Between Freedom and Culture: How should the State treat Indigenous Peoples?/ Entre Liberdade e Cultura: Como o Estado deve tratar os Povos Indigenas?

AutorFernandes Sa, Adalberto, Jr.

1 Introducao (1)

Como o Estado deve tratar os povos indigenas (2), se todos os cidadaos sao dignos de igual consideracao e respeito? Esta questao pode ser dividida em tres perguntas parciais, as quais, se respondidas em sequencia, podem fornecer uma proposta normativa sobre como devem ser estas relacoes: a) O respeito as culturas dos povos indigenas e uma condicao necessaria para o respeito aos seus proprios membros enquanto seres humanos? b) Como o Estado deve garantir o igual respeito as culturas destes povos? A previsao de uma carta a maior possivel e igual para todos de direitos individuais, civis e politicos, se mostra suficiente ou se faz necessario complementa-la com direitos coletivos, como o direito a autodeterminacao? c) Por fim, estes direitos devem ser limitados por direitos individuais?

Para responder a estes questionamentos, iremos analisar tres propostas distintas do multiculturalismo (3): o liberalismo substantivo de Charles Taylor (1994), comunitarista (4), o qual defende ser possivel conciliar a preservacao de uma cultura com a garantia dos direitos individuais, sendo necessario diferenciar, no entanto, estes direitos de simples prerrogativas e imunidades; a teoria dos direitos das minorias de Will Kymlicka (1995), liberal (5), o qual afirma que os direitos individuais sao compativeis com os direitos coletivos das minorias culturais somente quando estes visam promover protecoes externas e nao restricoes internas; e o constitucionalismo consuetudinario de James Tully (1997), pos-colonial (6), para quem uma associacao politica justa deve ser o resultado de um dialogo continuo entre as diversas culturas, mediado pelas convencoes do mutuo reconhecimento, do consentimento e da continuidade.

Concordamos com os modelos propostos, quando afirmam ser o respeito as culturas dos povos indigenas uma condicao necessaria para o respeito aos proprios individuos que os integram. A identidade individual e dialogicamente construida por meio de relacoes de reconhecimento estabelecidas com a comunidade. Logo, a cultura de origem e um bem primario a que todos esperam ter acesso. Concordamos tambem, quando asseveram ser necessario complementar os direitos individuais com direitos coletivos especificos para estes povos, como o direito a autodeterminacao, de forma que seja corrigida a desigualdade a favor da sociedade majoritaria que invariavelmente sera criada pelo Estado, por ser impossivel o cumprimento do principio da neutralidade frente a cultura. No entanto, discordamos de todos os modelos propostos, quando eles limitam estes direitos coletivos ao respeito aos direitos individuais. Charles Taylor (1994) nao admite, em nenhum caso, a prevalencia do direito coletivo a autodeterminacao sobre os direitos individuais. Kymlicka (1995) afirma que os direitos coletivos dos povos indigenas so devem ser fomentados quando o seu objetivo for a protecao da comunidade de interferencias externas e nao quando forem utilizados para restringir a liberdade dos seus membros. Tully (1997) assevera que as tres convencoes por ele assinaladas tambem devem regular o dialogo entre os individuos. Todos eles acabam por exigir, de uma maneira ou de outra, a aceitacao dos valores liberais pelos povos indigenas para que eles sejam protegidos da sociedade majoritaria. Estes modelos, portanto, violam o principio da igualdade, na medida em que consideram a cultura da sociedade majoritaria como superior as culturas dos povos indigenas, tratando-as de maneira discriminatoria; assim como o principio da equidade, uma vez que esta limitacao nao se deu mediante o consentimento destes povos; como tambem o principio da integridade, tendo em vista que os valores liberais podem nao ter ancoragem na tradicao historica destes povos.

Chegamos a conclusao de que o Estado deve prever, alem da tradicional carta de direitos individuais civis e politicos, o direito a autodeterminacao para os povos indigenas. Por outro lado, o dialogo continuo entre eles e a sociedade majoritaria deve ser mediado pelas convencoes do mutuo reconhecimento, do consentimento e da continuidade. Por fim, o direito a autodeterminacao nao deve ser limitado, pelo menos a primeira vista, por direitos individuais. Sao os direitos individuais que devem ser interpretados levando-se em consideracao a tradicao cultural dos povos indigenas, para que eles nao sirvam como uma nova forma de interferencia externa da sociedade majoritaria na organizacao interna destes povos.

Segundo a Fundacao Nacional do Indio (FUNAI) (2017), com base em dados do censo demografico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) em 2010, a populacao indigena brasileira e de 817.963 indigenas (o que corresponde a apenas 0,44% da populacao brasileira), dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180, nas zonas urbanas, espalhados por todos os Estados da Federacao. Ha tambem o registro de 69 referencias de indigenas nao contatados, alem de grupos em busca de reconhecimento da sua condicao de indigena junto ao orgao federal supracitado. Sao 305 povos indigenas, falantes de 274 linguas diferentes (17,5% da populacao indigena nao fala portugues).

