A autonomia do direito comercial e o direito de empresa

AutorMarcos Paulo de Almeida Salles
Páginas28-39

Page 28

1. Introdução

A intenção deste trabalho é trazer à luz uma vivência histórica e distintiva da tradicional dicotomia do Direito privado na Historia do Direito Brasileiro, encaminhando o pensamento do leitor à reanálise do quanto, em um curto espaço de cerca de 25 anos, se deu uma grande modificação no estatuto norteador da vida do cidadão e de suas circunstâncias, com a revogação de mais um terço do Código Comercial Brasileiro de 1850, no momento da promulgação do Código Civil Brasileiro de 2002, que veio substituir aquele de 1916 que, por sua vez deu cobertura local às ordenações do Reino de Portugal, que regraram a vida do súdito e do cidadão, até após a proclamação da República.

Ao se olhar pelas datas, vê-se que o primeiro ato normativo econômico brasileiro foi aquele de que resultou a abertura dos portos pelo Regente em 1808, valendo dizer que a mercancia, ou atividade econô-mica com mercadorias, estava a pressionar a mansidão resultante do pacto colonial, que marcava a época puramente extrativis-ta deste enorme quintal português, cobiçado por tantos...

Em 1850, menos de meio século, após esta abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional, diretamente, sob a influência francesa do período das codificações iniciadas por Napoleão, em 1807, surge o monumento legislativo, denominado Código Comercial Brasileiro, dividido em três partes uma das quais - o comércio marítimo - ainda, em vigor. Em renovação anterior revogou-se o direito das quebras, seu terceiro tomo, para, em 2002, com o Código Civil, revogar-se-lhe a parte primeira, do Direito Comercial Terrestre.

Como relembra Trajano Miranda Valverde:1

"No seu percurso até a República, foi o Código Imperial sofrendo algumas alterações, provocadas quase todas por situações urgentes a resolver. (...)

"Durante os 40 anos em que vigorou a legislação falimentar do Código, cujo pro-

Page 29

cesso, por demasiado lento, oneroso, não satisfazia aos interesses do comércio, não defendia suficientemente o crédito, críticas e projetos de reforma não faltaram... (...) O decreto republicano n. 917, de 24 de outubro de 1890, da lavra do eminente jurista Carlos de Carvalho, modificou totalmente a estrutura da legislação até então vigente, marcando a segunda fase da evolução do instituto da falência."

Por consequência, o desaparecimento do terço final do Código Comercial de 1850.

Nesse entretempo, após a revogação expressa dos artigos, de 797 em diante, do vetusto Código Comercial de 1850, os demais artigos desde o 1o vieram sendo objeto de interpretações jurisprudenciais modificadoras de sua leitura, à vista dos usos e costumes mercantis, que no Direito Comercial são fonte subsidiária normativa (art. 291) antes da Lei Civil.

Percebem então os leitores que nesse cenário o Direito Comercial se apresentou em 1850 com predomínio na legislação brasileira sobre a lei civil, então portuguesa de origem, para vir a ser brasileira somente em 1916, quando então já não estava em vigor a justiça especializada mercantil, exercida, nos moldes do Regulamento Processual 737/1850, pelos "Tribunais do Comércio". Neste quadro, a autonomia do Direito Comercial estava intimamente ligada à escolha do Tribunal competente para julgar as ações em que, ao menos, uma das partes na relação jurídica de direito material, fosse comerciante.

Com a revogação do Regulamento 737, transferindo-se toda a atividade processual privada para o Direito Judiciário Civil, elimina-se no âmbito privatista uma justiça especial para os fatos do Direito Comercial, passando então a doutrina a discutir a autonomia deste ramo do Direito privado, analisando-a preliminarmente pelo seu histórico e entendo sua instabilidade, mas procurando justificá-la pelo predomínio dos costumes, como fonte do direito.

Com a Constituição Federal de 1988 amplas modificações no âmago desse relacionamento foram-se dando, em especial pelos fundamentos e princípios traçados pelo capítulo da ordem econômica e financeira; assim como procurando iniciar no sistema jurídico brasileiro as normas de proteção ao consumidor, e ainda como, uma revalorização no direito concorrencial, que, como veremos, dão azo a uma nova leitura para a autonomia do Direito Comercial.

2. Síntese histórica

No âmbito deste trabalho não temos a intenção de revolver o passado para tratar do abastecimento das famílias em suas mais variadas modalidades, seja com o indivíduo conhecido como "mascate", seja com o abastecimento em Roma, que era feito ou diretamente pelos escravos, ou por intermédio dos estrangeiros.2

O que podemos dizer é que para o nosso escopo, o que mais nos interessa, é a influência que exerceu sobre o Direito Comercial em sua forma contemporânea, a baixa Idade Média, do século XII em diante; isto é quando já teria havido a tessitura cultural entre os bárbaros e seus invadidos, nos séculos anteriores.

