Autonomia feminina e concepcoes de direito entre mulheres beneficiarias do Programa Bolsa FamiliaFemale autonomy and concepts of rights among women beneficiaries of the Bolsa Familia Program.

AutorMariano, Silvana

Introducao (1)

Os estudos sobre familias e politicas sociais tem encontrado importantes contribuicoes advindas das pesquisas sobre as condicoes das mulheres em situacao de pobreza ou de desprotecao social. Essas investigacoes se apoiam em reflexoes acerca da cidadania das mulheres e tem possibilitado um importante acumulo para os estudos sobre desigualdades, especialmente desde a segunda metade do seculo XX, como tambem sobre os arranjos adotados pelas politicas sociais e seus possiveis efeitos para a cidadania das mulheres.

Essa vasta agenda de pesquisa, informada por perspectivas da sociologia da familia e dos estudos de genero e feministas, motiva investigacoes sobre a importancia das mulheres para as politicas sociais e a importancia das politicas sociais para as mulheres. Essas pesquisas exploram tambem as ambiguidades desta relacao e, no caso latino-americano e brasileiro, problematizam em especial o carater "familista" das politicas sociais e as tendencias de inclusao instrumental das mulheres. Aderindo a esta agenda de pesquisas, nossa analise tem como ponto de partida duas nocoes interconectadas " cidadania e autonomia feminina " como expressao do empoderamento das mulheres, cujo pano de fundo e a relacao entre genero, democracia e politicas publicas.

A pesquisa teve como objetivo geral compreender as condicoes para a conquista de autonomia das mulheres pobres, por meio do Programa Bolsa Familia (PBF), a partir dos recortes de genero, raca/etnia e geracao. Em um momento no qual o acesso ao consumo tende a concentrar os interesses das pesquisas com populacoes atendidas por politicas sociais, especialmente quando se trata de transferencia de renda, nosso interesse e, diferentemente, orientado por preocupacoes como a ampliacao das liberdades, da individualizacao e da politizacao dos direitos das mulheres.

As analises sao desenvolvidas com base em estudos de caso realizados nos municipios de Curitiba (Parana) e Fortaleza (Ceara), no ano de 2013. A amostragem completa da pesquisa e constituida por 190 entrevistas, sendo 95 em cada cidade, e o instrumento de coleta de dados foi um roteiro estruturado composto por perguntas fechadas e abertas. As perguntas abertas foram codificadas com base na analise de conteudo e o conjunto de informacoes foi registrado em programa de analise estatistica. As entrevistas foram realizadas em sedes dos Centros de Referencia de Assistencia Social (Cras).

As disparidades entre as duas capitais, observadas a partir dos principais indicadores socioeconomicos adotados pelos orgaos de pesquisa no Brasil, justificam a escolha por essas duas cidades e a tentativa de apreender as possiveis variacoes quanto as liberdades e capacidades--no sentido adotado por Amartya Sen (2008) e Martha Nussbaum (2002)--dessas mulheres em situacao de pobreza. Essas capacidades sao constituidas e constitutivas do contexto material e social no qual essas mulheres se inserem.

Para este momento em particular, temos como objetivo, por um lado, compreender as percepcoes dessas mulheres em torno de concepcoes politicas como direito e cidadania, com o intuito de inferir o modo como elas interpretam a relacao com o Estado, o acesso as politicas publicas e o seu agenciamento nesse processo. Por outro lado, objetivamos captar e dimensionar a autonomia dessas mulheres para a tomada de decisoes no espaco domestico e em aspectos relativos a individualizacao feminina, tanto no contexto das relacoes familiares como das relacoes sociais mais amplas.

Protecao social e autonomia feminina

O campo das politicas publicas, e particularmente das politicas sociais, apresenta-se como area estrategica para a compreensao da estratificacao e das desigualdades sociais. Conforme destaca Virginia Guzman (2000, p. 85), "o estudo das politicas publicas e um terreno privilegiado para analisar as relacoes do Estado com os diversos atores sociais, entre eles as mulheres e, consequentemente, um bom indicador do grau de democratizacao da sociedade". Esta tematica de investigacao opera, portanto, com as interseccoes entre a politizacao das relacoes de genero, democratizacao social e reducao das desigualdades sociais.

O tema da protecao social tem claro conteudo politico, o que envolve conflitos e contradicoes. Assim, o relativo consenso sobre a associacao entre direitos sociais e cidadania nao elimina as divergencias em relacao as formas de acesso e as responsabilidades que cabem ao Estado, a sociedade e a familia, tendo em vista a garantia de protecao aos individuos. Em consequencia, o conjunto das politicas representa diferentes niveis de consolidacao dos direitos sociais. Essa problematica e especialmente percebida nas acoes de combate a pobreza, para a qual o Programa Bolsa Familia desempenha papel especial, no caso brasileiro.

Estamos de acordo com Sonia Alvarez (1988, p. 318) ao identificar que "a desigualdade com base em genero esta embutida na propria estrutura do poder estatal no Brasil", o que constitui um dos desafios para a democracia no pais. "O Estado moderno nao (e) neutro com relacao a questoes de genero", o que se verifica, por exemplo, na representacao que faz sobre a divisao entre as esferas "publica" ou politica e a "privada" (ALVAREZ, 1988, p. 318). "Ele tambem institucionaliza as relacoes de poder generico ao restringir o genero feminino a ultima esfera, reforcando politicamente os limites que tem confinado a mulher social e historicamente" (ALVAREZ, 1988, p. 319). Por outro lado, ainda em concordancia com a autora, o Estado nao e uma instancia monolitica quanto ao genero, o que torna relevantes as pesquisas sobre as correlacoes de forca, bem como as brechas no interior das instituicoes estatais.

Na outra ponta da problematica que nos interessa, os estudos sobre a pobreza, pelo menos desde as influencias de Amartya Sen (2008), se depararam com a exigencia de se perceber que os pobres sao diferentes entre si, isto e, sendo a pobreza um fenomeno multidimensional, nao e possivel que seja examinada em termos genericos, sem tratar devidamente sua diversidade e pluralidade. A questao fundamental abordada por Sen (2008), de nosso ponto de vista, e a chamada "perspectiva da capacidade", cuja principal formulacao e de avaliar a pobreza nao apenas como insuficiencia de renda, mas por meio das capacidades individuais para realizar alguns funcionamentos basicos. A perspectiva da capacidade conecta-se diretamente com os temas do direito e da cidadania.

As concepcoes de direito e de cidadania sao fundantes e fundadoras de concepcoes de sujeitos e, por consequencia, de sujeitos de direitos, o que toma forma concreta na vida das pessoas, por exemplo, por meio dos tipos de politicas publicas que sao formuladas para diferentes agrupamentos sociais (BONACCHI; GROPPI, 1995). Na esteira de concepcoes sexuadas de cidadania, politicas publicas igualmente sexuadas sao forjadas. Como resultado, os referenciais sociopoliticos fundados em concepcoes de genero engendram os tipos e os objetivos das politicas promovidas pelo Estado. Alimenta-se, assim, a necessidade de uma agenda de pesquisa feminista que se interrogue sobre a forma como concepcoes sociais de genero se interconectam com enfoques de politicas, bem como se interroga sobre a forma como as acoes estatais (re)produzem ou alteram as relacoes sociais de genero, com possiveis impactos para a cidadania das mulheres, tendo em vista modificacoes, ou nao, no grau de autonomia vivenciado pelas mulheres.

Pesquisas empiricas realizadas em diferentes contextos nos paises ocidentais tem constatado a persistente associacao entre, de um lado, direitos associados ao trabalho...

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