Biodireito: baliza a utilização das novas biotecnologias e resposta aos problemas bioéticos

AutorAngelita Maria Maders
CargoDefensora Pública do Estado na Comarca de Santo Ângelo/RS, Professora dos Cursos de Direito na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões e na Unijuí, Mestre em Gestão, Desenvolvimento e Cidadania pela Unijuí e Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück, Alemanha
Páginas148-167

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Introdução

A ciência, seus avanços e descobertas certamente trazem inúmeros benefícios à humanidade, embora possam ser desvirtuados e também causar diversos malefícios2, dependendo da destinação que lhe for dada, não somente pelo pesquisador, mas também por aqueles que detém o conhecimento da técnica e o poder de sua utilização. Por tudo isso, diz-se que o cientista possui grande responsabilidade em sua atividade e a sociedade pelas pesquisas que legitima.

Embora se insista em afirmar, no meio científico, que a ciência é neutra, destituída de valor, as perguntas por ela própria formuladas, as quais procura responder por meio de seus cientistas, não o são.3 Ao contrário, ela está estritamente vinculada às pessoas e a seus critérios éticos, pois feita de teorias, que representam pontos de vista sobre o mundo, os quais dependem das obsessões do cientista. A ciência impõe um certo ponto de vista, dá resultados que não são neutros e podem ser imediatamente utilizados para uma ação. O que existe na ciência é objetividade; neutralidade não, segundo Morin.4 É por isso que se teme que, no caso das novas biotecnologias, ante a inexistência de efetivo controle, esta possa ultrapassar todos os limites e fronteiras ou, até mesmo, estabelecer seus próprios métodos de controle, em detrimento daquele a quem deve servir – o ser humano.

Contra eventuais abusos que possam advir da e na utilização indevida dos novos procedimentos biotecnológicos, a dignidade da pessoa humana e o princípioPage 149responsabilidade podem ser instrumentos hábeis para, pelo menos em um primeiro momento, inibi-los, limitá-los5, o que tem sido preocupação do Biodireito.

Nesse sentido, de se destacar que a dignidade da pessoa humana ganhou, ao longo da evolução histórica da sociedade, reconhecimento como um princípio universal de direito, assim como de princípio bioético, por ser a base dos direitos fundamentais. Além disso, por carregar em si a proibição de utilização do ser humano como um instrumento ou meio para se atingir um fim6, ela passou a ter um significado de limite, de barreira contra os abusos na utilização da biotecnologia em detrimento dos seres humanos.7

Já a responsabilidade, que deve ser atribuída ao pesquisador e à sociedade em si, traduzida no princípio responsabilidade de Hans Jonas, também serve como um limitador, uma baliza frente aos potenciais abusos que possam ocorrer nas pesquisas e experimentos envolvendo seres humanos, em qualquer fase de seu desenvolvimento, e como um auxiliar na garantia da dignidade da pessoa humana.

1 A dignidade da pessoa humana como limite à utilização das novas biotecnologias em seres humanos

A dignidade da pessoa humana tem, no discurso bioético, filosófico, jurídico, médico, um grande significado, pois funciona como um princípio de conduta, como um regulador na relação entre o pesquisador e os fins das pesquisas por ele realizadas, tanto que as regras de conduta nela estão baseadas e encontram seu limite, além de por ela serem disciplinadas. Por isso, na área da ciência que trabalha com pesquisas que envolvam o corpo humano, a dignidade ganhou papel de maior relevância, tanto como em nenhum outro contexto bioético. Todavia, apesar de ela ser o princípio construtor da Bioética (valor) e do Biodireito (norma), tem-se constatado que, nas pesquisas com seres humanos, ela não se apresenta como uma solução única e matemática para os conflitos que surgem, em especial aqueles que tenham origem em medidas terapêuticas controversas. Isso éPage 150perceptível, pois todos os direitos fundamentais não são absolutos e, em determinadas situações e sob determinadas circunstâncias, podem sofrer limitações.

É claro que uma escalação valorativa deve ocorrer quando se está diante de intervenções que não tenham fins terapêuticos, por exemplo, mas visam a uma modelação, a um melhoramento genético da raça humana.

Por essa razão é afirmado, na doutrina, que é possível, em virtude de específicos fundamentos, uma ponderação ética legítima, entre a proteção da vida de um embrião em favor da preservação da vida de uma pessoa, quando se está a tratar de fins terapêuticos.

No caso específico dos embriões humanos utilizados em pesquisas científicas, o princípio da dignidade da pessoa humana não consegue, no entanto, dar uma resposta exata para todas as perguntas e dúvidas existentes, seja em virtude de problemas de conteúdo semântico, de fundamentação, de extensão, bem como de implementação. Elas permanecem em aberto, tanto que, se afirmado que embriões são pessoas ou que mereçam o mesmo tratamento dispensado a estas, não se poderia ferir seus direitos, em especial o seu direito à vida, à personalidade... para preservar, por exemplo, o direito à liberdade de pesquisa ou o direito à saúde ou à vida de terceiros.

A dignidade da pessoa humana também está fundamentalmente associada com a pesquisa e o mapeamento do genoma humano, área onde também enfrenta conflitos, pois o direito ao conhecimento, por vezes, conflita com o direito à informação, à não informação e à autonomia. Se considerada a prática do diagnóstico pré-implantacional, também se percebe a ocorrência de colisão do direito ao conhecimento dos dados genéticos com o de não se obter essa informação, direitos esses que decorrem da dignidade e da personalidade daquele ser que está sendo submetido à pesquisa e que também acabam colidindo com o direito de seus pares, ou de terceiros, seus parentes, que, com base em diagnósticos de tal natureza, podem ou poderiam evitar a transmissão de anomalias ou doenças genéticas às gerações subsequentes e, até mesmo, prevenir sua ocorrência em si próprios.

Um terceiro exemplo desse problema semântico com relação à dignidade está na possibilidade de realização do aborto em caso de um feto anencéfalo ou portador de doença genética incurável para preservar a dignidade da genitora. Nesse caso, está em conflito a dignidade, o direito à integridade psicológica e à autonomia da mãe com a dignidade e a vida do feto. Se entendido, então, que aquele embrião tem dignidade, cria -se uma contradição ética. Além disso, sé é possível o aborto em determinados casos e situações para preservar a dignidade daPage 151genitora, também não haveria como se negar o direito à pesquisa com células oriundas de embriões inviáveis; assim decidiu o Supremo Tribunal Federal na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 3.510, no ano de 2008.

Nesse caso, deve ser considerado também que, se um embrião for portador de dignidade, preservá-la colidiria com o direito de liberdade de pesquisa do cientista, que decorre do direito fundamental à liberdade.

Por óbvio, a liberdade de pesquisa não pode ferir a dignidade da pessoa humana. Então, como justificar a liberação das pesquisas com embriões inviáveis? Esta é uma pergunta para a qual, embora a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, não se tem uma resposta ética unânime e definitiva, já que a própria dignidade permite diversas interpretações e, portanto, decisões provisórias.8

Conflitos dessa ordem soam, em um primeiro momento, insolúveis, mas precisam ser superados. Se a dignidade for a única e absoluta possibilidade de comparação, não se poderia sacrificar ninguém ou nenhuma vida e ou os direitos de personalidade de alguém para, p. ex., salvar outras pessoas, pois a dignidade de cada pessoa tem o mesmo valor que a de outra, além de não ser possível sopesar a dignidade de dez ou centenas de pessoas em detrimento de uma, já que a dignidade não pode ser medida. Por isso, o simples discurso da ponderação de valores mais elevados não resolve, de forma aritmética, os problemas bioéticos.

A discussão acerca da ponderação entre a dignidade do embrião e a de terceiros no campo da saúde é outro ponto de discórdia, pois a saúde é um bem primário, um pressuposto para a realização plena da vida, de uma vida com dignidade. Por outro lado, as doenças são resultado de uma “loteria” natural. Nesse contexto e por amor ao debate, é de se perguntar a quanto e a que espécie de avanço na área da medicina tem o paciente direito? Quanta dor deve uma pessoa doente suportar e quanto tempo ela deve esperar pela cura de sua doença? Qual a dignidade que possui a existência de uma pessoa que não tem qualidade de vida emPage 152decorrência da dor e da fragilidade que seu corpo está acometido pela doença tida como incurável? O que deve preponderar: a inviolabilidade, a integridade de embriões congelados há longa data, abandonados em laboratórios, considerados inviáveis para a reprodução humana e tidos como temerários para tal finalidade, ou a saúde e a vida que se pode preservar com a descoberta de cura para doenças em razão de pesquisas com células-tronco embrionárias? A experimentação de novas técnicas terapêuticas com o consentimento livre e informado do paciente ou a proibição de sua utilização até a certeza dos resultados?

Aqui também cabe questionar se do direito do indivíduo à saúde não se pode extrair o dever da ciência, da medicina e do próprio Estado, de encontrar a cura para essas doenças, investindo mais em pesquisas, pois a saúde é dever do Estado (art. 196 CF), inclusive com o fornecimento de um mínimo de condições de vida digna a seus cidadãos, sejam eles saudáveis ou portadores de alguma anomalia, por ser este um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Nesse passo, deve-se ter em mente que a vida, como bem fundamental do ser humano, deve estar acompanhada da dignidade, tanto que para Honnefelder, a dignidade humana pode ser entendida como aquela dignidade inerente a cada pessoa enquanto indivíduo, como a dignidade própria da natureza do gênero humano ou como uma vida humanamente digna. “No...

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