Imbuídos de que os privilégios próprios do entesouramento de natureza patrimonial, representado pela acumulação da moeda, que converteu as trocas em venda e compra, com capacidade para diferir o consumo; aglomerados nas encostas dos castelos ou nos espaços das freguesias dos mosteiros, aqueles que se resolveram profissionalizar na atitude de aproximar

Page 30

a natureza da soleira dos consumidores, acabaram por assumir uma utilidade pública que, pouco a pouco, se vai tornando indispensável ao suprimento de um caudal, cada vez maior, de necessidades primárias e secundárias desejadas pelo esforço criativo da mente humana.

Para tanto eram necessários pontos de encontro entre a oferta e a procura, nascendo as "feiras da Idade Média" a começar daquelas da Região de Champanha no Noroeste de França. Bancas de alimentos, bancas de moedas e câmbio e até "bancas rotas" (aquelas que não honraram com a pontualidade e foram "quebradas") expulsas do ambiente autorregulado, por meio de usos e costumes comerciais.

É a lex mercatória oferecendo-se para a regulação do comportamento dos mercadores, na preservação do sucesso de seus mercados.

Lembrando Ascarelli,3 "o panorama muda com a introdução dos títulos de crédito e muda tanto mais profundamente quanto mais esses títulos se desenvolvem e aperfeiçoam, difundem e se multiplicam, no seu número e nas suas espécies", o que nos faz concordar com a magistral função que têm esses instrumentos jurídicos, nascidos nas feiras da Idade Média e que do tratamento jurídico que vêm tendo, são objeto de circulação como coisa móvel, isto é mediante simples tradição ou endosso seguido da tradição, facilitando, na verdade, a circulação do direito neles contido, por meio de sua movimentação física há algum tempo e escritural no mundo contemporâneo.

3. O mercado como fato jurídico

A noção de demanda, no sentido de satisfação dos desejos (ou necessidades) humanos implica sempre em haver um instrumento de impulsão que age como vis conductibile que responde pela imagem da necessidade; sejam elas primárias, sejam secundárias, sejam prementes, sejam diferíeis. Este elemento subjetivo e individual encaminha o demandante instintivamente, quando da busca pela sua satisfação; este elemento se fortalece na medida em que aumenta a vontade e esta vontade é que determina o instante do encontro da demanda com o bem ou serviço demandando, àvista de sua disponibilidade.

Neste momento encontramos o consentimento à permuta, que em princípio guiou os passos dos respectivos sujeitos da relação jurídica que se avizinha e que se concretiza, se materializa, se aperfeiçoa quando nasce o ponto de encontro do vínculo de aceitação e as partes trocam de posição detentora dos bens permutados.

Este ponto de encontro, uma tangente entre duas esferas de interesses que se ativam em busca da satisfação, marca o delinear original do fato do mercado. Não se trata de um fenômeno, é um fato conducente às miríades de soluções satisfativas que a mente humana cria, e as faz, necessidades.

Em Huberman,4 encontramos que "nos primórdios da sociedade feudal a vida econômica decorria sem muita utilização de capital. Era uma economia de consumo, em que cada aldeia feudal era praticamente autossuficiente", o que nos levou a afirmar alhures que este desígnio permitia aos povos valerem-se de uma economia de escambo, quando pudesse haver excedentes; caso contrário nem mesmo trocas haveria, pois a produção destinava-se exclusivamente ao consumo dos feudos.5

Como elegemos, como momento histórico de partida deste estudo, a Idade Média, mais precisamente o século XII, já contamos nesta época com uma geração espontânea de crescimento neste propiciar

Page 31

de encontros, por meio de uma ordem econômica organizada para enfrentar a relação de troca, ou mesmo, e mais preponderantemente, a venda e compra, nascida com a genial descoberta do bem intermediário de troca, a moeda.

Para Dobb,6 "na medida em que o crescimento do mercado exerceu uma influência desintegrada, sobre a estrutura do feudalismo, a narrativa dessa influência pode ser em grande parte identificada ao surgimento das cidades, como órgãos corporativos".

Estava posto na ordem econômica da época o fato do mercado, faltava-lhe modelar sua organização para que ele pudesse permitir a realização de negócios jurídicos nascidos do escambo e subsequentemente apoiados na compra e venda e seus derivados. Era essencialmente uma oportunidade de proceder com habitualidade à satisfação de alterações patrimoniais em torno das pessoas.

Havia, pois, os elementos subjetivos do ato jurídico para serem atraídos reciprocamente por aquela vis de que falamos, e assim possibilitar a circulação das riquezas. Com a moeda a potencializar os desejos especulativos, estava lançada a base do capitalismo monetário.

A necessidade de se verem organizados os mercados é que levou os franceses a proporcionar encontros habituais na região da produção de vinhos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT