O biodireito através do prisma do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais

Autor1.Germana Oliveira de Moraes - 2. Francisco Davi Fernandes Peixoto
Cargo1. Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora associada do Curso de Mestrado do Programa de Pós 2. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista da CAPES.
Páginas102-129

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Introdução

O conhecimento do século XX foi marcado pelo sucesso da Física e das Ciências Naturais, e por isso mesmo, provavelmente, nele se registraram mais transformações no modo de vida do ser humano do que em todas as eras precedentes3.

Especificamente no domínio das ciências da saúde leciona Cecchetto que tem havido vastas e profundas transformações durante o século XX, sendo que nasPage 103últimas décadas diversas moléstias como a poliomelite, a difteria, a tuberculose e a sífilis tem, quase que totalmente, sido erradicadas.4

Presencia-se, atualmente, no alvorecer do século XXI, o fim de uma era e o início de outra. Ingressa-se na Pós-Modernidade. Isso implica um processo de destruição de modelos e ao mesmo tempo reconstrução de outros em substituição àqueles em suplantação, bem como o despertar de novos desafios, gerados pelos avanços científicos e tecnológicos. Sobressai, nestes tempos de reconstrução e de desafios inéditos, à medida que se vai delineando a consciência dos problemas relacionais gerados pelos avanços científico-tecnológicos, a grande responsabilidade dos cientistas jurídicos com o ser humano, no âmbito do Biodireito. As contínuas e rápidas transformações da realidade despertam inéditas inquietações, que cabe aos pensadores e pesquisadores do Direito arrostar, inclusive e, principalmente, para fornecer novos parâmetros de conduta.5

As novas biotecnologias e as investigações e descobertas mais recentes das ciências biológicas demandam os estudos da Bioética e de Biodireito, sob a perspectiva da teoria dos direitos fundamentais e do princípio da dignidade da pessoa humana. O ser humano volta a preocupar-se, agora através das lentes das novas descobertas tecnológicas, com questões como o início e o fim da vida – inseminação artificial, bebê de proveta, aborto, morte encefálica, doação de órgãos, eutanásia, dentre tantas outras, que não se resolvem sem o recurso às investigações filosóficas.

Nesse ponto, cumpre destacar a lição de Hobsbawm:

Você acha que há lugar para a filosofia no mundo de hoje? Claro, mas só se for baseada no atual estado de conhecimento e realização científicos [...] Os filósofos não podem isolar-se contra a ciência. Ela não apenas ampliou enormemente nossa visão da vida e do universo: também revolucionou as regras segundo as quais opera o intelecto.6

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1 Considerações acerca da bioética e do biodireito
1. 1 A biotecnol ogia e o direito: origem da bioética e do biodireito

Nada obstante, em 1971, o médico Van Rensselaer Potter tenha formulado o conceito de Bioética, destacando-a como “ciência da sobrevivência”7, somente em 1985, foi aprovada a conclusão por chefes de estados de países industrializados, segundo a qual “os valores essenciais da vida estão hoje em questão; a Bioética é mais importante do que nunca”.

Para Leo Pessini, bioética é a ciência que estuda, no campo específico das ciências da vida, a oralidade humana, estando nesta inclusa a ética médica tradicional, porém indo além desta ao considerar outros problemas éticos não levantados originalmente pelas ciências biológicas, não sendo primordialmente de ordem médica.8

Os temas decorrentes da prática da Bioética transcendem as polêmicas acerca do início e do fim da vida do ser humano, abrangendo desde a experiência com seres humanos até a defesa dos animais, sem falar da industrialização e do consumo dos alimentos transgênicos. Com efeito, escreveu Silva que a reflexão sobre a bioética “[...] congrega, sob o foco de uma concepção personalista da humanidade, desde as questões clássicas da deontologia médica até os modernos dilemas da ecologia política”.9

O próprio enfoque original da Bioética, proposto originalmente por Potter, conforme leciona Diniz10, evoluiu a ponto de hoje alcançar a microbioética, que trata dos conflitos oriundos da relação médico paciente, substituindo a ética médica tradicional, e de uma macrobioética, que trata de questões ecológicas ligadas à sobrevivência da humanidade. Mais recentemente, surge o termo Biodireito11.

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Cumpre destacar também a lição de Santos12 para quem a Bioética pode ser distinta de dois modos, em primeiro lugar em bioética de fronteira sendo a que trata da aplicação de novas técnicas biomédicas às fases nascente e terminal da vida, ao passo que a bioética cotidiana trata da tarefa de humanizar a medicina articulando os diversos fenômenos de que trata a bioética.

