A Atual Compreensão do Processo do Trabalho

AutorCarolina Tupinambá
Ocupação do AutorMestre e Doutora em Direito Processual. Professora Adjunta de Processo do Trabalho e Prática Processual Trabalhista na UERJ
Páginas29-39

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1.1. A apresentação dos desafios

Em todas as civilizações da história, as relações de trabalho sempre movimentaram e promoveram a evolução do mundo. Em quaisquer épocas registradas da humanidade, a superação de ciclos e fases da realidade histórica deu-se através do trabalho do homem, ou seja, da capacidade da energia humana em transformar o meio em que vive1.

Assim, não é exagero afirmar que as relações de trabalho configuram alavancas propulsoras de estágios políticos, sociais, enfim, civilizatórios da experiência humanitária. Essas relações, no entanto, dificilmente se apresentam equilibradas e justas, sendo comum que a equação energia despendida versus retribuição social expresse resultados positivos e negativos, distanciados de uma média que revelaria um contrapeso ótimo e um aproveitamento perfeito do trabalho do homem em prol do amadurecimento da sociedade e vice-versa.

O constante descompasso derivado das insatisfações provenientes das relações de trabalho pode ser minimizado ou até corrigido (i) pelo equilíbrio das forças envolvidas, (ii) pelo diálogo humano e (iii) pela supervisão estatal dos esforços de reparação dos efeitos deletérios das recíprocas violações de direitos sociais. Esse tripé de valores deve estar apoiado em uma compreensão madura, utilitária e revolucionária do direito processual do trabalho.

Assim, um flanco da teoria geral do processo deve estar atento e voltado para a solução dos conflitos de interesses que pairam (i) sobre homens que dedicam suas irrecuperáveis energias para a transformação do meio, direcionando força, inteligência, beleza, técnica, tempo, e, por vezes, até amor, bem como (ii) sobre instituições, pessoas ou entidades que se diferenciam pela capacidade de cooptar esforços alheios em prol da geração de riquezas e recursos, para si e/ou de volta para a própria sociedade, que sempre caminhou embalada pelas mãos e audácia do empreendedorismo daqueles que têm o dom de canalizar o trabalho em direção do avanço civilizatório.

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Ao lado do Estado, trabalhadores e tomadores de serviços, em uma perspectiva macro, são os responsáveis pelo atual estágio social em que nos encontramos, assim como o foco atento de nossas esperanças em um mundo mais digno.

Neste quadro de personagens com interesses potencialmente conflitantes, ao contrário do que vem sendo divulgado nos bancos universitários, não se deve, aprioristicamente, tomar um desses grupos simplesmente como algoz de outro. Ao revés, solidariamente, cada um terá importante papel a ser desempenhado na sociedade e na história. Um não nasce refém de outro. É possível, na atual concepção democrática e capitalista em que vivemos, inclusive, que agentes de um grupo passem a habitar outro, sendo certo que a recíproca também é verdadeira. Tanto para trabalhadores como para tomadores de serviços apresentam-se desafios a serem superados. É preciso coragem para angariar homens com fôlego para promover a transformação de talentos em riqueza, assim como é preciso bravura para abdicar da energia própria em prol de outrem, sabendo que o esforço despendido não terá volta, o que importa na venda da própria força em garantia da autossobrevivência. Enfim, é preciso coragem e bravura para viver em quaisquer das circunstâncias que se apresentem.

O processo do trabalho deve ser um instrumento solidário e apaziguador, que incite o diálogo aberto entre as antagônicas razões diversamente legitimadas a depender do papel que se ocupe na sociedade, (i) se de trabalhador, (ii) se de tomador de trabalho, (iii) se de ambos ao mesmo tempo. É que a paz nas relações de trabalho é condição primordial para o desenvolvimento social.

Este trabalho foi escrito em homenagem aos dramas de que já participei e a que assisti ao longo dos anos em que tenho me dedicado a ajudar o processo do trabalho na superação de impasses deflagrados por conflitos entre mão de obra, tomadores de serviços e/ou sindicatos.

O processo trabalhista, definitivamente, não tem consciência de seu latente potencial positivo e tampouco noção do papel negativo que tem representado para o desenvolvimento de uma sociedade melhor, mais segura e mais justa.

Empresas, negócios, ou mesmo meras tentativas de empreendimentos, ao depararem um processo do trabalho automático, preconceituoso e negligente, muitas vezes não resistem às suas descompromissadas conclusões.

