O autor como sujeito de direito: o conflito entre o direito moral de autor do criador de obra arquitetônica e o direito de propriedade do titular do exemplar ? uma análise a partir de alguns julgados oriundos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP)

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas393-440

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1. Peculiaridades (concretas) da obra arquitetônica (pluralidade de interesses a recair sobre um mesmo “corpus mechanicum”)

Somente a prática propicia, em algumas ocasiões, confiitos que não podem ser entrevistos, naturalmente, em meio a uma especulação eminentemente teórica. De fato, não raramente o distanciamento entre o direito científico (“law in books”) e o direito prático (“law in action”) é posto em evidência pelas peculiaridades atreladas a uma situação concreta – mesmo em um sistema jurídico como o brasileiro, no qual a Lei ainda ocupa a posição de destaque, no cenário das fontes do direito positivo1.

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Nenhum estudioso devotado ao direito autoral negaria a importância significativa dos direitos “morais” do criador de uma obra intelectual. Contudo, uma atenção muito maior – sobretudo “midiática” – é destinada aos correlatos direitos “patrimoniais”, principalmente em um contexto no qual a “pirataria” passa a ser uma das preocupações mais constantes entre os nossos especialistas e autoridades públicas – cônscios da necessidade de uma investigação verdadeiramente sociológica a respeito da eficácia da Lei Fed. nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais atualmente em vigor).

De fato, lamentavelmente, os direitos “morais” de autor “parecem” ter uma projeção muito mais teorética (e acadêmica) do que verdadeiramente prática. Em contrapartida, é exatamente no burburinho da vida quotidiana que podemos entrever os maiores desafios relacionados a uma efetiva implementação (e tutela) de tal espécie de prerrogativas atribuídas ao criador de uma obra intelectual. De fato, não temos dúvida de que qualquer bacharelando seria extremamente enfático ao afirmar o direito do autor à integridade de sua respectiva obra. No entanto, quando exsurge o efetivo entrechoque entre direitos subjetivos com potenciais efeitos confiitantes, desponta a indagação: será que a contundência inicial resiste ao desafio imposto pela realidade concreta2

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Em termos bastante práticos: produzida uma obra intelectual arquitetônica, o proprietário da edificação pode alterar “desembaraçadamente” as suas conformações? Se pretender, por exemplo, modificar – subs-tancialmente – a fachada da construção, precisa obter a autorização do arquiteto autor da obra intelectual originalmente concebida? Não seria aquele um autêntico proprietário, provido das irrestritas “faculdades” de usar, fruir, dispor e reivindicar, tal como estatui o art. 1228 do Código Civil? Qualquer restrição aos seus poderes – de proprietário da edificação – não corresponderia a uma intolerável violação ao “inabalável” direito de propriedade3

Advirta-se – de antemão – que a solução da questão está muito longe de ser pacífica. Os mais variados posicionamentos podem ser entrevistos, por exemplo, na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP): desde aquele que contempla uma proteção irrestrita ao proprietário do imóvel, até manifestações que se preocupam apenas e tão somente em resguardar a integridade da obra arquitetônica – considera-

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da esta, pois, uma parte integrante do “acervo técnico” do responsável por sua idealização4.

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Tal “heterogeneidade”, de fato, se “explica”; conquanto não se “justifique”. Pode ser facilmente explicada, na medida em que se tenha em consideração a exiguidade de Cursos de Graduação em que o Direito Autoral consta como disciplina integrante do respectivo currículo acadêmico (seja ela “obrigatória” ou meramente “facultativa”); diferentemente, todo bacharel em Direito acaba por ter noções mais ou menos robustas a respeito do direito de propriedade (ministradas em meio à disciplina de “Direito das Coisas”). No entanto, nem tudo aquilo que simplesmente explica, na mesma medida, serve de justificativa “razoável” para deter-minados posicionamentos jurisprudenciais passíveis de crítica. Pois, segundo o art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ninguém pode se escusar do cumprimento da lei, sob a alegação de seu desconhecimento; assim, a corriqueira ignorância quanto aos contornos mais elementares da disciplina autoral não pode – jamais – ser um fato que se reconheça sem um concomitante sentimento de angústia (e de profunda lamentação).

