Biocombustíveis na busca de alternativas para a agricultura familiar:ações e expectativas da Cooperbio no noroeste riograndense

AutorHoyêdo Nunes Lins - Rinald Bassi
CargoÇProfessor do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Economia da UFSC. - Graduado em Ciências Econômicas e Mestrando em Economia na UFSC.
Páginas123-149

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Hoyêdo Nunes Lins1

Rinald Boassi2

1. Intrudução

A agricultura familiar padece de grandes diiculdades no Brasil, apesar da sua importância na produção de alimentos. A recente investida nacional em

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biocombustíveis, estimulada pelas atuais condições de produção e oferta de combustíveis fósseis e suas implicações (A brighter..., 2001), estaria a acenar positivamente para esse segmento do mundo rural. Tal aceno exibe amparo institucional, como ilustrado pelo Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), em particular o Selo Combustível Social, atribuído aos produtores de biodiesel que adquirem matériaprima desses agricultores.

Embora a aposta nos biocombustíveis pareça promissora para a agricultura familiar, na percepção dos movimentos sociais rurais, benefícios efetivos só virão por medidas de suas próprias organizações, em nível local. Essa questão é o objeto deste artigo, que aborda uma experiência de organização cooperativa que pretende envolver famílias de agricultores na economia dos biocombustíveis: a Cooperativa Mista de Produção, Industrialização e Comercialização de Biocombustíveis do Brasil Ltda. (COOPERBIO), criada em 2005 por pequenos agricultores ligados ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

Inicialmente caracterizase a produção de biocombustíveis, destacando o espaço da pequena agricultora. Em seguida, após descrever a área de atuação da COOPERBIO, apresentamse, com base em pesquisa direta, as iniciativas realizadas pela cooperativa até o período da pesquisa. Posteriormente discutemse o sentido e as possibilidades da iniciativa, considerando as problemáticas da agricultura familiar e do desenvolvimento em nível local.

2. Produção de biocombustíveis: o espaço da agricultura familiar

O Brasil se destaca pela alta presença de fontes renováveis na sua oferta interna de energia. Em 2004, essas fontes não superavam 13,2% e 6,1% da oferta de energia no mundo e nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, respectivamente, mas no Brasil alcançavam 44,5% em 2005 (Brasil, 2007). Essa presença exibe uma composição equilibrada de três modos de geração: energia hidráulica e eletricidade (14,8%), lenha e carvão vegetal (13%) e produtos da canadeaçúcar (13,8%), a terceira com rápida expansão recente.

É neste quadro que se insere o atual esforço do país para produzir biocombustíveis (sobretudo o biodiesel e o álcool combustível, ou etanol): um

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uso de fontes renováveis já comparativamente alto, mas com grande margem para ampliação. Isso é merecedor de realce em face das ameaças ambientais incrustadas no modelo energético prevalecente no planeta. Mas também por questões socioeconômicas se justiica a ênfase nos biocombustíveis, pois suas cadeias produtivas permitem envolver contingentes rurais com acenos positivos em termos de trabalho e renda. É difícil recusar o apelo que isso representa, sobretudo perante as diiculdades da pequena agricultura.

Como se apresentam as cadeias produtivas do biodiesel e do álcool, e qual o espaço possível para os pequenos agricultores?

A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) caracteriza o biodiesel como “combustível para motores a combustão interna com ignição por compressão, renovável e biodegradável, derivado de óleos vegetais ou de gorduras animais, que possa substituir parcial ou totalmente o óleo diesel de origem fóssil” (Medida..., 2004). Sua participação em misturas com o último, prevista na Resolução nº 42, de 24/11/2004, do Ministério de Minas e Energia (Resolução..., 2004), é indicada pela notação Bx (por exemplo, B100 signiicaria biodiesel puro). Já o álcool apresentase como álcool hidratado, de uso direto, e como álcool anidro, incorporado como aditivo à gasolina. A diferença referese à concentração, mostrada pelo grau GL (GayLussac): é hidratado o álcool com 96 GL (quer dizer, 96% de álcool e 4% de água); é anidro o álcool com 99,5 GL.

Os óleos que dão origem ao biodiesel podem ter origem vegetal, animal ou residual. Os primeiros provêm de diferentes fontes oleaginosas; os segundos associamse, por exemplo, à gordura de suínos e bovinos e ao óleo de peixe; e os terceiros são obtidos de diferentes resíduos humanos e industriais. A maior possibilidade de participação da agricultura familiar reside na produção de matériaprima vegetal, cabendo assinalar que as culturas fornecedoras de óleos e gorduras são perenes e temporárias, com rendimento diferenciado conforme o tipo de oleaginosa e a região de cultivo.