Ao que parece, os avanços das ciências ético-jurídicas parecem não conseguir acompanhar no mesmo ritmo o avanço da biotecnologia. O Direito, que busca regular as condutas humanas, não pode vendar seus olhos perante esta nova realidade, que se mostra cada vez mais presente no cotidiano não apenas do meio científico e acadêmico, mas do dia a dia do cidadão comum.

Os cientistas e profissionais de saúde – médicos e enfermeiros, muitas vezes enfrentam, durante o desenvolvimento de suas pesquisas e durante sua prática profissional, autênticos dilemas. Os Juízes e Tribunais, instados a decidirem sobre qual Direito se aplica a situações desse jaez, deparam-se com os denominados casos trágicos.13

Indaga-se o que vem orientando as decisões dos pesquisadores e profissionais das Ciências da Saúde, quando se deparam diante destes problemas: as determinantes de ordem moral ou as determinantes de ordem jurídica? À falta de uniformização das normas, no plano nacional e internacional e de uma orientação jurisprudencial uniforme sobre estes recentes problemas, em muitos casos, os pesquisadores e os profissionais das Ciências Médicas, em sentido amplo, guiam sua atividade mais por seus próprios preceitos morais e religiosos do que propriamente por condicionantes de ordem jurídica.

O tratamento que o Direito possa dispensar à regulação das questões da Bioética – é sabido, conecta-se também a outros valores, além do direito à vida, também consagrados nas Cortes Constitucionais, como por exemplo, os direitos à dignidade da pessoa humana, à intimidade e à liberdade. É precisamente a articulação desses direitos fundamentais o caminho a trilhar para desvendar ouPage 106construir soluções jurídicas para os difíceis casos que envolvem a Bioética e o Biodireito.

Conforme asseverou Garrafa pode-se contemplar o questionamento da manipulação da vida sob diversos enfoques, tais como o biotecnológico, político, econômico, social, jurídico e moral, de modo que cumpre ao estudo bioético abordar tal assunto contemplando todos estes enfoques e de forma multidisciplinar, em respeito à liberdade e ao pluralismo atuais.14

Urge que se desenvolvam iniciativas no sentido de aproximar os pesquisadores do direito destes temas que já batem as portas do meio jurídico nacional, e vem sendo debatidos no exterior. O Parlamento Alemão, “German Bundestag” 15 , por exemplo, está discutindo a questão do testamento vital. Em dezembro de 2004, a Ministra da Justiça Brigitte Zypries apresentou um projeto de lei que possibilitava o testamento vital inclusive em casos de pacientes em estado vegetativo, mas cuja patologia não leve inevitavelmente a morte.

Em nosso país, estão sujeitas ao exame do Supremo Tribunal Federal questões como a antecipação terapêutica de fetos anencefálicos16 e o uso de células tronco embrionárias para pesquisa e tratamento de doenças nos moldes da lei de biosegurança17, tendo sido esta objeto da primeira audiência pública18 daquele Tribunal.

Frise-se que não raro os tribunais constitucionais ou cortes supremas de diversos países são chamados a decidirem sobre estas questões bioética e biodireito19, tendo em suas mãos temas delicados, e talvez filosoficamentePage 107irrespondíveis, como por exemplo, saber quando se inicia a vida. A partir de que momento uma vida pode ser descartada quando em conflito com outra, qual seja nos casos de aborto legal ou permitido? O que deve prevalecer, a liberdade de autoderteminação ou o valor da vida humana no caso de eutanásia?

Evidencia-se, neste contexto, a importância da pesquisa em face das questões jurídicas – ainda sem solução uniforme, as quais, conforme visto acima, angustiam não apenas os operadores do direito e das ciências biológicas, como também ostentam a potencialidade de afetar a cada um de nós e à própria sociedade como um todo.

1. 2 Os princípios bioéticos

Atualmente a doutrina é controversa acerca do número de princípios que regem e orientam os estudos de bioética. Com efeito, parte da doutrina elenca como quatro os princípios20, quais sejam o da autonomia, da beneficência, da não-maleficência e o da justiça. Já a outra corrente doutrinária estabelece como apenas três, pois o princípio da não-maleficência estaria englobado pelo da beneficência.

O principialismo bioético atual é denominado doutrinariamente de personalista21, sendo baseado no Relatório Belmont de 1978. Segundo Maria Helena Diniz, “Tais princípios são racionalizações abstratas de valores que decorrem da interpretação da natureza humana e das necessidades individuais.”22

O dito Relatório Belmont buscava justamente orientar os cientistas e pesquisadores quando no desenvolvimento de experimentações que envolvessem seres humanos. Cumpre destacar que não são princípios meramente...

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