Bioética e direitos humanos: delineando um biodireito mínimo universal

AutorLetícia Ludwig Möller
Páginas72-93

Letícia Ludwig Möller Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência (LAPEBEC) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA/UFRGS. Doutoranda em Sistemas Jurídicos e Político-Sociais Comparados da Università del Salento/Itália. Mestre em Direito pela UNISINOS.

Page 73

1 Bioética, direito e biodireito: traçando limites à ciência

O último século1 foi marcado por descobertas e inovações científicas sem precedentes na História, retirando a ciência de uma esfera de interesse mais restrito e erigindo-a a fator importante e cada vez mais presente e decisivo na vida quotidiana2. Particularmente com relação aos avanços científicos e tecnológicos desenvolvidos mirando-se sua aplicação à saúde humana, podemos hoje constatar a extensão e a relevância dos benefícios alcançados e o significativo salto de qualidade que propiciaram. Os novos fármacos, mais pontuais e eficazes, e as diversas terapias, aparelhos e procedimentos médicos disponíveis, tornam possível o melhor combate às doenças, o alívio da dor, o aumento da expectativa de vida. O mapeamento do genoma humano e o desenvolvimento da engenharia genética propiciam, dentre outros avanços, o estudo e oPage 74 aprimoramento da chamada terapia gênica, procedimento que promete curar graves moléstias, a exemplo dos cânceres3-4.

Por outro lado, os rumos que passam a tomar certas pesquisas e os possíveis usos dos resultados das descobertas, especialmente em sede de engenharia genética, geram o temor de que valores que cultivamos e consideramos fundamentais sejam fortemente violados por certas práticas, a exemplo do que poderia verificar-se com manipulações no genoma humano sem fins terapêuticos, o uso de nossos dados genéticos para fins escusos, o risco de prática de uma postura eugênica discriminatória.

A bioética surge neste cenário, que veio delineando-se de modo particular a partir do segundo pós-guerra, com a terrível descoberta de que experimentos genéticos de finalidade eugênica eram realizados em campos de concentração nazistas; e ao longo das décadas posteriores, com o desenvolvimento de inúmeras novas possibilidades de intervenção no organismo humano. A preocupação ética com as possíveis aplicações dos novos conhecimentos científicos e biotecnológicos à saúde humana (também ao ecossistema), bem como com aquilo que já vinha sendo feito sem a existência de regulação e controles, fez nascer um novo campo de estudo destinado à reflexão e discussão interdisciplinar acerca de questões delicadas e complexas tais como as que envolvem o início e o fim da vida, a doença, a relação médico-paciente, a realização de pesquisas com seres humanos, a manipulação genética. Neste sentido, a bioética buscou e segue buscando estabelecer princípios e parâmetros que possam servir como diretrizes para a realização de pesquisas e experimentos e o uso dos seus resultados, as políticas públicas dePage 75 assistência à saúde, as tomadas de decisão nos casos concretos e a elaboração de normativas nacionais e internacionais sobre aqueles temas.

A pretensão de auto-referencialidade muitas vezes demonstrada pela ciência, ao longo dos anos, passa a deparar-se com um “freio” posto pela ética, pela bioética, e também pelo direito. Estes âmbitos de reflexão, valoração e regulação normativa iniciam, assim, a traçar certos limites às realizações da ciência, a seus procedimentos e a suas aplicações.

O direito, compreendido como fenômeno social, cultural e histórico, não pode se manter à margem dos problemas práticos – morais e políticos – que afetam a sociedade5; ainda que, entendemos, deva buscar um equilíbrio entre uma perigosa postura de laissez-faire, de um lado, e uma postura que poderíamos chamar de abuso normativo (o “tudo regular”, com escasso espaço para o exercício de liberdades), de outro6-7.

O campo do direito, conjugando normatização e coerção, passa a buscar responder ao andar acelerado das ciências da saúde e das biotecnologias e trazer maior segurança jurídica. Recebendo a influência das discussões iniciadas no âmbito da bioética, o direito vem refletindo acerca do estabelecimento de limites jurídicos às práticas biomédicas e dando início à suaPage 76 regulamentação – seja no interior dos ordenamentos jurídicos nacionais, na forma de legislações sobre temas específicos; seja no plano internacional, por meio de declarações que incorporam valores partilhados por diferentes culturas e sociedades nacionais. Ao que vem sendo considerado como um novo campo do direito, próprio do estudo e da normatização das questões bioéticas, convencionou-se chamar de biodireito.

