A base de cálculo do issqn e os descontos concedidos pelo prestador do serviço
Autor | Paulo de Barros Carvalho |
Cargo | Professor Emérito e Titular da PUC/SP e da USP |
Páginas | 7-26 |
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Trata-se de discussão jurídica que atinge diversas instituições prestadoras de serviços quando, consoante pactuado nos respectivos contratos, possibilita que os tomadores realizem o pagamento do preço em diversas datas, fixando, para tanto, valores que variam conforme o átimo do efetivo pagamento. Em tais circunstâncias, surgem questionamentos
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sobre o montante a ser tomado para fins de base de cálculo do ISSQN: se (i) o equivalente às quantias efetivamente recebidas em contraprestação aos serviços, ou se (ii) o quantum que seria devido pelos serviços caso o pagamento tivesse ocorrido em outra data, posterior. É o que ocorre, por exemplo, com os prestadores de serviços educacionais, cujos boletos de mensalidades, quando enviados aos alunos, remetem a dois valores, alternativamente devidos: um preço "X", se o pagamento se der em determinada data; outro preço menor, se houver o pagamento antecipado. Reconhecido esse ponto de controvérsia, discorrerei sobre a composição da base de cálculo do ISSQN, com especial enfoque às hipóteses de prestação serviços cujos preços sejam escalonados em função da data de seu pagamento.
Caberia em um livro denso e substancioso a trajetória semântica do signo "tributo", com todos os aspectos, valiosos e desvaliosos, que as sociedades foram depositando ao longo de seu caminho. Tema delicado e controvertido, em seu nome muitos excessos já foram praticados, mesmo porque se tem por assente a relação entre o bem-estar dos povos e o bom funcionamento dos correspondentes sistemas tributários. É certo que tudo se liga ao tipo e à evolução do Estado que estamos analisando, aquele corpus unificador da pluralidade de grupos, de raças, de crenças, o qual monta o substrato da nação como individualidade histórica, retrocedendo no passado, atuando no presente e projetando-se sobre o futuro, como agudamente o registra Lourival Vilanova, asserto que legitima a proposição segundo a qual os tributos de dado sistema guardam traços pragmáticos que lhe atribuem especificidade em relação a outros similares de ordenações diversas.
Um perigo sempre iminente está contido na dosagem da carga tributária, vale dizer, nas proporções da medida levada a termo para a implantação concreta do tributo. Daí o cuidado na escolha da base de cálculo e no plexo de normas que estabelecem técnicas para sua apuração nas ocorrências da vida real, sem falar, é claro, no abuso da estipulação de alíquotas, procedimento capaz de revelar os excessos do legislador, logo no exame do primeiro instante.
Se pensarmos nos efeitos da imposição tributária, tocando valores fundamentais como a propriedade e a liberdade, veremos quão tênue é o espaço de manobra do legislador ao constituir os instrumentos jurídicos adequados a esse fim. No Brasil, particularmente, há uma série de princípios, alguns como autênticos valores, bastantes em si, outros como limites objetivos que se preordenam, da mesma forma, à realização de estimativas, porém de maneira indireta. A planta fundamental do sistema tributário brasileiro está na Constituição da República, como conjunto de diretrizes mediante as quais se torna possível a configuração das várias entidades cogitadas pelo constituinte. Seu desdobramento é tarefa infraconstitucional, porém dentro de mecanismos rigorosamente estabelecidos e que tolhem eventuais arroubos criativos do editor de leis complementares e do legislador ordinário.
A construção da regra-matriz de incidência, assim como de qualquer norma jurídica, é obra do intérprete, a partir dos estímulos sensoriais do texto legislado. Sua hipótese prevê fato de conteúdo econômico, enquanto o consequente estatui vínculo obrigacional entre o Estado, ou quem lhe faça às vezes, na condição de sujeito ativo, e uma pessoa física ou jurídica, particular ou pública, como sujeito passivo, de tal sorte que o primeiro ficará investido do direito subjetivo público de exigir, do segundo, o pagamento de deter-minada quantia em dinheiro. Em contrapartida, o sujeito passivo será cometido do dever jurídico de prestar aquele objeto.
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Efetuadas as devidas abstrações lógicas, identificaremos, no descritor da norma, um critério material (comportamento de uma pessoa, representado por verbo pessoal e de predicação incompleta, seguido pelo complemento), condicionado no tempo (critério temporal) e no espaço (critério espacial). Já na consequência, observaremos um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e um critério quantitativo (base de cálculo e alíquota).
Aplicadas essas considerações ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência municipal, verificamos que encontra seu arquétipo normativo previamente referido no Estatuto Maior. É o que se depreende da leitura do art. 156, III, o qual dispõe competir aos Municípios instituir impostos sobre "serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar".
Preenchendo o arranjo sintático da regra-matriz de incidência tributária com a linguagem do direito positivo, vale dizer, saturando as variáveis lógicas com o conteúdo semântico constitucionalmente previsto, podemos construir a seguinte norma-padrão do ISSQN:
Hipótese:
· critério material: prestar serviços e qualquer natureza, excetuando-se os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação;
· critério espacial: âmbito territorial do Município;
· critério temporal: momento da prestação do serviço.
Consequência:
· critério pessoal: sujeito ativo: Município;1sujeito passivo: prestador do serviço;
· critério quantitativo: base de cálculo: preço do serviço; alíquota: aquela prevista na legislação do imposto.2Quero advertir que o esquema da regra -matriz de incidência é fórmula simplificadora, reduzindo, drasticamente, as dificuldades do feixe de enunciados constituidores da figura impositiva. Obviamente, não esgota as especulações que a leitura do texto suscita, porquanto o legislador lida com múltiplos dados da experiência, promovendo mutações que atingem o sujeito passivo, o tempo da ocorrência factual, as condições de espaço, a alíquota e as formas de mensurar o núcleo do acontecimento. Essa gama de liberdade legislativa, contudo, não pode ultrapassar os limites lógicos que a regra-matriz comporta. Se as mutações chegarem ao ponto de modi-ficar os dados essenciais da hipótese e, indo além, imprimir alterações na base de cálculo, estaremos, certamente, diante de violação à competência constitucionalmente traçada.
O emprego desse esquema normativo apresenta, portanto, extrema utilidade, possibilitando elucidar questões jurídicas, mediante a exibição das fronteiras dentro das quais o legislador e o aplicador das normas devem manter-se para não ofender o Texto Constitucional.
Critério material é o núcleo do conceito mencionado na hipótese normativa. Nele há referência ao comportamento de pessoas físicas ou jurídicas, cuja verificação em determinadas coordenadas de tempo e espaço, acompanhadas do relato pela linguagem prevista no ordenamento, acarretará o fenômeno da percussão tributária. No caso do ISSQN, esse núcleo é representado pelo verbo
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"prestar", acompanhado do complemento "serviços de qualquer natureza", fazendo-se necessário consignar que a referida locução não engloba os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, por expressa previsão do art. 156, III, da Carta Magna, bem como por integrarem âmbito de competência dos Estados e Distrito Federal, nos termos do art. 155, II, desse mesmo Diploma Normativo.
Examinando o conteúdo significativo da expressão "serviços de qualquer nature-za", empregada pelo constituinte para fins de incidência desse gravame, percebe-se, desde logo, que o conceito de "prestação de serviço", nos termos da previsão constitucional, não coincide com o sentido que lhe é comumente atribuído no domínio da lingua-gem ordinária. Na dimensão de significado daquela frase não se incluem: (i) o serviço público, tendo em vista ser ele abrangido pela imunidade (art. 150, IV, a, da Carta Fundamental)...
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