Autonomia privada nas relações familiares

AutorWalsir Edson Rodrigues Júnior
Páginas303-326

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Ver Nota1

Introdução

É na família que o indivíduo vivencia boa parte das suas experiências e desenvolve aspectos psicológicos, sociais e políticos. Não é à toa que cada vez mais essa instituição é reconhecida e protegida pelo Estado2. De certo, “a despeito das críticas e das vicissitudes que, em alguns períodos da história, e ainda recentemente, lhe têm posto à prova os alicerces, a família subsiste, e é considerada em todos os países e em todos os sistemas legislativos como instituição necessária [...]”.3Mas qual deve ser o limite da intervenção estatal nas relações familiares? O Estado deve interferir em todas as questões familiares ou deve-se permitir que as próprias partes, com fulcro na autonomia privada, decidam o que é melhor e assumam a responsabilidade pela decisão?

Nesse contexto, o que se pretende investigar é se a intervenção estatal nas relações familiares, da forma como posta no ordenamento jurídico vigente, não fere a dignidade dos sujeitos e o princípio da autonomia privada.

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1 Autonomia privada e intervenção estatal nas relações familiares

Contemporaneamente, a família não é mais encarada como uma unidade de produção, estruturada apenas para atender os seus ins econômicos, políticos, religiosos e culturais como outrora. No Brasil, com a Constituição da República de 1988, caiu o modelo da família unitária, transpessoal, matrimonializada, patriarcal e hierarquizada.

Nesse sentido, a família deixou de ser objeto de proteção autônoma – colocada como uma realidade baseada em si mesma – e tornou-se funcional, ou seja, instrumento de promoção e desenvolvimento da personalidade dos seus membros, realçando a dignidade da pessoa humana em suas relações.4É a pessoa que deve ser protegida e colocada no centro do ordenamento jurídico.5Com a Constituição da República de 1988, tornou-se possível extrair vários princípios, implícitos ou explícitos, que passaram a ser fontes das decisões judiciais, tais como: o da dignidade da pessoa humana, da pluralidade de entidades familiares, da família funcionalizada, da liberdade, da igualdade, entre outros. A análise desses princípios constitucionais determina a adoção de novos parâmetros e limites para a intervenção estatal nas relações familiares.

Sob a égide do Estado Democrático de Direito, a vontade ganha realce por ser o homem livre para decidir, por si, que rumo deve tomar a sua vida, fazendo seu próprio caminho. O desenvolvimento da sua personalidade – pretensão inerente às formações familiares – depende dessa autonomia e da consequente assunção de responsabilidade. Logo, a permissão de exercício da liberdade na eleição de certas consequências oriundas das relações familiares – efeitos ex voluntade – é mesmo necessária. Sem qualquer margem de decisão, a autenticidade da formação pessoal dos integrantes da entidade familiar certamente icaria comprometida.

Por outro lado, esse mesmo pressuposto justiica preservar, também hoje, nas relações familiares efeitos ex lege. Porque fundadas na proteção das pessoas, alguns aspectos, considerados elementares, são suprimidos da disposição das

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partes, sendo determinados, de maneira cogente, por lei. A vulnerabilidade da pessoa humana deve ser tutela em todas as suas manifestações, ainda mais no seio da família que, nos termos do art. 226 da CR/88, recebe especial proteção do Estado. Daí porque a ninguém é concedido o direito de, por exemplo, negociar o dever de mútua assistência que existe, por força de lei, entre os membros de uma família.

Evidencia-se, portanto, que algumas normas que regulamentam as relações familiares são normas de ordem pública ou cogentes. Nessa esteira, ganha relevo o tratamento jurídico protetivo dispensado a alguns sujeitos considerados frágeis, ora porque situados em fases especiais do processo de autoformação, ora porque portadores de delicada condição pessoal, a tornar qualquer fase de seu desenvolvimento uma fase especial. As crianças, os adolescentes e os idosos compõem o primeiro grupo; os doentes e deicientes intelectuais, o segundo. Também merecem destaque as normas de caráter assistencial, como as que regulam o direito a alimentos entre os familiares, pois os familiares hão de ser solidários entre si, a im de auxiliar a promoção do livre desenvolvimento da personalidade de todos. Aliás, nisso se assenta a própria conceituação de família – formação social que envolva ambiente propício à plena formação pessoal dos seus componentes –, o que reforça ainda mais a responsabilidade jurídica que têm seus integrantes, uns perante os outros.