Todavia, não são poucas as dificuldades que envolvem a normatização jurídica das questões bioéticas. Basta que se pense no impasse entre a pretensão de estabilidade e duração no tempo das normas jurídicas e o ritmo acelerado com que acontecem os avanços científicos e biotecnológicos; na dificuldade de legislar-se sobre temas novos, complexos e ainda muito controversos, e onde cada caso concreto é com freqüência permeado de inúmeras nuances e particularidades; e no problema de elaborar-se legislações de modo apressado e irresponsável, sem antes se proceder a um amplo debate público envolvendo os diversos setores da sociedade nacional ou de uma pluralidade de sociedades, onde sejam pensados e discutidos os benefícios e os riscos envolvendo as novas práticas, avaliados com base na cultura e nos valores éticos compartilhados pela(s) sociedade(s) e por esta(s) considerados fundamentais.

Assim, pode-se perceber a importância de buscar-se critérios baseados na ética, em valores e princípios os mais genéricos (“atemporais”) possíveis, que possam servir de parâmetro a orientar o necessário debate público, a elaboração de legislações nacionais e declarações internacionais específicas e as tomadas de decisões nos casos concretos. Indispensável pensar-se o direito como estreitamente vinculado ao âmbito da ética, para que se possa formular um biodireito fundado em princípios éticos gerais que o legitimem8.

Page 77

De fato, a conexão entre direito e ética mostra-se extremamente necessária – o que, certamente, não leva à afirmação de sua equivalência9. São as reflexões, análises e discussões realizadas no campo da ética – posturas críticas, contrárias a posicionamentos dogmáticos e absolutos – que se constituem em condições prévias para a elaboração e justificação racional de um ordenamento jurídico, e que permitem ao direito modificar-se, aperfeiçoar-se, de acordo com o contexto histórico, cultural e social em que se encontre10.

A partir do contexto do segundo pós-guerra, com a supressão de direitos dos regimes totalitários, evidencia-se a fragilidade de uma concepção do Direito meramente formalista na proteção dos indivíduos de violações e atentados à sua dignidade. O positivismo jurídico, contentando-se com a validade formal das normas11 e caracterizando-se pela separação rigorosa entre os âmbitos do direito e da ética, coloca o direito em posição distanciada dos valores partilhados pelos contextos sociais determinados, em busca de sua pureza metodológica e dos ideais de objetividade e exatidão12.

Percebe-se a necessidade de uma maior proteção dos seres humanos, de modo a evitar que se repitam as barbáries presenciadas, atos atentatórios não só à dignidade de indivíduos ou grupos isolados, mas da humanidade como um todo. Neste sentido, torna-se premente resgatar aPage 78 dimensão valorativa do direito13 e recuperar o debate acerca da possibilidade de elaboração de normas jurídicas que pudessem refletir valores éticos14. De tal modo, valores antes restritos à esfera da ética passam a ser incorporados ao âmbito jurídico: tanto à esfera internacional, pela categoria dos direitos humanos, estes comumente expressos em declarações de direitos e tratados firmados por determinadas sociedades nacionais, mas a eles não restritos; como ao âmbito nacional, pelo direito positivo, na forma de princípios constitucionais e direitos fundamentais elaborados sobretudo em torno do valor da dignidade humana15.

Aqui, objetivamos enfocar a categoria dos direitos humanos e sua relação com a bioética, analisando de que maneira o ressurgimento da discussão em torno desta categoria de direitos básicos, e da necessidade de sua observância e proteção para além dos ordenamentos das sociedades nacionais, conecta-se e mostra-se de grande relevância às reflexões bioéticas, estas preocupadas com os avanços biotecnológicos e suas conseqüências sobre os seres humanos atuais e sobre as futuras gerações.

2 Direitos humanos e “Universalismo pluralista” ou mínimo

A preocupação com o rumo de pesquisas, com o uso dos novos conhecimentos e com os seus efeitos não apenas sobre os seres humanos atuais mas sobre a espécie humana e as futuras gerações, encontra respaldo na categoria dos direitos humanos, na medida em que esta vemPage 79 elaborada em torno da idéia de necessidade de proteção e promoção daqueles valores e direitos considerados mais básicos para a vida digna dos seres humanos16.

É com a revalorização da idéia de direitos humanos a partir da metade do século XX, logo após a brutalidade da segunda grande guerra e a barbárie do totalitarismo, em especial do regime nazista, que se verifica uma reviravolta no papel dos indivíduos na cena internacional. Conforme o jurista italiano Antonio Cassese, do século XVII até o início do século XX as relações no âmbito internacional davam-se essencialmente entre entidades de governo, mediante acordos bilaterais ou em alguns casos multilaterais, vigorando um peculiar princípio de reciprocidade – no sentido de garantir-se recíprocas vantagens aos contraentes. Neste cenário, povos e indivíduos não possuíam peso algum. Tal situação começou a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT