A Barganha e o Art. 105 do PLS 236/2012: Dos Perigos e Retrocessos de uma Disponibilização da Liberdade Mediante Confissão

AutorAlexandre Brandão Rodrigues - Domingos Barroso da Costa
CargoDefensor Público no Rio Grande do Sul - Defensor Público no Rio Grande do Sul
Páginas23-29

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1. Considerações jurídicas introdutórias

Em tempos sombrios de absolutismo e indiferença a garantias que posteriormente viriam a compor a base do que se deiniu como direitos humanos, a conissão era considerada a rainha das provas, o objetivo último de inquisidores, que deveriam obtêla a qualquer custo para legitimar a pena a ser imposta àquele que admitiu sua culpa. Mas a civilização progrediu1 e, em substituição às formas absolutas de imposição de poder, ergueu-se um modelo de Estado que, pela lei - então expressão máxima da razão -, passou a se autolimitar, condicionando as manifestações de poder ao saber. Trata-se do Estado de direito, fundado em garantias que asseguram o indivíduo contra inter-venções absolutas - e, portanto, não mediadas - dos que representem o poder soberano que, nesses limites, se faz público2.

Nessa moldura de garantias, o processo penal apresenta-se como instrumento inafastável de contenção ao exercício do poder de punir, que só se faz legítimo caso se venha a comprovar a culpa do acusado ao término de um rito que lhe assegure amplas possibilidades de defesa, prevalecendo seu estado de inocência caso não haja provas seguras o suiciente para afastar essa inocência presumida e, assim, autorizar a intervenção estatal em sua liberdade. Ou seja, frente ao poder punitivo do Estado, a liberdade individual tornase direito indisponível, de modo que nem a conissão judicial pode, por si só, autorizar a aplicação de uma pena, que pressupõe o processo.

Segundo Aury Lopes Jr.:

"A strumentalità do processo penal reside no fato de que a norma penal apresenta, quando comparada com outras normas jurídicas, a característica de que o preceito tem como conteúdo um determinado comportamento proibido

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ou imperativo e a sanção tem como destinatário aquele poder do Estado, que é chamado a aplicar a pena. Não é possível a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele não pode se submeter voluntariamente à pena, senão por meio de um ato judicial (nulla poena sine iudicio). Essa particularidade do processo penal demonstra que seu caráter instrumental é mais destacado que o do processo civil" (Lopes Junior, 2010, p. 7).

Dessa forma, se, por versar sobre relações que no mais das vezes dizem respeito a interesses exclusi-vamente privados, a conissão em processo civil é absoluta; diferente é o que se veriica no que diz da apli-cação de uma sanção penal3. Como garantia à liberdade individual e contenção de abusos, o Estado - de Direito - fez com que o saber obrigatoriamente mediasse o exercício de poder em sede penal, colocando entre si e o sujeito passível de sofrer a sanção dessa natureza o processo, instrumento informado por princípios que, pelo menos abstratamente, se mostram eicazes em assegurar a condenação de culpados e a absolvição de inocentes, mas a partir de uma perspectiva liberal segundo a qual sempre será preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente4.

Daí poder-se airmar que a um Estado Democrático de Direito que tem por ideal a Justiça interessa tanto a preservação da liberdade - com garantias maximizadas em contenção aos abusos que advêm do exercício do poder de punir5 -, quanto a condenação daqueles que, ao cabo de um processo em que viabilizado o contraditório e a ampla defesa, tenham sua culpa demonstrada. Justamente por isso, em magistral ensino, esclarece Eugênio Pacelli que as questões envolvendo o exercício do poder de punir não se resumem a uma "oposição entre um interesse punitivo e um interesse de liberdade individual. A questão não se limita à airmação de um interesse sobre outro ou da preponderância de um, coletivo, sobre outro, individual"6.

Segundo o autor:

"Já aqui salientamos que as normas constitucionais que frequentemente se põem em tensão no processo penal são constitutivas desse tipo de intervenção estatal. A imposição de sanção quando destinada à proteção de direitos fundamentais se coloca em posição de reciprocidade e de complementaridade com a proteção à liberdade individual, que também se qualiica como direito fundamental. Não se cuida de mera oposição entre segurança pública x liberdade individual, mas da airmação de direitos fundamentais (potenciais) - direitos fundamentais (individualizado)" (Oliveira, 2012, p. 78).

Airmada a imprescindibilidade do processo na aplicação de uma sanção penal no âmbito de um Estado Democrático de Direito, dada a indisponibilidade da liberdade individual frente ao poder de punir, interessante destacar que esse entendimento foi preponderante até mesmo na elaboração de nosso Código de Processo Penal, ainda que tenha nítida inspiração fascista (inquisitória). Nesse sentido, relativizou a conissão não só em seu art. 197, mas também e expressamente em sua exposição de motivos, de cujo item VII se extrai que a "própria conissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade". E, vale ressaltar, referese aqui a uma legislação de inspiração fascista.

Nesse contexto, impossível não se reconhecer que o art. 105 do PLS 236/2012 representa não só um grave retrocesso, mas uma fonte de riscos. Eis o texto proposto:

"Art. 105. Recebida deinitivamente a denúncia ou a queixa, o advogado ou defensor público, de um lado, e o órgão do Ministério Público ou querelante responsável pela causa, de outro, no exercício da autonomia das suas vontades, poderão celebrar acordo para a aplicação imediata das penas, antes da audiência de instrução e julgamento.

§ 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo:

I - a conissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória;

II - o requerimento de que a pena de prisão seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º a 4º deste artigo;

III - a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elas indicadas.

§ 2º Aplicar-se-á, quando couber, a substituição da pena de prisão, nos termos do disposto no art. 61 deste Código.

§ 3º Fica vedado o regime inicial fechado.

§ 4º Mediante requerimento das partes, a pena prevista no § 1º poderá ser diminuída em até um terço do mínimo previsto na cominação legal." (destaques nossos)

Como se pode veriicar, uma vez que o recebimento da denúncia requer - em exame precário - indícios de autoria e prova quanto à materialidade, de um só golpe7 o texto proposto tornou dispensável o processo (a produção das provas indicadas pelas partes) para uma imediata aplicação da pena, me-diante conissão, total ou parcial, do acusado, deduzida em acordo a ser irmado pelo titular da ação penal e a defesa8. Noutros termos, tratou a conissão como prova ab-soluta, tornando disponível a liber-dade individual frente à repressão penal, com o que fez dispensável o processo e a intervenção judicial na apuração da culpa. Assim, praticamente autorizou que a pena seja aplicada administrativamente9.

É um verdadeiro descalabro, considerando-se não só a impossibilidade de conformação entre o texto proposto e o modelo constitucional vigente, mas também as injustiças que podem resultar de sua aplicação, o que se conclui a partir de

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breve análise metajurídica da regra sugerida e suas peculiaridades, considerando-se que ela será aplicada a sujeitos que convivem em uma sociedade, envolvidos numa realidade dinâmica que extravasa à que lhe procura impor o direito10.

2. Alguns apontamentos interdisciplinares

Não é necessário maior esforço crítico para se concluir que o texto em exame encontra inspiração em modelos penais utilitaristas e é atravessado por ideais de lei e ordem que visam otimizar a repressão penal. O dispositivo proposto desempodera o acusado, do qual retira a garantia de ser processado, tornando possível que lhe seja aplicada instantaneamente uma pena, após sua conissão e alguma negocia-ção entre seu manager - advogado ou defensor público - e o titular da ação penal. Procura-se, obviamente, a uma maior eiciência no controle da clientela11 cativa do sistema penal brasileiro, assegurando-lhe uma repressão administrativa ao mesmo tempo em que lhe priva de garantias judiciais mínimas, em adequação do modelo repressivo brasileiro ao paradigma globalizado do Estado neoliberal, rápido na penitência, inerte quanto à providência12.

Mas, talvez encantados pela chance de protagonismo e pelo canto de sereias midiáticas, os idealizadores dessa revolução ei-cienticista apenas se esquecem dos séculos de história de progresso da civilização13 que põem por terra com semelhantes medidas. Ameaçam fazer emergir do submundo em que jaz, em estado de latência, o fetiche pela conissão, e todos os abusos e injustiças que vêm a seu reboque, passíveis de ser rememorados a partir de breve estudo dos julgamentos e punições medievais14. Esquecem também que, ao tornar instantânea a aplicação da sanção penal, fazem com que o poder se sobreponha ao saber, em desconsideração a toda base ilosóica que sustenta um Estado de Di-reito, relegando o tempo do direito ao converterem em regra a relativização das garantias, que deveria ser sempre excepcional e precária (Lopes Junior, 2010, p. 24-35).

E o pior: todo esse ritual de ressuscitamento do Estado de polícia gira em torno do culto a uma con-issão de poderes absolutos, como se a fragilidade dessa prova já não tivesse sido suicientemente des-velada pela história.

De início, não é difícil imaginar situ-ações em que, prevalecendo o texto proposto, laranjas assumirão a culpa por terceiros, confessando crimes alheios e se submetendo à sanção penal seja por coação, seja em troca de um proveito qualquer. E também não se...

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