Bioética e discriminação eugênica

Autor1. Angelita Maria Maders - 2. Isabel Cristina Brettas Duarte
Cargo1. Defensora Pública do Estado na Comarca de Santo Ângelo/RS, Mestre em Gestão, Desenvolvimento e Cidadania - 2. Mestranda em Direito e acadêmica do curso de Letras-Espanhol pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai.
Páginas111-130

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Considerações iniciais

O desenvolvimento da biotecnologia está indissociavelmente atrelado à evolução da sociedade multicultural. A importância do assunto e o quanto ele carece de reflexão ética acerca dos seus limites, especialmente quanto à temática da possibilidade de discriminação genética em decorrência dos avanços biotecnológicos é principalmente sentida quando se está a tratar da manipulação genética em seres humanos.

A questão da discriminação em decorrência dos avanços da biotecnologia, objeto do presente artigo, precisa ser analisada com cautela por todos os segmentos sociais para que a legislação vigente seja interpretada de modo a tratar a pessoa com o respeito que merece. Nesse contexto, o Direito é chamado a fazer frente às novas necessidades e expectativas sociais, pois o sistema jurídico enquanto instituição, detém poder para trazer mudanças que venham a atender osPage 112novos anseios e interesses das sociedades. Seus instrumentos são hoje, no entanto, por si só, incapazes de dar respostas e apresentar soluções imediatas para os novos questionamentos da sociedade. Isso é facilmente perceptível em se tratando dos avanços da biotecnologia, onde impera um misto de fascinação e perplexidade em relação ao desconhecido.3

É sabido que uma das facetas da modernidade é a ciência, que, assim como a tecnologia, já trouxe muitas desilusões à humanidade. Nas palavras de Ulrich Beck, duas guerras mundiais, a invenção de armas com poder altamente destrutivos, a crise ecológica global e outros desenvolvimentos do presente século poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores do progresso por meio da investigação científica desenfreada. Mas a ciência pode – e deve – ser encarada como problemática nos termos de suas premissas.4

Por isso se diz que uma das facetas da modernização – e portanto da globalização – é o desenvolvimento científico e tecnológico, o qual aumenta a chamada complexidade. Nesse sentido afirma Edgar Morin que “a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente complexa. A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento para considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua própria complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade”.5

É nesse sentido que não se pode esquecer jamais que “o conhecimento científico é feito por pessoas e para pessoas”6, e que o caminho histórico da ciência tem mostrado que cada novo resultado não coloca qualquer ponto final em seu avanço. Ao contrário, abre novas fronteiras, pois “a ciência, em vista de sua marcante dubiedade, de um lado, mas sobretudo por conta da própria contradição performativa, de outro, precisa ser conduzida com rédea curta. Uma das formas para se fazer isso é dar o devido lugar – sempre criticamente – a outros saberes e trabalhar com afinco os limites do conhecimento”.7

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Por essas razões, o objetivo do presente estudo é analisar as conseqüências dos avanços biotecnológicos no que tange às possibilidades de discriminação entre os seres humanos, cuja vida resta comprovada pelo nascimento, sejam eles fruto de fertilização artificial ou não.

1 O papel da bioética

Historicamente, a Bioética nasceu como uma resposta da cultura contemporânea às implicações morais da tecnociência, podendo ser considerada sob o aspecto dos movimentos culturais e sociais, surgidos nas sociedades democráticas e pluralistas do Ocidente, tendo-se espalhado, desde então, aos quatro cantos do planeta8.

Pela Encyclopedia of Bioethics de 1978, o verbete Bioética é entendido como o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde. É aceito o início da utilização da terminologia Bioética no ano de 1971 com a publicação da obra Bioethics - a bridge to the future do oncologista norte-americano Van Ressealer Potter, em que ele propunha a necessidade de uma relação de equilíbrio entre os seres humanos e o ecossistema como condição para manutenção da vida no planeta.9

A tese original da reflexão bioética, enquanto “ponte para o futuro”, é que é impossível separar os valores éticos (ethics values) dos fatos biológicos (biological facts). Daí a explicação para a composição grega do neologismo: “bio”, que representa a ciência dos sistemas viventes, e “ethike”, o conhecimento dos sistemas de valores humanos.10 Mas a ética nunca foi um código de normas. Ela é antes de tudo “uma concepção de vida, um estilo, um modo de existir do homem, um horizonte que exprime o sentido, o rumo que procuramos traçar para a história humana e cósmica”.11

