Autonomia do banco central do Brasil e despolitizaçao da moeda

AutorRicardo Ferreira de Macedo
Páginas237-254

Page 237

1. Introdução A análise da técnica económica pela ciência jurídica. Necessário discernimento entre meios e fins

Não é lícito ao jurista, ao analisar, do ponto de vista de sua ciência, qualquer fenómeno social, ignorar ou não conhecer plenamente todos os aspectos técnicos e culturais que governam sua lógica. Trata-se, como dizia-nos Vivante, de questão de indispensável honestidade científica.

A disciplina normativa e o estudo jurídico dos fenómenos relacionados ao sistema bancário e aos fatores monetários, especialmente pela complexidade técnica que os caracteriza, não podem fugir a essas considerações. Impõe-se, portanto, como análise prejudicial á uma análise jurídica destes fenómenos, o estudo da lógica económica e cultural que os rege.

Contudo, incorre em equívoco ainda maior o jurista ao deixar que sua análise se perca num emaranhado de considerações técnicas, reduzindo-a a uma análise económica, provavelmente mal feita ou feita com muito menos rigor que aquelas produzidas pelos economistas.

Não deve, pois, ser objeto central, mas apenas incidental ou instrumental, das preocupações do jurista a dinâmica das forças endógenas que atuam sobre determinado fenómeno. Sua preocupação deve centrar-se nas necessidades e possibilidades de modificação destas forças mediante ação exógena planejada direcionada a determinados fins.

Assim, a vénia para análises de cunho técnico-econômico é concedida ao jurista apenas na medida em que estas constituam instrumento de compreensão dos fatores extrajurídicos que regem determinada rea-

Page 238

lidade a fim de que se possa confrontar os ramos que esta tende a tomar com os fins estabelecidos pela ordem constitucional e, se necessário, corrigir aqueles rumos em função destes fins.

A isto deve visar também a nonnati-zação de tais fenómenos: não a um mero ricalco delia técnica degli affari, mas a uma correção dos rumos impostos por esta técnica em função do bem comum, consubstanciado nos valores consagrados pela Constituição. A normalização deve visar, pois, a uma vetorização valorativa dos fenómenos econômico-negociais.

A uma análise da estrutura do sistema financeiro nacional não podem escapar estas convicções, uma vez que as disciplinas monetária e bancária não dizem respeito exclusivamente (sequer predominantemen-te, diria um olhar atento ao caput do art. 192 da CF) ao interesse de instituições financeiras e grandes investidores. Ao contrário, a estrutura e funcionamento do sistema financeiro dizem respeito ao interesse e à felicidade de todo o povo, na medida em que o fluxo dos meios de pagamento e todos os fatores a ele conexos (taxas de juros, câmbio etc.) são elementos aptos a influenciar diretamçnte o nível de produção (e, portanto, de emprego) e a eficiência de toda a economia.

Desta fornia, uma análise jurídica do sistema financeiro e uma proposta de nor-matização para o mesmo exigem, em primeiro lugar, uma reflexão, ainda que breve, sobre a influência do funcionamento dos fenómenos monetários e conexos sobre o contexto económico geral. Assim, a partir de patologias (potenciais ou efetivas) aferidas nesta análise (de cunho estritamente sócio-econômico), pode-se extrair conclusões sobre as condições normativas e estruturais de eficiência deste sistema, bem como sobre as características institucionais do órgão de direção do mesmo, que constituem o objeto deste trabalho.

2. A influência do fluxo dos meios de pagamento e de outros fatores monetários sobre o contexto macroeconômico Necessidade e fundamentos técnico-econômicos de um sistema de direção monetária
2. 1 Meio circulante Contração, expansão e necessidade de controle visando à preservação do poder aquisitivo da moeda

Não se pode afirmar, à maneira de Mill, que a moeda exerça, de forma neutra, a função de instrumento de troca, sem influir sobre a formação de preços, sobre o equilíbrio entre oferta e procura, enfim, sobre o nível da atividade económica.

