Autonomia e natureza jurídica do direito do trabalho

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas78-93

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I Introdução

A apresentação das características essenciais do Direito do Trabalho, que permita ao analista a visualização de seus contornos próprios mais destacados, não se completa sem o exame dos traços que envolvem a relação desse ramo especializado com o conjunto geral do Direito.

Esses traços são dados, fundamentalmente, pelo estudo da autonomia do ramo juslaborativo, de seu posicionamento no plano jurídico geral (sua natureza jurídica, em suma), e, finalmente, a investigação de suas relações com outros ramos do universo do Direito.

II Autonomia

Autonomia (do grego auto, próprio, e nomé, regra), no Direito, traduz a qualidade atingida por determinado ramo jurídico de ter enfoques, princípios, regras, teorias e condutas metodológicas próprias de estruturação e dinâmica.

A conquista da autonomia confirma a maturidade alcançada pelo ramo jurídico, que se desgarra dos laços mais rígidos que o prendiam a ramo(s) próximo(s), sedimentando via própria de construção e desenvolvimento de seus componentes específicos. Nessa linha, pode-se afirmar que um deter-minado complexo de princípios, regras e institutos jurídicos assume caráter de ramo jurídico específico e próprio quando alcança autonomia perante os demais ramos do Direito que lhe sejam próximos ou contrapostos.

O problema da autonomia não é exclusivo do Direito e seus ramos integrantes. As próprias ciências o enfrentam, necessariamente. Neste plano científico específico, pode-se dizer que um determinado conjunto de proposições, métodos e enfoques de pesquisa acerca de um universo de problemas assume o caráter de ramo de conhecimento específico e próprio quando também alcança autonomia perante os demais ramos de pesquisa e saber que lhe sejam correlatos ou contrapostos.

Quais são os requisitos para a afirmação autonômica de certo campo do Direito?

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O jurista italiano Alfredo Rocco sintetizou, com rara felicidade, a tríade de requisitos necessários ao alcance de autonomia por certo ramo jurídico. Trata-se, de um lado, da existência, em seu interior, de um campo temático vasto e específico; de outro lado, a elaboração de teorias próprias ao mesmo ramo jurídico investigado; por fim, a observância de metodologia própria de construção e reprodução da estrutura e dinâmica desse ramo jurídico enfocado1.

A esses três requisitos, acrescentaríamos um quarto, consubstanciado na existência de perspectivas e questionamentos específicos e próprios, em contraposição aos prevalecentes nos ramos próximos ou correlatos.

O Direito do Trabalho, cotejado com o conjunto desses quatro requisitos à conquista de sua autonomia, atende largamente ao desafio proposto. De fato, são óbvias e marcantes a vastidão e especificidade do campo temático desse ramo jurídico especializado. Basta enfatizar que a relação empregatícia — categoria central do ramo justrabalhista — jamais foi objeto de teorização e normatização em qualquer época histórica, antes do advento da moderna sociedade industrial capitalista. Basta aduzir, ainda, institutos como negociação coletiva e greve, além de temas como duração do trabalho, salário, com sua natureza e efeitos próprios, poder empregatício, além de inúmeros outros assuntos, para aferir-se a larga extensão das temáticas próprias ao Direito do Trabalho.

É amplo também o número de teorias específicas e distintivas do ramo justrabalhista. Ressaltem-se, ilustrativamente, as fundamentais teorias justrabalhistas de nulidades e de hierarquia das normas jurídicas — ambas profundamente distantes das linhas gerais hegemônicas na teorização do Direito Civil (ou Direito Comum).2

É também clara a existência de metodologia e métodos próprios ao ramo jurídico especializado do trabalho. Neste passo, a particularidade justrabalhista é tão pronunciada que o Direito do Trabalho destaca-se pela circunstância de possuir até mesmo métodos próprios de criação jurídica, de geração da própria normatividade trabalhista. É o que se ressalta, por exemplo, através dos importantes mecanismos de negociação coletiva existentes.

Por fim, o Direito do Trabalho destaca-se igualmente pelo requisito de incorporar perspectivas e questionamentos específicos e próprios. De fato,

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este ramo especializado enfoca problemas afins a outros ramos jurídicos de modo inteiramente distinto ao perfilado pelos ramos tradicionais. Veja-se a relação credor/devedor, que, no Direito Civil, é, em geral, normatizada sob a perspectiva básica favorável ao devedor: o Direito Obrigacional Civil constrói-se sob a perspectiva do devedor, elaborando princípios e regras segundo essa perspectiva primordial. Já o Direito Individual do Trabalho constrói-se sob a perspectiva do credor trabalhista, o empregado, elaborando, consequentemente, princípios e regras de matriz e direcionamento sumamente diversos dos civilistas clássicos.