Por meio da Bioética pode-se chegar a consensos mínimos e provisórios, mas suficientes para resolver problemas atuais que afligem as comunidades humanas, sendo que ela pode ser “um novo marco para a renovação dos estudos éticos, conferindo-lhes mais concretude, mais mordência sobre a realidade da vida, sem abstrair das profundas raízes filosóficas, religiosas, políticas e jurídicas. Numa palavra, a Bioética pode representar um excelente ponto de encontro entre teorias e práticas cotidianas”.12

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Para Élio Sgreccia, a Bioética tem como objetivo indicar os limites e as finalidades da intervenção do homem sobre a vida, identificar os valores de referência racionalmente proponíveis, denunciar os riscos das possíveis explicações. Trata-se “de assegurar um dos resultados mais trabalhosos e difíceis do caminho da civilização, isto é, a harmonia entre o progresso de caráter cognitivo e técnico e aquele de ordem moral e cultural”.13

É preciso pensar tais valores éticos, já que a ciência não pode se pensar. Com os métodos de que dispõe hoje em dia, e mesmo levando em consideração uma técnica utilizada com fins legítimos, toda ação humana, a partir do momento em que é iniciada, escapa das mãos de seu iniciador e entra em jogo das interações múltiplas próprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e às vezes lhe são um sentido oposto ao que era visado, de forma que “a consciência da inconsciência não nos dá a consciência, mas pode nos preparar para ela”14

Os avanços na área da ciência e da tecnologia precisam “promover uma cidadania ativa e uma democracia de alta intensidade, que não podem prescindir do envolvimento ativo com a ciência, o conhecimento e a tecnologia”15, pois a produção científica tem um profundo sentido social. Como refere Morin, “a objetividade científica não exclui a mente humana, o sujeito individual, a cultura, a sociedade: ela os mobiliza. E a objetividade se fundamenta na mobilização ininterrupta da mente humana, de seus poderes construtivos, de fermentos socioculturais e de fermentos históricos”.16

Apesar de todas as vicissitudes da história humana, nunca houve nada que pudesse representar um caminho tão dicotômico como a manipulação genética, que causa fascinação e perplexidade. Porém, a principal preocupação hoje não é a de minimizar ou julgar a ciência, mas sim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobre os novos contornos que se desenham na manipulação genética, cujos questionamentos eram até pouco tempo inimagináveis. Daí a razão para Morin afirmar que “a ciência é complexa porque é inseparável de seu contexto histórico e social. A ciência não é científica. Sua realidade é multidimensional. Os efeitos da ciência não são simples nem para o melhor, nem para o pior. Eles são profundamente ambivalentes”.17

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Já houve bastante desencantamento com os rumos da tecnologia, principalmente com sua utilização na Segunda Guerra Mundial, quando se tornou um poder tecnológico onipotente, utópico e de efeitos perversos, com possibilidades de transformações aleatórias do homem e da natureza. Isso implica a necessidade de estabelecer novos imperativos para o agir tecnológico, que atendam aos novos espaços de ação e de poder, principalmente no que tange ao uso responsável da tecnologia.18

É nesse contexto que as potencialidades tecnológicas, que tanto podem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocar conseqüências imprevisíveis no futuro, além do temor expressado por Morin: “pressentimos que a engenharia genética tanto pode industrializar a vida como biologizar a indústria”.19Destarte surge a necessidade de se refletir sobre as possibilidades de discriminação eugênica decorrentes dos avanços da biotecnologia.

2 A discriminação eugênica

Os estudos sobre o genoma humano e as pesquisas com embriões representam esperança para detecção, prevenção e tratamento de diversas enfermidades, cujo custo econômico e social é incalculável20, e, por isso, constituem um novo marco de referência para tutelar os direitos humanos. Por outro lado, demonstram a vulnerabilidade humana ante as possibilidades de interferências no âmbito da vida social e privada. Os riscos que a informação genética representam para as liberdades fundamentais e para os direitos de personalidade são objeto de acirradas discussões, as quais têm por base o princípio da dignidade humana e da não-discriminação.

A investigação genética permite antecipar a probabilidade de desenvolvimento de uma enfermidade em determinada pessoa, mas o uso dessa informação por parte da sociedade abre portas não somente positivas, como é o caso da identificação, prevenção e cura de doenças hereditárias, mas também de cunho negativo, ou seja, a discriminação genética, cuja vedação está contida na expressão constitucional “quaisquer outras formas de discriminação” (arts. 3º, IV e 5º, XLI, CF).21

Dentre os avanços tecnocientíficos, o deciframento do DNA dá lugar ao conhecimento de características do organismo até então desconhecidas, além da descoberta de novas terapias. No entanto, a posse da informação genética evidenciaPage 116o perigo de discriminações genéticas a partir da fase embrional, uma vez que, através dela, pode-se identificar plenamente a pessoa e as patologias que...

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