Audiencias publicas e seu impacto no processo decisorio: A ADPF 54 como estudo de caso/Public Hearings and their Impact in the Decision-Making Process: the ADPF 54 as a Case-Study.

AutorFilho, Roberto Fragale

"(O) risco (e) de as pessoas se darem conta de que todos os espacos de participacao sao de mentira, de que audiencia publica nao serve para nada, e com isso se retirarem do debate." (1) ALESSANDRA OROFINO Entre as diferentes controversias de forte apelo etico-moral que foram recentemente submetidas ao judiciario brasileiro, destaca-se a questao da antecipacao de partos de fetos anencefalos. Discutida nos autos da acao de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) no 54, ela foi assunto da terceira audiencia publica do Supremo Tribunal Federal (STF) com 29 diferentes participantes oriundos de 22 entidades governamentais e da sociedade civil. O exame desse rol indica que a audiencia foi caracterizada por uma ampla diversidade de representacao incluindo organizacoes religiosas, corporacoes profissionais, associacoes, alem de algumas pessoas fisicas, cujos depoimentos nao traduziriam necessariamente um conhecimento "tecnico", mas a vivencia concreta da circunstancia em discussao. Entre a distribuicao da acao e a decisao, transcorreram quase oito anos, sendo que a audiencia publica deu-se no meio desse percurso processual, cerca de quatro anos apos a distribuicao. No momento de sua realizacao, ela foi saudada pelo ministro Gilmar Mendes como uma pratica de abertura do judiciario ao debate publico, alem de um mecanismo de reforco democratico, fortemente ancorado em um crescente protagonismo dos tribunais, em especial do STF. Entretanto, um olhar mais critico nao permite assumir esse argumento como um truismo e requer um exame do real impacto da audiencia publica no processo decisorio da corte, o que pode ser agora realizado no ambito da ADPF no 54 gracas a publicacao, em 30 de abril de 2013, de seu acordao. Quase um ano depois de decidida pelo plenario e nove anos apos sua distribuicao, a publicacao de seu resultado encerra seu percurso processual e possibilita tomar tal debate como um estudo de caso englobando todas as etapas do processo decisorio do STF. Nesse sentido, este texto encontra-se dividido em quatro etapas: na primeira, recupera-se a controversia proposta pela ADPF no 54, para, na segunda, lancar-se um olhar especifico sobre sua audiencia publica. Na terceira, examina-se o acordao em si para, na quarta e ultima etapa, articular-se uma analise acerca do impacto da audiencia publica no processo decisorio da Corte, buscando-se compreender seu significado para a relacao da instituicao judiciaria com a democracia.

  1. O Processo

    Em 17 de junho de 2004, a Confederacao Nacional dos Trabalhadores na Saude (CNTS) protocolou no STF a ADPF no 54 sustentando que "a antecipacao terapeutica do parto do feto anencefalico nao e aborto." Em sua peticao inicial, ela alegava que interpretacao diversa, por um lado, criava riscos para o exercicio profissional dos trabalhadores da saude, porquanto sujeitos a persecucao penal, e, por outro lado, sujeitava as gestantes de fetos anencefalos a tortura psicologica, em virtude da "convivencia diuturna com a triste realidade e a lembranca ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca podera se tornar um ser vivo." (2) Em outras palavras, o poder publico, ao criar obstaculos a antecipacao terapeutica do parto de fetos anencefalos, estaria violando os preceitos constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana, legalidade, liberdade, autonomia da vontade e direito a saude. Examinado em sede provisoria, o pedido de liminar foi prontamente deferido para sobrestar "os processos e decisoes nao transitadas em julgado, (bem) como (para) tambem (reconhecer o) direito constitucional da gestante de submeter-se a operacao terapeutica de parto de fetos anencefalicos, a partir de laudo medico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto." (3)

    Naquele mesmo instante, Severina, filha de Dede e Maria, esposa de Rosivaldo e mae de Valmir, moradora de Cha Grande, no interior de Pernambuco, iniciava sua segunda gestacao. Protagonista do documentario "Uma vida Severina", (4) de Eliane Brum e Debora Diniz, ela descreve junto com Rosivaldo o resultado do ultrassom que lhe fez descobrir a anencefalia de seu feto, ou seja, que ele nao tinha a parte do cranio que lhe permitiria completar a formacao da cabeca. Era como se ela tivesse sido torada, disse-lhes o medico. Provavelmente, enquanto tudo isso acontecia, ela ainda nada sabia dos debates judiciais em torno da ADPF no 54 e da autorizacao provisoria que lhe permitia interromper a gravidez. Quis o destino que ela se internasse para fazer a interrupcao da gravidez no mesmo dia 20 de outubro de 2004 em que os ministros do STF apreciavam em plenario a liminar deferida pelo relator, ministro Marco Aurelio. Quis o destino que os ministros revogassem, por maioria de sete votos a quatro, (5) a parte da liminar que possibilitava a interrupcao terapeutica da gestacao justamente antes que ela iniciasse o procedimento. Quis o destino que a noticia chegasse aos medicos antes mesmo de sua publicacao no Diario Oficial. Quis o destino, enfim, que o procedimento nao fosse realizado. E la se foi Severina iniciar sua via-crucis judicial em busca de uma autorizacao que so lhe chegaria tres meses depois daquela tentativa frustrada e ao cabo de sete meses de gestacao. Alem da memoria de uma gestacao que resultaria necessariamente na morte do recemnascido, restaram para Severina e Rosivaldo uma foto da crianca morta e a certidao de obito, sem que sequer tivesse havido o registro do nascimento. Quando a historia deles foi por eles mesmos assistida em 17 de setembro de 2005, Rosivaldo terminou por dizer que qualquer pessoa, juiz ou nao, sentiria algo diante daquelas imagens, bastando para tanto ser humano. Entretanto, nem o tempo da gestacao de Severina nem tampouco o tempo cinematografico correspondem ao tempo judicial e, em outubro de 2005, quando o documentario era finalmente exibido ao grande publico, o STF havia tao somente reconhecido, em 28 de abril de 2005, a admissibilidade da ADPF e determinado o retorno dos autos ao ministro relator para examinar a pertinencia da realizacao de audiencia publica, consoante os termos do artigo 6, [section] 1 da Lei no 9.882/1999.