Com efeito, a contração ou expansão dos meios de pagamento,1 ocasionadas por fatores ligados ao comportamento económico da população num determinado momento ou a repercussões, no âmbito monetário, de dados fiscais e orçamentários, podem desencadear processos inflacionários ou de depressão (influindo, dessa fornia, na formação de preços), bem como podem, estrategicamente manipulados pela autoridade de direção monetária, conforme se verá a seguir, através não só do controle de emissão de moeda, mas também de operações de open market e de certas medidas de regulação da atividade bancária (nota-damente, as que concernem ao chamado depósito compulsório), servir como mecanismos de correção destas patologias.

A explicação desse fenómeno, intentada por Ricardo (em sua teoria quantitativa da moeda) e aperfeiçoada por von Wie-ser, está ligada, em uma grosseira simplificação, à lei da oferta e da procura, à qual se submete também a moeda, enquanto instrumento de troca. A quantidade de moeda disponível (excesso ou insuficiência de

Page 239

oferta) influirá diretamente em seu valor e, portanto, na quantidade de moeda necessária na aquisição de determinado bem, vale dizer, no preço de mercado deste bem.

O controle do meio circulante (conjunto dos meios de pagamento) constitui, pela influência direta e comprovada que exerce sobre os níveis de preço e, portanto, de emprego e de atividade em uma economia, fator essencial a ser observado em qualquer política de direção monetária.

Este controle não se restringe, por óbvio, ao mero controle da emissão monetária (cujo monopólio é naturalmente entregue ao órgão de direção monetária), mas deve ter em conta a existência e a relevância da chamada moeda escriturai, parcela principal do conjunto dos meios de pagamento, criada pela integração dos mecanismos de concessão de crédito bancário e de depósito à vista.2

O controle da moeda escriturai, que se dá através de medidas tendentes a graduar a existência de recursos em poder dos bancos (como o aumento ou redução do montante exigido como depósito compulsório ou com a indução de aumento da taxa de juros3 como forma de desestímulo à procura de financiamentos), torna-se, portanto, tão ou mais importante que o controle da emissão de papel-moeda.

2.1. 1 Instrumentos de direção monetária para o controle do meio circulante

É pacífica, hoje, em todas as economias, a necessidade de proteção da moeda (que implica, em última análise, a proteção ao poder aquisitivo da população, principalmente das parcelas desta que não têm acesso a aplicações financeiras e sujeitam-se, portanto, ao assim chamado imposto in-flacionário) contra os efeitos corrosivos que a própria dinâmica da economia (nota-damente quando se fala em capitalismo financeiro) pode lhe impor. Torna-se imprescindível, neste sentido, a existência de uma autoridade de direção monetária, autónoma ou não (essa é uma discussão posterior), armada de instrumentos técnicos para o alcance deste fim.

Tanto é assim que, já em 1920, a Conferência Internacional de Bruxelas recomendava que se criasse um Banco Central em cada país com o fim de restaurar e manter a estabilidade monetária e bancária.

Oitenta e cinco anos após a criação do primeiro Banco Central, o Federal Reserve System norte-americano (que constitui, na verdade, um sistema de bancos centrais, como se verá adiante), parece cada vez maior a sofisticação dos instrumentos a serviço da atividade de direção monetária, instrumentos cuja eficiente aplicação, contudo, dependerá de fatores políticos caso não se preserve, em grau desejável, a autonomia do órgão de direção, como será discutido em itens posteriores.

2.1.1.1 Operações de "open market", seus efeitos sobre a moeda e sobre as flutuações económicas - As operações ditas de open market constituem o instrumento de direção monetária mais trivial utilizado pelos Bancos Centrais.

Estas operações consistem na atuação direta do órgão de direção monetária no

Page 240

mercado, negociando com títulos de sua...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT