A Autonomia das Agências Reguladoras: Aspectos Relevantes à Luz do Direito Econômico

AutorAdalberto J. Q. Telles de Camargo Aranha Filho - Marina Domingues de Castro Camargo Aranha
CargoJuiz de Direito Substituto em 2º Grau (São Paulo) - Advogada
Páginas13-22

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1. Introdução

Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, o im da segunda guerra mundial e o advento do Estado social, restou superada a concepção liberal negativa de Estado, pela qual o ente estatal deveria atuar apenas para garantir o sistema livre de mercado, que, por si só, asseguraria o equilíbrio econômico e social, posta como premissa a concorrência perfeita.

Com efeito, o desenvolvimento das relações econômicas, políticas e sociais demonstrou a imprescindibilidade da intervenção estatal na atividade econômica para garantir uma concorrência justa e equilibrada, promover a expansão da renda nacional e o desenvolvimento econômico.

Nesta toada, surgiram os chamados "Estados intervencionistas", legitimados a atuar sobre a atividade econômica privada, inclusive concorrendo com ela, com o im de promover bem-estar so-cial, a exemplo dos Estados Unidos com o plano de recuperação da economia New Deal, implementado após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York.

Sob esta inluência, as agên-cias reguladoras surgiram no cenário brasileiro a partir dos anos de 1990, marcadas pela transferência de grande parte dos serviços públicos à iniciativa privada, diante da complexidade das funções desempenhadas pelo Estado, da necessidade da prestação de serviços eicientes e adequados à população e da impossibilidade de o Estado realizar vultosos investimentos, principalmente em setores de infraestrutura.

Estes órgãos foram criados por leis especíicas na condição de autarquias "em regime especial", por serem dotadas de autonomia normativa, inanceira e adminis-trativa um pouco maiores do que as demais autarquias. Além disso, seus dirigentes são indicados pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, para um mandato ixo, proibida a exoneração ad nutum.

Neste contexto, ao tratar das agências reguladoras brasileiras, analisaremos a sua criação, características, natureza jurídica e independência, detalhando seu poder normativo, autonomia inanceira e administrativa. Além disso, verii-caremos a estabilidade dos dirigentes, aspectos de sua tecnicidade, bem como o controle exercido pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Por im, diante de tamanha re-levância, desenvolveremos uma análise da atuação das agências reguladoras no contexto do Estado

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brasileiro, ponderando os atributos essenciais que devem ser preservados para o adequado controle da atividade econômica, capaz de assegurar existência digna a seus cidadãos.

2. As agências reguladoras e a Constituição de 1988

Ao tempo do Estado liberal, adotava-se o conceito de "Estado mínimo", pelo qual, de acordo com Adam Smith, ao Estado cabia apenas proteger a sociedade da violência e da invasão por outras sociedades, estabelecer uma adequada administração da justiça e erigir e manter certas obras e instituições públicas indispensáveis ao interesse público, pois, garantido o sistema livre de mercado, o equilíbrio econômico e social estaria assegurado.

Neste contexto, entendia-se que, quanto menor fosse a presença do Estado dentro de uma socie-dade, maior seria a liberdade dos indivíduos, estabelecendo-se uma nítida dissociação entre a atividade política e a atividade econômica.

Ocorre que esta concepção surgiu na transição do absolutismo para o liberalismo, estando impregnada pelos traumas decorrentes das arbitrariedades praticadas pelo Estado. No entanto, o liberalismo parte de uma ideia de concorrência perfeita, em que não há monopólios nem abusos, e pressupõe certa igualdade entre os agentes econômicos, de modo a haver uma competição equilibrada.

Em meio à depressão econô-mica experimentada entre as duas grandes guerras, a "mão invisível" de Adam Smith se mostrou utópica e ineiciente em um sis-tema econômico no qual as decisões de poucos conglomerados e do governo afetavam a renda e as oportunidades de emprego de todos os cidadãos.

Neste cenário, a teoria econô-mica de John Maynard Keynes, implementada pelo New Deal nos Estados Unidos na década de 1930, demonstrou que o Estado deve intervir na economia para minorar as crises inerentes ao sistema capita-lista e os desequilíbrios do mercado, regular a atividade econômica e promover o desenvolvimento, sem que, com isso, se recrie uma ditadura ou se adote um sistema socialista. Assim, ressurgiu a premissa de que a economia e a política estão indissoluvelmente ligadas, devendo o Estado atuar conjuntamente com a iniciativa privada, sem limitá-la, mas buscando evitar desvios e redistribuir seus rendimentos de uma forma mais justa, que atenda ao interesse coletivo.