    Entre a decisao sugerindo o exame de sua pertinencia e a realizacao da audiencia publica, o tempo judicial consumiu 1.216 dias, ou seja, cerca de tres anos e quatro meses. Outros 1.303 dias seriam necessarios para que o processo fosse finalmente julgado em 11 de abril de 2012. Na ocasiao, Severina, que nao mais teve filhos, fez-se presente no STF incarnando, nas palavras da documentarista Debora Diniz, "uma existencia que a abstracao da lei acredita poder ignorar." (6) Ela pode assim acompanhar a deliberacao dos ministros declarando, por maioria de oito votos a dois, (7) a inconstitucionalidade da interpretacao segundo a qual a interrupcao da gravidez de feto anencefalo nao corresponderia a conduta penalmente tipificada como aborto. Outros 383 dias seriam ainda necessarios para que o acordao fosse publicado. Com o transito em julgado em 08 de maio de 2013, dois dias mais tarde e 3.249 dias apos sua distribuicao, o processo seria finalmente encaminhado com baixa para o arquivo. Enfim, quase nove anos depois de seu inicio, o processo chegava ao fim.

  2. A AUDIENCIA

    As audiencias publicas encontram-se referenciadas nas Leis no 9.868/1999, que dispoe sobre a acao direta de inconstitucionalidade e a acao declaratoria de constitucionalidade, e no 9.882/1999, que dispoe sobre a arguicao de descumprimento de preceito fundamental. Conquanto suas redacoes nao sejam exatamente identicas, (8) constata-se que as audiencias publicas no ambito do STF nao pretendiam instaurar um contraditorio entre as partes, mas dar voz a "pessoas com experiencia e autoridade na materia" controversa. Em outras palavras, elas possibilitariam subsidiar os ministros com argumentos tecnicos, cuja importancia escaparia ao tradicional exame puramente juridico-dogmatico. Essa necessidade no ambito da controversia em torno da ADPF no 54 ja fora reconhecida pelo ministro relator antes mesmo do plenario revogar a medida liminar por ele concedida. Com efeito, em decisao de 28 de setembro de 2004, o ministro relator dizia ter "como oportuno ouvir, em audiencia publica, nao so as entidades que requereram a admissao no processo como amicus curiae, a saber: Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, Catolicas pelo Direito de Decidir, Associacao Nacional Pro-vida e Pro-familia e Associacao de Desenvolvimento da Familia, como tambem as seguintes entidades: Federacao Brasileira de Ginecologia e Obstetricia, Sociedade Brasileira de Genetica Clinica, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de Saude, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja Universal, Instituto de Biotecnica, Direitos Humanos e Genero bem como o hoje deputado federal Jose Aristodemo Pinotti, este ultimo em razao da especializacao em pediatria, ginecologia, cirurgia e obstetricia e na qualidade de ex-Reitor da Unicamp, onde fundou e presidiu o Centro de Pesquisas Materno- Infantis de Campinas--CEMICAMP." (9)

    Nao obstante a precoce manifestacao favoravel do ministro relator, 1.531 dias, ou seja, pouco mais de quatro anos desde a distribuicao da ADPF, foram necessarios para que ocorresse sua audiencia publica, cuja realizacao foi desdobrada em quatro sessoes nos dias 26 e 28 de agosto e 04 e 19 de setembro de 2008, antes mesmo que ela viesse a ser regulamentada pelo STF. (10) Ela foi a terceira audiencia publica a ser realizada pela Corte, tendo sido precedida pelas audiencias sobre pesquisa com celulas-tronco embrionarias e sobre importacao de pneus usados, cujas realizacoes deram-se no ambito respectivo da ADI no 3.510 e da ADPF no 101 e ocorreram, tambem respectivamente, em 20 de abril de 2007 e 27 de junho de 2008. Ao longo das quatro sessoes, foram ouvidas 29 pessoas, das quais 19 se pronunciaram em nome de associacoes e organizacoes nao governamentais, organizacoes...

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