia ou outro, de morrer, mas um resultado técnico, uma construção querida e efetuada por nós mesmos.

E o próprio Severino refere de passagem que este fabricar e destruir a vida tem qualquer coisa de inocente. A inocência da técnica - convém esclarecer -, que dissolve o corpo do destino individual e o observa e estuda na sua objetiva nudeza, sem marcas de pecado e de corrupção. A inocência do produtor, que procura construir e destruir de modo perfeito: eu-genetica e eu-tanasia demonstram, em face do advérbio grego eu, o objetivo propriamente da técnica, o escrúpulo do fazer bem, no início e no final da vida. E o advérbio ecoa ainda na palavra "bem-estar", que é mais do que a velha e humilde "saúde": "saúde" é sair da doença ou defender-se contra a ameaça à integridade física; "bem-estar" é uma condição do ser, racionalmente calculada e tecnicamente perseguida. A saúde não é mais suficiente; é necessário o bem-estar, que em si inclui também o bem-nas-cer e o bem-morrer, o nascer são e o morrer sem sofrimento.

Fazer "bem", isto é, com perfeição técnica, retirar o homem do nada e restituí-lo ao nada. Esta é a tarefa da técnica, a qual não se pergunta (nem saberia fazê-lo e tampouco responder) sobre o que existiria atrás do nada originário e além do nada final. A técnica não pode escapar de si mesma.

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O que disso tudo faz parte do direito, na medida em que a técnica se apodera do nascer e do morrer humano? No direito, que agora está livre dos vínculos religiosos e metafísicos, tudo se resolve pela vontade impositora do homem? Basta, portanto, perguntar para dar-se conta de que a bio-técnica e o direito pertencem, ambos, ao mundo da vontade humana e são, ainda, formas de vontade de poder. É inútil que a respeito deste ponto se repita aquilo que já foi apresentado em outra lição brasileira: se a biotécnica pretende dominar a vida física do homem, o direito, por outro lado, vincula a sua vontade. Naquela, o domínio sobre o corpo; neste, o domínio sobre a vontade, a fim de que ela se oriente e escolha um determinado modo. Na posição e im-posição de normas é que se expressam as forças históricas da política, ideologias, fé e interesses, que na política se reúnem e agem.

Biotécnica e biodireito são forças da nossa época. Não existe qualquer critério superior que permita decidir entre um e outro, que - fora de um direito positivo dado e histórico - admita julgar lícitas ou ilícitas as singulares descobertas e aplicações da biotécnica. Apenas um direito não-positivo, isto é, não posto nem im-posto pela vontade humana; não criado pela história, mas revelado além e acima do tempo; apenas um direito assim estaria em condições de, uma vez por todas, estabelecer os limites entre lícito e ilícito e de dizer o sim e o não a singulares experiências da biotécnica. Mas o direito, do qual o homem moderno dispõe, em que tudo é entregue à vontade, não reconhece vínculos obrigatórios, não atribui qualificações perenes e imutáveis. Então, a relação é propriamente - como já se disse - relação entre duas forças, entre biotécnica e força político-jurí-dica.

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A força político-jurídica não pode mais permanecer restrita aos antigos limites e, tampouco, acolher, de fora, o nascer e o morrer. A juridificação do bìos é inevitável. Avida, na sua elementarfisicidade e corporeidade, exige regras, faz apelo à decisão política, ultrapassa impetuosamente os limites do direito. Não um jurista (os juristas caminham a passos pesados e len-

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tos), mas um sensibilíssimo sismógrafo da nossa época, Ernst Jünger, já em 1981 via, nas novas formas de procriação, "sintomas de uma virada do mundo", anotando:

"As leis podem apenas agir...

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