"BALA": experiencia, classe e criminalizacao/"SHOT": experience, class and criminalization.

AutorFilho, Roberto Efrem
  1. O medo de Marcela

    Na primeira vez em que adentrei o predio do antigo Hotel Palacio (4), havia um dia da morte de Alexandre. Eu acabara de sair de uma aula na Faculdade de Direito quando alguns estudantes ligados ao NEP (5) me procuraram preocupados. Alexandre fora assassinado num dos quartos do Hotel onde, ha aproximadamente seis meses, familias de trabalhadores sem teto estabeleceram a Ocupacao Horizonte. Os estudantes me contaram do assassinato, de sua repercussao na imprensa e do medo dos moradores de que essa nova cena de violencia prejudicasse ainda mais a imagem da Ocupacao junto as instituicoes, judiciais e governamentais, responsaveis pela decisao sobre a permanencia ou nao dos sem-teto no predio. Tres estudantes e eu seguimos para a Horizonte, a dois quarteiroes da Praca Joao Pessoa, onde se localizam a Faculdade de Direito da UFPB, o Tribunal de Justica, a Assembleia Legislativa e o Palacio da Redencao, a sede do Governo da Paraiba. Na entrada do predio, Marcela nos aguardava. Estava ainda mais aflita que os estudantes. Ela nos levou para o quarto onde vive com duas de suas filhas e relatou o acontecido (6).

    Alguns meses antes da morte, Alexandre e um amigo prenderam, amarraram e torturaram um rapaz num dos quartos do predio. O tal rapaz tomava conta dos carros na rua da Ocupacao Horizonte e, segundo Marcela, era "fraco do juizo", possuia algum tipo de transtorno mental. Ao que parece, era alguem tranquilo que "nao mexia com ninguem" e prestava alguns favores e pequenos servicos as pessoas das redondezas, como ir a padaria ou ao mercado. Alexandre e o amigo haviam mandado que ele comprasse um cigarro. No entanto, alguem no caminho pediu ao rapaz o cigarro e ele deu. "Os caras acharam ruim e botaram ele para dentro do quarto". Isto ocorreu num domingo. Os dois mantiveram o rapaz amarrado e espancado ate a terca-feira quando, depois das denuncias de alguns moradores que teriam ouvido gritos, a policia militar chegou ao local. O menino estava quase morto. "Quem visse ele chorava". "Foi maldade, safadeza, coisa de gente que nao tem coracao". O policial que resgatou o rapaz trancafiado no quarto chamou aquilo de "coisa do diabo"--"acho ate que ele era evangelico"--mas Alexandre e o amigo fugiram. Alexandre voltaria meses depois. O amigo nao, ele havia sido preso, "entregue" a policia pelo proprio Alexandre, depois que eles "fizeram uns negocios tronchos pras bandas do interior". Depois que voltou, Alexandre recebeu avisos e sabia que corria riscos. "O irmao dele chorou ajoelhado, nos pes dele:--va simbora, voce vai morrer". Nao foi, morreu. Um grupo de homens entrou no predio, perguntou por Alexandre e atirou contra ele, diretamente. Os policiais que revistaram o corpo encontraram nele drogas ilegais.

    Esses dois episodios de violencia--o espancamento do primeiro rapaz e a morte de Alexandre--levaram a Ocupacao Horizonte as paginas policiais dos jornais e aos programas televisivos policialescos. Enquanto Marcela nos relatava os fatos, tentava sintonizar a antena do aparelho de televisao nos canais dos tais programas. Queria saber se falariam da Ocupacao. Falaram. Os tres programas desse genero transmitidos em Joao Pessoa pautaram, naquele dia, o assassinato de Alexandre. Ao menos um deles, ao que recordo, dedicou ao caso um tempo significativo de sua programacao. O apresentador, em tom acusatorio, questionava ate quando os governantes permitiriam que o centro da cidade de Joao Pessoa continuasse um "antro" de trafico de drogas, prostituicao, crime e violencia. Remetia-se a Ocupacao Horizonte--"a invasao do Hotel Palacio"--e a outra ocupacao de sem-tetos, mais antiga, situada no predio que pertencera ao INSS, como locais de concentracao "de marginalidade" e "bandidos". Bradava que a Praca do Pavilhao do Cha era tomada por prostitutas durante a noite e amanhecia repleta de "camisinhas" e "esperma" espalhados pelo chao. Marcela ouvia as palavras do apresentador e explicava sua principal preocupacao: "tenho medo que isso chegue na Justica e a gente seja despejado".

    O presente texto apresenta algumas das reflexoes que venho desenvolvendo em razao da pesquisa que realizo, sob a orientacao de Regina Facchini, junto ao Programa de Doutorado em Ciencias Sociais da Universidade Estadual de Campinas. Nessa pesquisa, volto-me para relacoes entrecruzadas de classe, genero, sexualidade e territoriais oportunizadas por narrativas sobre violencia e pelas condicoes de possibilidade de producao dessas narrativas, ou seja, pelas lutas em que narrativas e narradores se encontram implicados. Neste artigo, contudo, pretendo explorar apenas uma das dimensoes da pesquisa de doutoramento: o desvendamento das ambiguidades narrativas constitutivas da (e constituidas pela) classe trabalhadora e, portanto, dos conflitos de classe, sobremaneira de suas ambivalencias entre trabalho, crime, racializacao, genero e sexualidade. Procuro, assim, percorrer as sinuosidades das narrativas acionadas por Marcela, interlocutora da pesquisa e uma das liderancas da Ocupacao Horizonte, com os objetivos de: a) problematizar o uso comum, inclusive no interior do campo marxista, das nocoes de "classe" e "trabalho"; b) compreender os entrecruzamentos constitutivos de relacoes de classe, racializacao, genero e sexualidade; e, ainda que mais brevemente do que o necessario, c) discutir o lugar do "direito" na conformacao e nos dinamismos dos conflitos de que trata Marcela.