Para a protecao dos povos indigenas, a Constituicao do Brasil (1988) previu, alem do catalogo de direitos fundamentais do artigo 5.[degrees] e seguintes, garantido a todos os cidadaos, direitos coletivos especificos para estes povos como os elencados pelo artigo 231 (7), no que foi acompanhada por diversas Constituicoes latinoamericanas (8). No entanto, a questao a respeito de qual direito deve prevalecer em caso de conflito, o coletivo ou o individual, ainda se apresenta como um problema a ser resolvido. A Convencao n.o 169 da Organizacao Internacional do Trabalho sobre povos indigenas e tribais (OIT, 1989), ratificada pelo Brasil em 2002, apenas determina, em seu artigo 8.[degrees], que os povos indigenas tem o direito de manter seus costumes e instituicoes, sempre quando forem compativeis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema legal nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, devendo ser estabelecidos procedimentos, sempre que necessario, para resolver os conflitos que possam vir a surgir quando da aplicacao deste artigo.

A controversia tornou-se premente no Brasil com a proposicao do projeto de lei n.o 1.057/07, mais conhecido como Lei Muwaji, por parte do Deputado Federal Henrique Afonso do Estado do Acre, a epoca filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT) e atualmente ao Partido Verde (PV). O referido projeto, em consonancia com o artigo 8.[degrees] da Convencao n.o 169 da OIT, estabelece que determinadas praticas tradicionais dos povos indigenas que supostamente violam o direito a vida e a integridade fisica e psiquica de criancas devem ser erradicadas, prevendo para tanto, nao apenas politicas governamentais baseadas em educacao e dialogo em direitos humanos, mas tambem a tipificacao de certas condutas como crimes de omissao de socorro, inclusive com a consequente retirada da crianca do convivio do respectivo grupo para fins de inclusao em programas de adocao, se constatada a persistencia do grupo em manter a pratica tradicional (9).

O artigo apresenta as respostas dadas pelo liberalismo substantivo de Charles Taylor (1994), pela teoria liberal dos direitos das minorias de Will Kymlicka (1995) e pelo constitucionalismo consuetudinario ou pos-colonial de James Tully (1997) as perguntas anteriormente formuladas. Ao final, apos a identificacao dos pontos fortes de cada um dos modelos propostos, elabora uma teoria normativa propria que, acredita-se, e a mais adequada para regular as relacoes entre o Estado brasileiro e os povos indigenas.

2 Igualdade e Diferenca: O liberalismo substantivo de Charles Taylor

Por que, para garantir o igual respeito ao individuo, e preciso tambem respeitar a cultura a que ele pertence? Charles Taylor (2000a) afirma que a comunidade antece o individuo. O individuo, ao nascer, ja se encontra lancado em uma comunidade historica que o antecede. Desta forma, a comunidade participa, ainda que parcialmente, da formacao da identidade do individuo, isto e, da compreensao que o sujeito tem de si mesmo. Como a identidade humana e dialogicamente construida por meio de relacoes de reconhecimento, ate mesmo aspectos individuais da identidade sao elaborados continuamente em tensao com a expectativa dominante compartilhada pela comunidade. Esta pode reconhece-la positivamente, criando as condicoes adequadas para sua expressao publica, ou nega-la, criando dificuldades para a sua propria aceitacao pelo sujeito (10). Desta forma, a concepcao de boa vida compartilhada pela comunidade e aos poucos internalizada pelo individuo, utilizando-se, para tanto, do elemento amoroso e da linguagem por todos compartilhada.

Quando determinadas culturas sao extintas, exclui-se tambem a possibilidade de autorrealizacao individual de seus membros. Como uma parcela importante da identidade individual se ve ausente de confirmacao, inviabiliza-se tambem qualquer relacao positiva do sujeito com os seus outros proximos (11). Por esta razao, apenas aparentemente ha contradicao entre respeitar o individuo e proteger uma cultura. Ao se respeitar uma cultura, esta se protegendo, ao mesmo tempo, uma forma especifica que os seus membros tem de compreender a si mesmos. Sem a confirmacao desta parcela de sua identidade, nao ha autorrelacao positiva que possa vir a se estabelecer.

De que modo o Estado deve tratar as culturas existentes em seu territorio? Deve garantir apenas uma carta a maior possivel e igual para todos de direitos individuais, civis e politicos? Ou faz-se necessaria a previsao de direitos coletivos para as minorias culturais? Charles Taylor (2000a: 472) afirma que o Estado nao pode cumprir com o principio da neutralidade, conforme defendido pelo liberalismo igualitario (DWORKIN, 2000: 269-305), razao pela qual a simples previsao de uma carta de direitos individuais tende a ser homogeneizante. Por esta...

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