Ora, se estamos a considerar um embate entre os direitos subjetivos do arquiteto e do proprietário da edificação, acabamos por nos imiscuir em um ambiente dificilmente “gerenciável”: pois ambos (arquiteto e proprietário), titulares que são de direitos subjetivos oponíveis “erga omnes” – o direito autoral e o direito de propriedade – não apenas acreditam, mas em verdade têm a mais absoluta certeza, infelizmente, de que os seus próprios interesses são aqueles priorizados pelo legislador. Assim, como poderiam ser harmonizadas posições jurídicas que – isoladamente (e em

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virtude de sua dinâmica peculiar) – acabam por redundar, aparentemente, na inarredável preterição do interesse alheio, em uma espécie de jogo de “soma-zero”? Será que não haveria a possibilidade de se entrever uma solução “contemporizadora”, por meio da qual fossem prestigiadas ambas as personagens? Será que não poderia ser construído (graças, inclusive, à intervenção do legislador) um ambiente colaborativo (jogos colaborativos, de “soma não zero”), em que o melhor resultado derivaria de uma solução “concertada”, em decorrência da qual ambos seriam simultaneamente favorecidos? Será que poderíamos encontrar – na dinâmica da relação mantida entre o arquiteto e o proprietário do imóvel – uma situação de “equilíbrio”, em face da qual nenhum deles poderia melhorar, isoladamente, a sua situação, sem a colaboração alheia? Enfim, poderíamos divisar – em um tal contexto – um “Equilíbrio de Nash”5

A questão está longe de evidenciar um simples problema dogmático. Ora, não estamos aqui comprometidos com um estudo voltado à “hermenêutica jurídica”; entretanto, esta será a nossa principal aliada ao longo de uma jornada que necessariamente parte do direito autoral e vai desaguar no vigente estatuto profissional do arquiteto – promulgado no final do ano de 2010 (Lei Fed. nº 12.378, de 31 de dezembro de 2010). Passemos, sem mais, à análise do problema proposto.

2. O principal confiito derivado da obra arquitetônica implementada (direito do proprietário sobre o exemplar versus direito moral do arquiteto)

Partindo-se do “caso” submetido à análise, pode-se observar, primeiramente, que não se está aqui a considerar um confiito entre normas ju-

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rídicas. Diferentemente daquilo que se verifica quanto às diversas modalidades de “antinomias” (antinomias de “técnica legislativa”, antinomias “normativas” em sentido estrito, antinomias “valorativas”, antinomias “teleológicas” e antinomias “principiológicas”), não estamos a tratar de um simples confiito entre regras jurídicas (derivadas do embate entre proposições prescritivas). Voltamos nossa atenção, pois, ao confiito entre “posições jurídicas subjetivas ativas” – as quais, potencialmente, tanto podem ser exercidas de modo harmônico, como também redundar em uma pretensa exclusão recíproca6.

O proprietário, segundo a concepção “clássica” de seu direito subjetivo, tem as “faculdades” de usar, fruir, dispor e o “direito” de reivindicar (tal é o que parece estabelecer o art. 1228 do Código Civil vigente). Por sua vez, ao criador da obra intelectual o ordenamento jurídico defere direitos “morais” e “patrimoniais”, ambos dotados de oponibilidade “erga omnes” – os primeiros por serem direitos “absolutos”, os derradeiros por serem direitos “reais”7. Em caso de intersecção entre os círculos decorrentes do “potencial” exercício de tais direitos subjetivos, a impossibili-

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dade de uma – simultânea – satisfação “plena” dos diferentes titulares sugere a necessidade de um escrupuloso exame “crítico”, devotado aos autênticos “limites” que atualmente “conformam” tais “posições jurídicas subjetivas ativas”. Ao menos essa nos parece ser a leitura adequada da evolução “principiológica” levada a cabo com a entrada em vigor do Código Civil de 20028.

Tome-se, primeiramente, o direito de propriedade. O advento da Revolução Francesa – e da consubstanciação jurídica privada de seu espírito (o “Code Civil” de 1804) – assinalou o resgate dos contornos romanos conferidos ao domínio; com isso, divisou-se no proprietário o titular de um direito subjetivo “absoluto”, “exclusivo” e “perpétuo”. Tais características, que outrora puderam prevalecer relativamente inquestionadas (sobretudo durante o tempo em que o Código Civil foi considerado uma autêntica “constituição do direito privado”), ultimamente têm suscitado

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os mais francos questionamentos9. Quão “absoluto” se...

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