Auditor independente - sigilo profissional

AutorNelson Eizirik
Páginas136-147

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A consulta

A empresa de auditoria X solicita-nos um Parecer sobre o âmbito do poder disciplinar da Comissão de Valores Mobiliários - CVM - com relação aos auditores independentes, e, mais especificamente, no que toca à eventual competência daquela autarquia para exigir que o auditor lhe forneça cópias de seus papéis de trabalho.

O parecer
A) Introdução
  1. A questão apresentada pela Consu-lente é de inequívoca importância no contexto da regulação do mercado de capitais, no qual a figura do auditor independente assume relevante papel, tendo em vista especialmente a adequada delimitação do âmbito de atuação da Comissão de Valores Mobiliários - CVM - enquanto órgão regulamentador e fiscalizador do mercado.

  2. Objetivando uma análise ordenada e sistemática da matéria, desenvolveremos o presente Parecer da seguinte maneira:

  1. apreciação do poder de polícia administrativa da CVM com relação aos auditores independentes, apresentando os princípios que justificam a tutela daquela autarquia sobre as atividades de auditoria, assim como os limites de tal poder disciplinar;

  2. análise do instituto do sigilo profissional e sua aplicação ao auditor independente;

  3. confrontação das normas regulamentares da CVM que tratam dos papéis de trabalho com as regras e princípios que impõem ao auditor independente o dever de guardar sigilo;

  4. apresentação de conclusões.

B) Poder de polícia da CVM face ao auditor independente
  1. No modelo de regulamentação do mercado de capitais entre nós adotado, nitidamente inspirado no direito norte-ame-ricano, constitui princípio fundamental do disclosure, ou seja, da transparência das informações acerca das companhias que oferecem publicamente seus títulos aos investidores, em Bolsa de Valores ou no Mercado de Balcão, conforme já tivemos a oportunidade de analisar.1

  2. Vale observar, a propósito, que a Lei 6.404/76 adotou plenamente o princípio do

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    disclosure, objetivando, na disciplina das Demonstrações Financeiras das companhias, fazer com que elas, elaboradas com base em critérios uniformes, de fato refli-tam a situação patrimonial das sociedades anónimas, particularmente daquelas com seus títulos publicamente negociados.

  3. Ademais, consagrou expressamente a Lei das S.A. o dever de informar como uma das obrigações fundamentais do administrador de companhia aberta, ao dispor, no seu art. 157, § 49, que cumpre-lhe comunicar imediatamente à Bolsa de Valores e divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia.

  4. A Lei 6.385/76 igualmente consagrou o princípio do disclosure em vários de seus dispositivos (art. 49, VI, art. 19, art. 20), especialmente ao delegar à Comissão de Valores Mobiliários - CVM - o poder de fiscalizar a veiculação de informações relativas ao mercado de capitais (art. 89, III). Ademais, fixou claramente a competência normativa da CVM relativamente: à natureza e periodicidade das informações prestadas pelas companhias abertas; aos relatórios da administração das companhias; aos padrões de contabilidade e pareceres dos auditores independentes; à divulgação de deliberações da assembleia geral ou dos órgãos de administração (art. 22, parágrafo único).

  5. Uma vez adequadamente provido das informações relevantes sobre a companhia e sobre os títulos que está ela a emitir, o investidor tem condições de avaliar o mérito do empreendimento e a qualidade dos papéis.

  6. O postulado básico da regulação do mercado de capitais, assim, é de que o investidor estará protegido na medida em que lhe sejam prestadas todas as informações relevantes a respeito das companhias com os títulos publicamente negociados. As informações financeiras sobre as companhias abertas devem ser fidedignas, refletindo portanto a real situação financeira das companhias, e comparáveis, seguindo, na sua elaboração e apresentação, os mesmos critérios.

  7. Daí a importância da auditoria externa das demonstrações financeiras das entidades atuantes no mercado de capitais, atividade na qual está presente inegável interesse público.

  8. Tanto no caso das companhias abertas como das instituições financeiras justifica-se a obrigatoriedade de auditoria externa, dado o interesse público envolvido na correia apresentação de suas contas. Com efeito, busca-se, com a auditoria independente, verificar se os demonstrativos não só apresentam corretamente a situação financeira da empresa auditada, como também se estão conformes aos princípios de contabilidade geralmente aceitos.2

  9. Cumpre ao auditor independente conferir credibilidade às demonstrações contábeis das companhias abertas e das instituições financeiras, na medida em que revisa, como especialista que é, referidas demonstrações, de maneira absolutamente isenta, neutra, com total autonomia frente à empresa auditada.