No cenário brasileiro, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a ordem econômica brasileira se funda na valorização do traba-lho e na livre iniciativa, a im de assegurar a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, dentre outros, o princípio da livre concorrência.

Nesta perspectiva, a partir da década de 1990, com a implantação do Programa Nacional de Desestatização (incrementado com a Lei 9.491/97), o Estado brasileiro, admitindo sua incapacidade econômica para fornecer serviços de forma adequada e digna e investir em infraestrutura, transferiu a execução de alguns serviços públicos para a iniciativa privada, notadamente nos setores de telecomuni-cações e energia elétrica, e lexibi-lizou o monopólio do petróleo.

Acompanhando a tendência político-econômica mundial da década de 1980 - de desestatizações, privatizações, concessões, parcerias e uma regulação desburocratizada1 -, o Brasil adotou o modelo de "Estado Regulador"2, em que a exploração direta de atividade econômica é realizada pelo agente privado, cabendo ao Estado exercer as funções de normatização, isca-lização e incentivo dessa atividade. Para tanto, foram criadas as agências reguladoras.

Modernamente, a atuação das agências reguladoras visa proteger o consumidor contra a ineiciência, o domínio do mercado, a concentração econômica, a concorrência desleal, o aumento arbitrário dos lucros, procurando garantir a qualidade, a universalidade e a continuidade do serviço para os destina-tários finais. Para tanto, aumenta-se a ingerência estatal, propiciando maior inluência sobre a gestão privada do que quando o Poder Público prestava diretamente, pois a regulação outrora praticada pelo Estado visava mais os seus interesses secundários do que o público.

Essa nova forma de atuação do Estado pressupõe, além da participação privada na prestação dos serviços públicos, a regulação da exploração da atividade econômica, buscando a defesa do interesse público e o equilíbrio nas relações de consumo no setor regulado, de modo que o Estado deve atuar num ponto equidistante entre os interesses dos usuários, dos prestadores dos serviços concedidos e do próprio Poder Executivo, para evitar eventuais pressões políticas.

Nesta perspectiva, por exercerem função essencialmente técnica e cumprirem tarefa de tamanha relevância, as agências reguladoras são constituídas de forma a se evitar ingerências políticas na sua direção, sendo dotadas de atributos peculiares, que causam divergência na doutrina e jurisprudência.

3. Atributos próprios das agências reguladoras

De acordo com a lei criadora da Agência Nacional de Telecomunicações - Anatel (Lei 9.472/97,

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artigo 8º, § 2º), seus traços característicos são: independência administrativa, ausência de subordi-nação hierárquica, mandato ixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia inanceira.

No mesmo sentido, a lei criadora da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS (Lei 9.961/00, artigo 1º, parágrafo único) estabelece que a natureza de autarquia especial conferida à ANS é caracterizada por autonomia adminis-trativa, inanceira, patrimonial e de gestão de recursos humanos, auto-nomia nas suas decisões técnicas e mandato ixo de seus dirigentes.

A lei criadora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa (Lei 9.782/99, artigo 30, parágrafo único), por seu turno, esclarece que a natureza de autarquia especial conferida a essa agência é caracterizada pela independência administrativa, estabilidade de seus dirigentes e autonomia inan-ceira.

Ainda, a lei criadora da Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT e da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ (Lei 10.233/01, artigo 21, § 2º) prevê que o regime autárquico especial atribuído a ditas agências é caracterizado pela independência administrativa, autonomia inanceira e funcional e mandato ixo de seus dirigentes.

Assim, em síntese, podemos concluir que as agências reguladoras são órgãos criados por leis especíicas, na condição de autar-quias "em regime especial" por serem dotadas de autonomia admi-nistrativa, inanceira e normativa e tecnicidade maior que as demais autarquias, a im de garantir-lhes uma atuação independente e capaz de fomentar o desenvolvimento econômico, fortalecer a justa competição e promover o bem-estar social.

A partir desta deinição, anali-saremos essas características em compatibilidade com o regime constitucional brasileiro frente aos três Poderes.

3.1. Autonomia normativa

As agências reguladoras exercem funções típicas dos três poderes, tendo autonomia e poder normativo para cuidar de determinados assuntos. No entanto, para que não haja usurpação de competências, é necessária uma delimitação precisa de sua atuação, de modo que, em relação ao Poder Legislativo, o verdadeiro problema reside em saber quais os limites de seu poder normativo frente ao princípio da legalidade.

Nesse sentido, Luís Roberto Barroso3 pondera:

A grande diiculdade que envolve a discussão sobre o poder normativo das agências reguladoras, portanto, diz respeito ao seu convívio com o princípio da...

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