  2. Vira-bico, vida errada

    "Tenho medo que isso chegue na Justica e a gente seja despejado". A preocupacao de Marcela fazia sentido. A epoca, como ainda hoje, as liderancas do Movimento Terra Livre --que atuaram na reuniao dos trabalhadores sem teto e na organizacao inicial da ocupacao--e os moradores da Ocupacao Horizonte sofriam uma acao de reintegracao de posse ajuizada pelo proprietario anterior do imovel. Achavam-se, portanto, as vesperas de uma decisao judicial sobre a sua permanencia no predio. Frente a instabilidade da situacao, qualquer abalo na imagem dos ocupantes poderia engendrar uma decisao prejudicial. Pensando nisso, o Movimento Terra Livre e a coordenacao da Ocupacao publicaram uma "Carta a sociedade e a imprensa paraibana". Com ela, intencionavam repudiar orgaos de imprensa e jornalistas que teriam "caluniado" as duzentas familias moradoras do predio e atribuido a Ocupacao os rotulos de "boca de fumo" e de que "no predio so tem bandidos".

    Carta a Sociedade e a Imprensa Paraibana. As 200 familias moradoras da Ocupacao Horizonte, antigo Hotel Palacio, se dirigem a sociedade para informar e repudiar sobre noticias e comentarios feitos por alguns orgaos da imprensa paraibana sobre esta ocupacao (...). No dia 22 de outubro, ocorreu um homicidio de um jovem no local, ele nao era morador da ocupacao e poucos o conheciam, como foi amplamente divulgado pela imprensa. Todo o ocorrido foi rapidamente notificado a Policia Militar que chegou em poucos minutos ao local. (...) Entretanto, alguns jornalistas, como os acima citados, resolveram aproveitar o caso para caluniar as 200 familias, afirmando na televisao e no radio que o local e uma "boca de fumo" ou que "no predio so tem bandidos". Ora, eles sabiam dos fatos e mesmo assim resolveram intencionalmente nos caluniar. A Ocupacao Horizonte tem o objetivo de conquistar a moradia para essas 200 familias, tem uma coordenacao eleita por elas, tem assembleias todas as semanas para se discutir os problemas do predio (inclusive foi a assembleia do dia 23 que decidiu redigir a presente carta) e e organizada dentro de um movimento nacional que, entre outras coisas, luta por moradia, o Terra Livre--movimento popular campo e cidade (terralivre.org). (...) O movimento conhece muito bem os expedientes deste tipo de jornalista, preocupado em criminalizar os pobres e comprometido com os setores mais poderosos e conservadores da Paraiba, divulgando sensos comuns sobre a violencia, criados para a manutencao da repressao social. As 200 familias honestas que vivem ha seis meses na Ocupacao Horizonte (o que inclui tres criancas nascidas no local) exigem uma retratacao publica dos dois jornalistas acima citados e reafirma o objetivo maximo da ocupacao: garantir moradia digna das familias e um futuro para nossos filhos. A intencao da Carta e clara: trata-se de uma resposta a criminalizacao sofrida pelos moradores da Ocupacao Horizonte e pelos "pobres" e movimentos sociais em geral. A carta associa os jornalistas criticados aos "setores mais poderosos e conservadores da Paraiba" e argumenta que a divulgacao midiatica de sensos-comuns sobre a violencia serve a "manutencao da repressao social". Clara e certeira, portanto. Ha, todavia, um momento do texto em que os fundamentos da estrategia politica adotada pelo Movimento se destacam: o instante em que Alexandre e afastado da Ocupacao--"ele nao era morador da ocupacao e poucos o conheciam"--e contraposto as "200 familias honestas que vivem ha seis meses na Ocupacao Horizonte". Bandidos de um lado, familias honestas e trabalhadores do outro. De fato, Alexandre nao morava na Horizonte. Ele circulava pela regiao e pelo predio, mantinha relacoes no mercado local de drogas ilicitas e talvez usasse, sem o consentimento da Coordenacao da Ocupacao, o predio para as suas transacoes comerciais. Mas a necessidade do Movimento de separar Alexandre dos moradores e emblematica. Ela expoe um esforco em provocar distincoes que as condicoes materiais de existencia nao favorecem.

    Nos labirintos dessas condicoes, as fronteiras entre "trabalhador" e "criminoso" sao incertas e facilmente transmutaveis a depender das disposicoes classificatorias em acao e das relacoes de poder entre os sujeitos que as exercem. Alba Zaluar (1985) e Gabriel de Santis Feltran (2011) notaram esses cambios identitarios. Em suas analises sobre periferias urbanas no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, ha um "mundo do crime" em intima interface com o "mundo do trabalho". Zaluar percebe que apesar da existencia de oposicoes obvias entre...

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