No Brasil, a matériaprima básica para o álcool é a canadeaçúcar, embora vegetais como beterraba, milho e mandioca também possam ter uso. A canadeaçúcar permite vantagens ao país perante outras nações produtoras (Andreoli; Souza, 2006). Isso é verdadeiro, por exemplo, quando se compara o rendimento da canadeaçúcar ao do milho, matériaprima dominante nos Estados Unidos, segundo maior produtor de álcool combustível.

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Mas não é só produzindo matériaprima que a agricultura familiar tem espaço. Sob certas condições, também no processo de produção do combustível existem possibilidades.

A produção de biodiesel implica converter o óleo vegetal pela separação da glicerina. Um processo para tanto é a transesteriicação, uma reação de óleos e gorduras (triglicerídeos) com álcoois (metanol ou etanol) envolvendo um catalisador. O outro é craqueamento catalítico ou térmico, em que há quebra de moléculas pelo intenso aquecimento. No Brasil, a transesteriicação é o processo mais utilizado devido ao menor custo permitido pelo emprego de etanol. Quanto ao álcool, sua produção a partir da canadeaçúcar envolve fermentar o caldo, obtido via moagem, e destilar. Ao lado do produto inal, esse processo gera coprodutos na forma de torta, bagaço e vinhoto, utilizáveis na propriedade agrícola.

O envolvimento de pequenos agricultores na obtenção de biocombustíveis depende dos “modelos de produção” utilizados. Sobre o biodiesel, vale observar que a produção de óleo combustível é parte do processo gerador do primeiro. São dois os modelos de produção desse combustível. Um tem pequena escala, destinandose à “produção independente de combustível, de forma autosustentável, para uso em máquinas agrícolas ou em motores diesel para a geração de energia”. (UnB, s/d). Sem envolver transesteriicação, e sim craqueamento por microusinas de bioóleo, tal modelo autoriza pulverização de pequenos estabelecimentos, com comercialização local. O outro modelo tem escala industrial, podendo atingir capacidade (com transesteriicação) de 60 mil litros diários, equivalentes a 20 milhões de litros anuais. Pelos custos, sequer os minisistemas (sem falar do modelo industrial) podem ser implantados em pequenas propriedades individuais, sendo necessário o envolvimento cooperativo e numeroso de agricultores. Em regra, a participação dos pequenos agricultores vai só até a obtenção do óleo vegetal bruto, que é depois transportado para uma usina central de reino.

Também na produção de álcool coexistem modelos de distintas escalas, de grandes usinas a microdestilarias. A grande escala, com elevadas necessidades de área e investimento, é a base do abastecimento nacional. Estimativa feita no âmbito do BNDES (Ampliação..., 2003) indica que uma usina para 450 mil litros diários de álcool anidro exigiria, com rendimento de 80 litros por tonelada de cana e produtividade média de 76 toneladas de

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cana por hectare, cerca de 13 mil hectares de área de corte anualmente. A operação de uma tal usina requereria um investimento industrial de R$ 80 a R$ 110 milhões e investimentos agrícolas na faixa de R$ 40 milhões. Assim, o modelo de produção de álcool capaz de envolver pequenos agricultores restringese às microdestilarias.

3. O contexto regional da cooperbio: algunas notaso

A Cooperativa Mista de Produção, Industrialização e Comercialização de Biocombustíveis do Brasil Ltda. (COOPERBIO) atua em área que abrange 61 municípios da mesorregião noroeste do Rio Grande do Sul e com cerca de 467 mil habitantes no Censo de 2000, quase metade vivendo na zona rural. Quase todos os municípios se distribuem nas microrregiões de Frederico Westphalen (26 municípios), Três Passos (15) e Carazinho (13), pertencendo os restantes às microrregiões de Ijui (4), Passo Fundo (2) e Erechim (1).

Na divisão do estado em Conselhos Regionais de Desenvolvimento Econômico e Social (COREDE), quase todos os municípios estão no COREDE Médio Alto Uruguai (sendo Frederico Westphalen o município mais populoso), no COREDE Produção (destacandose Passo Fundo, seguido de Carazinho) e no COREDE Noroeste Colonial (sobressaindo Ijui e depois Panambi). Esses Conselhos formam área heterogênea em termos socioeconômicos. Enquanto no COREDE Produção o setor industrial tem forte presença na estrutura do Valor Adicionado Bruto (VAB), no COREDE Médio Alto Uruguai é a agricultura que marca presença. E a participação nos totais gaúchos de Produto Interno Bruto (PIB) e população é bem distinta: o COREDE Produção representa não muito menos que o dobro do COREDE Noroeste Colonial e o triplo ou mais do COREDE Médio Alto Uruguai (Tabela 1).

Essa área integra a grande região norte do estado gaúcho na regionalização tripartite usada por Bandeira (2003), um território com “predomínio da pequena e média propriedade; região heterogênea, onde uma produção inicialmente muito diversiicada cedeu espaço, nas últimas décadas, em...

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