Auto-organização social no mundo do trabalho e produção: notas para uma crítica à economia solidária

AutorCassio Brancaleone
CargoDoutor em sociologia pelo (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro )IESP/UERJ, com pós-doutorado em sociologia pela (Universidad de Buenos Aires) UBA/Argentina
Páginas301-336
DOI: https://doi.org/10.5007/175-7984.2020v19n45p301
301301 – 336
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Auto-organização social no mundo
do trabalho e produção: notas para
uma crítica à economia solidária
Cassio Brancaleone1
Resumo
O debate contemporâneo sobre experiências alternativas de organização do trabalho e da pro-
dução se encontra no Brasil dominado pela chamada “economia solidária”. Disseminadamen-
te conhecidas como “cooperativas” ou “fábricas e empresas recuperadas”, muitas dessas ex-
periências evidentemente não são novas, remontando às primeiras práticas de resistência e de
auto-organização social protagonizadas pela classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, sua condição
e seu potencial de “alternativa” societária em variadas circunstâncias são minimizados e mesmo
colocados em xeque pelo modo como estas se inserem no âmbito de relações de subordina-
ção e dependência com agências, mecanismos e operadores do Estado e do mercado capitalista.
O artigo em questão pretende apresentar um sucinto balanço crítico do repertório teórico mobili-
zado por expoentes da economia solidária à luz de perspectivas oriundas do campo anarquista e
marxista heterodoxo, relacionando-o com a proposta da “economia participativa” (PARECON).
Dessa forma, espera-se contribuir com uma crítica a este marco teórico através da recuperação do
sentido antissistêmico do conceito de autogestão, subsidiando a reexão e a análise relativas a tais
experiências.
Palavras-chave: Autogestão. Auto-organização social. Economia solidária, PARECON.
1 Doutor em sociologia pelo (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
)IESP/UERJ, com pós-doutorado em sociologia pela (Universidad de Buenos Aires) UBA/Argentina. Professor
do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) e do curso de licenciatura em
Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim/RS. Investigador do Grupo
de Trabalho Anticapitalismos & Sociabilidades Emergentes (ACySE) do Conselho Latinoamericano de Ciências
Sociais (CLACSO), espaço no qual esse texto assumiu suas primeiras feições. Autor de “Teoria social, democra-
cia e autonomia. Uma interpretação da experiência zapatista de autogoverno. 2. ed. Curitiba: Brazil Publishing,
2019. E-mail: cassiobrancaleone@gmail.com.
Auto-organização social no mundo do trabalho e produção: notas para uma crítica à economia solidária | Cassio Brancaleone
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1 Introdução
A cooperação voluntária, a democracia direta e a colaboração hori-
zontal, como valores e conteúdos práticos de experiências de autonomia,
protagonismo e socialização concretizadas no interior de empresas e uni-
dades produtivas, compõem o que poderíamos considerar como o reper-
tório de “tecnologias sócio-organizacionais” criado e acumulado pelos tra-
balhadores e atores sociais subalternos. No âmbito do processo histórico
de resistência e negação dos imperativos heteronômicos institucionalizados
pela forma-Capital e pela forma-Estado como instâncias vertebradoras do
mundo moderno (GRAEBER, 2010), os registros dessas experiências po-
dem ser localizados em distintos tempos e geograas. Sob denominações
como mutualismo, apoio mútuo, conselhismo, cooperativismo, ou, mais
recentemente, economia social, solidária e participativa, os processos que
lhe são resultantes podem ser compreendidos de um modo mais amplo
como “fenômenos de autogestão”. Este entendimento, porém, não implica
uma uniformização das características de suas manifestações, o que por si
justica a investigação sistemática de cada uma dessas experiências, nas
diversas temporalidades, espacialidades e nos regimes discursivos em que
se realizaram.
Por um lado, reconhece-se amplamente que a condição e o potencial
de “alternativa” societária dessa “outra economia”, em variadas circunstân-
cias, são minimizados e mesmo colocados em xeque pelo modo como es-
tas se inserem no âmbito de relações de subordinação e dependência com
agências, mecanismos e operadores do Estado e do mercado capitalista.
Por outro lado, com o advento do que se convencionou denominar como
acumulação exível e reestruturação produtiva, até mesmo alguns dos “ex-
pedientes” que participam da “forma autogestionária” de organizar o pro-
cesso de trabalho e produção foram absorvidos e apropriados por parte das
teorias e práticas de gestão e administração de empresas, de organizações
governamentais e não governamentais (como nos casos dos chamados “pa-
radigma gerencialista”, “modelo japonês” ou toyotismo), na maior parte das
vezes, para escamotear processos de exibilização e precarização de direitos
trabalhistas ou potencializar o desempenho funcional da força de trabalho
sob menor custo disciplinar.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 45 - Mai./Ago. de 2020
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Embora o debate contemporâneo se encontre hoje no Brasil e na
América Latina dominado pela gramática institucionalizada da chamada
“economia solidária” (SINGER; SOUZA, 2000), que contribui para pro-
mover um ambiente discursivo que visa a alcançar algum nível de consen-
so sobre a natureza e os possíveis desdobramentos dessas experiências, a
paisagem social e o enquadramento teórico da questão continuam sendo
caracterizados pela complexidade, heterogeneidade e ambivalência (LEI-
TE; ARAÚJO; LIMA, 2015).
O artigo em questão pretende esboçar um sucinto balanço críti-
co do repertório teórico mobilizado pelo movimento autodenominado
como economia solidária à luz de elementos constituintes da perspecti-
va autogestionária oriundos do campo anarquista e marxista heterodoxo,
confrontando-o com a proposta da chamada “economia participativa
(PARECON) (ALBERT, 2003), objetivando, com isso, contribuir com os
debates correntes inscritos no marco teórico dedicado à reexão e análise
de experiências contemporâneas de auto-organização social em espaços de
trabalho e produção.
2 Autogestão: uma velha ideia nova
[...] en el siglo XVIII el concepto de democracia canalizó y expresó las esperanzas revolu-
cionarias. En el siglo XIX ese papel lo desempeño el concepto de socialismo. Nuestra
tesis es que el concepto de autogestión está destinado a desempeñar el mismo papel
que desempeñó en sus días los de democracia y socialismo.
Pierre Rosanvallon
Ainda que a expressão “autogestão” seja relativamente recente, datan-
do sua incorporação no vocabulário político francês à década de 19602,
sua inscrição histórica como conteúdo de determinados valores e práti-
cas sociais produzidos no seio de trabalhadores, artesãos, camponeses e
outros atores subalternos, remonta sobretudo ao século XIX, particular-
2 A aparição pública da expressão remonta aos anos de 1950 e 1960, provavelmente com a tradução do termo
sérvio samoupravjie para o francês autogestion, objetivando a retomada sobre o debate a respeito da interven-
ção operária na economia no contexto do socialismo iuguslavo e seus desdobramentos como crítica ao modelo
soviético, tendo relevante recepção nas revistas francesas Socialismo ou Barbárie e Socialismo e Autogestão
(GUILLERM; BOURDET, 1976; LOCKS FILHO; VERONESE, 2012).

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