Contudo, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, “a intervenção do Estado deve apenas e tão-somente ter o condão de tutelar a família e dar-lhe garantias, inclusive de ampla manifestação de vontade e de que seus membros vivam em condições propícias à manutenção do núcleo afetivo.”6Conforme perspicaz constatação de João Baptista Villela,

Toda a problemática que se arma a partir da conjunção desses dois conceitos – liberdade e família – se resume, por conseguinte, em estabelecer, no plano da objetividade institucional, composição tal entre eles de que resulte um mínimo de restrições individuais e um máximo de realização pessoal.7

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Na concepção de Michel Foucault, “o sujeito se autoconstitui ajudando-se com técnicas de si, no lugar de ser constituído por técnicas de dominação (poder) ou técnicas discursivas (saber)”.8Dessa forma, em que pese o fato de as normas estatais reguladoras das relações familiares serem estruturadas sob o domínio do binômio saber-poder, concorrentemente, há a resistência representada pela possibilidade que o sujeito encontra de desvencilhar-se de regras de conduta pré-estabelecidas, na busca por transformação. Assim, há a coexistência de forças de sujeição, mas há também a evidência de forças transformadoras que se constituem em possibilidades para o exercício da autonomia dos sujeitos integrantes das relações familiares.

Prestigiar a autonomia nas relações familiares pode ser entendido como uma experiência singular, pois permite a expressão do saber da vida, a relexão e o surgimento de uma nova subjetividade, sem se perder diante da necessidade objetiva de regras ancoradas no ordenamento jurídico para a efetivação de um ambiente propício ao livre desenvolvimento da personalidade.

Algumas normas legais reconhecem a autonomia dos sujeitos nas relações familiares. O Código Civil de 2002, de forma expressa, proíbe a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.513). A liberdade do casal pode ser visualizada no texto constitucional (art. 226, § 7º), quando trata do planejamento familiar que deverá ser exercido com base na dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Conforme atesta Eduardo de Oliveira Leite, “no texto constitucional de 1988 é nítido o sério esforço no sentido de reduzir o campo das imposições, alargando o espaço das liberdades [...]”.9Acima disso, não se pode esquecer que o ser humano é livre para decidir que rumo deve tomar a sua vida e fazer o seu próprio caminho; o desenvolvimento da sua personalidade depende dessa autonomia e consequente assunção de responsabilidade.

Contudo, não se pode esquecer que a autonomia privada, num Estado Demo-crático de Direito, deve ser desenvolvida na perspectiva relacional, pois a ideia de

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autonomia “pressupõe socialidade, intersubjetividade”.10O exercício da autonomia privada é assegurado por liberdades subjetivas, reconhecidas igualmente a todos “na maior medida funcionalmente possível”.11Nesse sentido, conclui Renata de Lima Rodrigues:

Para conciliação e consagração de todos os modos de vida, sem deixar de ser omisso, mas tampouco totalitário, nossa estrutura política se articula a partir de uma engrenagem que conta com mecanismos que permitem ou garantem iguais liberdades individuais de atuação, para propiciar o lorescimento de todas as individualidades, nos limites da lei e da subjetividade alheia. Desta feita, liberdades individuais passam a ser garantidas na medida em que se apresentam como iguais liberdades a todos indistintamente distribuídas.12Percebe-se com isso que, outrora, a autonomia era limitada para preservar a família, considerada uma instituição que estava acima dos seus membros. O casamento, por exemplo, não podia ser desfeito mesmo diante da vontade dos cônjuges. Agora, a limitação, quando ocorre, concorre para preservar a dignidade das pessoas envolvidas. A tutela jurídica é destinada ao sujeito, considerado objetivamente em todas as suas particularidades.

Diante desse novo modelo de família funcionalizada, preocupada com o desenvolvimento da personalidade de seus componentes, a releitura de alguns institutos de cunho protetivo tornou-se inevitável. Assim, satisfazer o melhor interesse da criança ou adolescente, do idoso, do doente ou deiciente intelectual também requer conceder-lhes condições para o exercício de seus direitos fundamentais,13em vista de suas peculiaridades...

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