Já vi uma senhora que conviveu com uma enfermeira por miseráveis oito dias ser eternamente perseguida em uma condenação de noventa e seis mil reais. A moça dizia ter sido humilhada e vítima de xingamentos ao longo de seis meses (!) de relacionamento. A condenação da senhora baseou-se em um único depoimento de uma testemunha que afiançava a inicial. Não houve dinheiro para o recurso... Outrossim, vivenciei a experiência de uma pequena clínica de veterinários que empregava pessoas e gerava riquezas e que acabou quebrando para pagar a condenação de quase cem mil reais referente a uma ação trabalhista proposta por um motoqueiro que, às vezes, entregava exames de cachorros na casa de senhoras clientes com dificuldades de locomoção. O rapaz simplesmente conseguiu convencer juízes do trabalho de que era empregado da tal veterinária, cumprindo todos os peculiares requisitos de configuração de uma relação de emprego. Também fui testemunha de pessoas de bem que tiveram suas contas penhoradas pela justiça trabalhista unicamente por terem o mesmo sobrenome de sócios de uma empresa que, supõe-se, tenha empregado alguém que, posteriormente, tenha ajuizado ação de cobrança de eventuais créditos trabalhistas. Sei, ainda, de empresas que pararam de receber créditos devidos e, via de consequência, de pagar seus empregados, por conta de ordem judicial de bloqueio de faturamento. Confesso que já tomei conhecimento, inclusive, de condenações de empresas revéis em processos que, assim, acabaram por arcar com prejuízos referentes a supostos empregados que, na realidade, nunca pisaram dentro do estabelecimento, tendo se utilizado do processo trabalhista como genuína loteria, com a diferença de que sequer tiveram de pagar para jogar ou concorrer ao grande prêmio... Tenho notícia de grandes empresas emergentes de um novo tipo de trabalho, qual seja, o de Contact Center, que têm empregado milhões e milhões de brasileiros, que, simplesmente, estão em vias de desistir ante a condenações estapafúrdias que reputam ilícita a terceirização havida, e declaram vínculos empregatícios entre os empregados e os clientes dos empregadores, inviabilizando um negócio que tem sido o maior gerador de postos de trabalho no Brasil.

A falta de compromisso com as repercussões sociais das demandas, a inexistência de um espaço aberto ao diálogo franco, enfim, a ausência de garantias mínimas faz do processo do trabalho um antro de razões ocultas, as quais justificam uma espécie de “justiça-justiceira”, que pretende redistribuir as riquezas da nação, tirando dos que imagina ricos e dando aos que se supõe pobres.

O outro lado da moeda também tem sofrido bastante com este processo trabalhista descompensado. Não em menos oportunidades, tomei conhecimento de trabalhadores que foram perseguidos e adoeceram em seus ambientes de trabalho, manipulados por gestores neuróticos e gratuitamente cruéis. Assédios silenciosos e perversos que não lograram ser provados na Justiça, levando os empregados denunciadores a um desfecho processual vexatório, ridículo e ainda mais humilhante do que as próprias experiências vivenciadas no emprego e motivadoras da ação trabalhista. Presenciei o drama de pessoas sem a menor condição de produzir provas de um vínculo trabalhista duradouro, que perderam tudo na ação trabalhista e sabe-se lá até quando terão de trabalhar para se aposentarem. Certa feita, bem me lembro, advoguei para um rapaz que desistiu da ação logo após a primeira audiência em que o juiz fez piada e insinuou não acreditar em suas alegações antes mesmo de iniciada

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a instrução. O engenheiro, meu cliente, dizia que, sem concurso, havia trabalhado uma vida inteira para uma empresa pública, com responsabilidades inúmeras, inclusive, de gerenciamento de equipes etc. Na audiência, em que eu mesma estive presente, o magistrado disse que tinha amigos na tal empresa e que “duvidava muito de uma coisa dessas”. O rapaz, que ainda não tinha tido o prazer, ou a infelicidade, de conhecer a Justiça do Trabalho, ofendidíssimo, optou pela desistência da ação. Fora casos assim, não me deixam os dedos de minhas mãos contarem em quantas ações advoguei para ex-empregados, casos em que ganhamos, mas, até hoje, nada levamos.

Em suma, para ambos os destinatários, o processo do trabalho não tem se mostrado um instrumento eficiente. Empregadores e tomadores de serviços apostam em sua morosidade, enquanto trabalhadores agradecem com a cabeça baixa a sua índole protecionista. Fato é que o processo trabalhista não se compromete com a realidade social subjacente e prefere soluções desapegadas de seu objeto, tocando em frente uma tutela jurisdicional abstrata, pueril e estéril de valores. Uma tutela a serviço de uma medíocre pretensão, surda, muda e de olhos vendados, de se corrigir supostas diferenças sociais.

Todavia, esta usual e nefasta prostração do processo trabalhista não sobreviverá a sua exuberante função e tampouco à verdadeira consciência de seus desígnios.

A contaminação do sistema jurídico por valores constitucionais, máxime o da dignidade da pessoa humana como conceito central a que se...

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