Desde a plena institucionalização do Direito do Trabalho, no século XX, já não se coloca em dúvida a autonomia justrabalhista. Seja pelo exame analítico dos quatro requisitos necessários ao alcance da autonomia de qualquer ramo jurídico ou científico, seja pela pujante reunião de estruturas e dinâmicas de largo impacto social estritamente vinculadas à área justrabalhista (sindicatos, regras coletivas negociadas, greves, organização obreira no estabelecimento e na empresa, legislação trabalhista intensa, etc.), seja pelo já longínquo distanciamento das origens e fase de afirmação do ramo justrabalhista, há muito já não se questiona mais a óbvia existência de autonomia do Direito do Trabalho no contexto dos ramos e disciplinas componentes do universo do Direito e da ciência dirigida a seu estudo. O questionamento que talvez deva ser colocado pelo estudioso do Direito é de ordem inteiramente diversa.

De fato, o debate envolvente a esse tema certamente não será mais frutífero, hoje, se se limitar a discutir sobre a existência ou não da autonomia do Direito do Trabalho e de sua disciplina de pesquisa e reflexão. Tal discussão teve sentido na fase de afirmação do ramo justrabalhista, quando o segmento novo naturalmente tendia a digladiar com o berço teórico e cultural que abrigou seu nascimento, o Direito Obrigacional Civil. O debate contemporâneo, o debate da maturidade do Direito do Trabalho certamente não versará sobre sua autonomia — inquestionável, sob qualquer enfoque que se tome o tema —, mas, em vez disso, sobre os limites da autonomia do ramo especializado e os compatíveis critérios de integração desse ramo no conjunto do universo jurídico3. Ilustrativamente, os critérios de integração e harmonização do Direito do Trabalho — e seus princípios específicos — à normatividade constitucional (veja-se a perplexidade provocada pela

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norma constitucional de 1988, de nulidade das admissões irregulares de servidores — mesmo celetistas); ou ainda os critérios de integração e harmonização do Direito do Trabalho ao Direito Administrativo (veja-se a extrema dificuldade do ramo justrabalhista de conferir consistência aos princípios administrativistas de legalidade e moralidade, quando em aparente confronto com princípios justrabalhistas específicos). Nesta mesma linha, podem se contrapor, também, o debate entre princípios justrabalhistas e ética jurídica (como sugerido, contemporaneamente, pelo tema do “trabalho” ilícito e seus efeitos no Direito do Trabalho).

Este novo e consistente debate é um dos que mais devem instigar os estudiosos do Direito do Trabalho no processo de avanço da modernização e democratização da sociedade brasileira no início do terceiro milênio.

A propósito, em obra já construída no novo milênio4, buscamos enfrentar esse instigante debate. De um lado, indicando o tronco fundamental do ramo justrabalhista, seu núcleo basilar, sem o qual não se pode referir, com seriedade, à própria existência do Direito do Trabalho. Trata-se, aqui, do núcleo basilar de princípios especiais juslaborativos.5

De outro lado, estudando os princípios gerais do Direito aplicáveis ao Direito do Trabalho, com a percepção, nesse grupo genérico, de um núcleo também basilar, perante o qual o ramo justrabalhista não pode ser desinteressado ou impermeável.6

III Natureza jurídica

A pesquisa acerca da natureza de um determinado fenômeno supõe a sua precisa definição — como declaração de sua essência e composição — seguida de sua classificação, como fenômeno passível de enquadramento em um conjunto próximo de fenômenos correlatos. Definição (busca da essência) e classificação (busca do posicionamento comparativo), eis a equação compreensiva básica da ideia de natureza7.

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Encontrar a natureza jurídica de um instituto do Direito (ou até de um ramo jurídico, como o Direito do Trabalho) consiste em se apreenderem os elementos fundamentais que integram sua composição específica, contrapondo?os, em seguida, ao conjunto mais próximo de figuras jurídicas (ou de segmentos jurídicos, no caso do ramo justrabalhista), de modo a classificar o instituto enfocado no universo de figuras existentes no Direito.

É “atividade lógica de classificação”8, pela qual se integra determinada figura jurídica no conjunto mais próximo de figuras existentes no universo do Direito, mediante a identificação e cotejo de seus elementos constitutivos fundamentais.

Encontrar a natureza jurídica do Direito do Trabalho consiste em se fixarem seus elementos componentes essenciais, contrapondo-os ao conjunto mais próximo de segmentos jurídicos sistematizados, de modo a classificar aquele ramo jurídico no conjunto do universo do Direito. À medida que esse universo do Direito tem sido...

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