  10. Com efeito, o objetivo da auditoria é precisamente o de verificar se os registros contábeis estão em conformidade com os princípios de contabilidade geralmente aceitos e se as demonstrações financeiras refletem adequadamente a situação económica do património e os resultados verificados no exercício examinado.3

  11. Nesse sentido, o Conselho Federal de Contabilidade, em suas Normas de Auditoria Independente das Demonstra-

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    ções Contábeis (NBC-T-11), assim conceitua a auditoria independente:

    A auditoria independente das demonstrações contábeis constitui o conjunto de procedimentos técnicos que tem como ob-jeti vo a emissão de parecer sobre a adequação com que estas representam a posição patrimonial e financeira, o resultado das operações, as mutações do património líquido e as origens e aplicações de recursos da entidade auditada, consoante as Normas Brasileiras de Contabilidade e a legislação específica, no que for pertinente.

  12. Tendo em vista as atividades que desenvolve, quando revisa as contas das companhias abertas e das instituições financeiras, manifesta-se, na atuação do auditor independente, inequívoco interesse público, dada a sua função de conferir credibilidade a ditas contas.

  13. É a presença do interesse público na função do auditor independente que legitima o poder de polícia administrativa conferido à CVM, à semelhança do que ocorre em outros países, conforme já analisamos,4 para regulamentar e fiscalizar o exercício da atividade de auditoria independente no âmbito do mercado de valores mobiliários.

  14. Assim, a atividade de auditoria independente das companhias abertas e instituições financeiras integrantes do mercado de valores mobiliários está submetida ao poder de polícia da CVM, nos limites da legislação específica, conforme veremos em seguida.

  15. Inicialmente, a Lei das S.A., em seu art. 177, § 39, estabelece que as demonstrações financeiras das companhias abertas deverão observar as normas expedidas pela CVM, devendo, ademais, ser obrigatoriamente auditadas por auditores independentes registrados na CVM.

  16. A Lei 6385/76, em seu art. 26, igualmente dispõe que somente as empresas de auditoria contábil ou auditores independentes registrados na CVM poderão auditar as demonstrações financeiras das companhias abertas e das instituições financeiras integrantes do sistema de distribuição e intermediação do mercado de valores mobiliários.

  17. Adicionalmente, dispõe a Lei 6.385/76, em seu art. 26, § 1º, que compete à CVM estabelecer as condições para registro e seu procedimento, assim como definir os casos em que o registro poderá ser recusado, suspenso ou cancelado. Ao longo do tempo, a CVM foi baixando normas regulamentadoras do dispositivo acima mencionado, sendo que, presentemente, a Instrução CVM 216, de 29.6.94, dispõe sobre o registro e o exercício da atividade de auditoria independente no âmbito do mercado de valores mobiliários, define os deveres e responsabilidades do auditor independente, bem como os casos em que o registro pode ser recusado, suspenso ou cancelado.

  18. A Lei 6385/76, ademais, previu, em seu art. 1º, V, o estabelecimento da disciplina e da fiscalização, dentre outras, da atividade de auditoria das companhias abertas.

  19. Nos termos do art. 99,1, letra e, da Lei 6.385/76, foi conferida à CVM, no âmbito do seu poder disciplinar do mercado de valores mobiliários, competência para examinar os registros contábeis, livros ou documentos dos auditores independentes.

  20. Constitui dever fundamental do auditor atuar de maneira independente,5 fundamentando sempre seu relatório em

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    argumentos absolutamente técnicos.6 Se o auditor comprometer sua independência ou agir em desacordo às normas técnicas de sua profissão, causando, em virtude de sua atuação dolosa ou culposa, danos a terceiros,7 deve por eles responder civilmente, a teor do art. 26, § 29 da Lei 6.385/76.8

  21. Por outro lado, há determinados limites ao poder de polícia administrativa delegado à CVM com relação à normati-zação e fiscalização dos auditores indepen-dentes, os quais obedecem a alguns princípios jurídicos fundamentais, conforme veremos em seguida.

  22. Nos termos da legislação e da regulamentação administrativa - Lei das S.A., art. 177, § 3º; Lei 6.385/76: art. 1º, inciso V; art. 22, parágrafo único, inciso IV; art. 26, §§ 1º e 29; e Instrução CVM n. 216/ 94, especialmente: art. 1º; art. 24: art. 26; e art. 29 - dois são os pressupostos de existência do poder de polícia da CVM com relação ao auditor independente:

  23. a natureza do trabalho desenvolvido pelo auditor; e

  24. a natureza da entidade auditada.

  25. Com relação à natureza do trabalho, vale notar que o auditor, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, desenvolve usualmente...

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