A Efetiva ção dos Direitos Fundamentais Trabalhistas atrav és da Proposta de Confisco de Propriedades onde se Constata a Presença de Escravos : a PEC n. 438

AutorFernando Basto Ferraz - Elizabeth Alice Barbosa Silva de Araujo - William Paiva Marques Júnior
Páginas75-85

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1. introdução

Este trabalho tem como escopo principal apontar a proposta de emenda à Constituição que deter-mina o confisco de propriedades onde se constata a presença do trabalho escravo, a PEC-438, como um instrumento de concretização dos direitos fundamentais inerentes ao trabalho humano e de erradicação da prática escravista no contexto brasileiro.

Assim, antes de analisarmos o contexto socioeconômico atual sobre o trabalho escravo e suas implicações na estrutura normativa constitucional brasileira, faz-se mister apresentar um breve histó-rico sobre este tipo de prática no período pós-abolicionista, dando também um enfoque sobre os diver-sos termos que caracterizam o escravismo na seara nacional e internacional.

Após esta breve contextualização, passaremos a investigar as causas do aumento no número de trabalhadores libertados de cativeiros nas últimas décadas no país, os instrumentos normativos aplicáveis ao caso concreto e as possibilidades trazidas pelo texto da Constituição.

Por fim, passaremos a investigar a limitação constitucional quanto à previsão de instrumentos para o combate ao trabalho escravo, apontando a proposta de confisco das propriedades onde se encontra a exploração escravista como um meio de abolição deste tipo de prática no Brasil.

2. o trabalho escravo no contexto brasileiro
2.1. Definição e histórico

Durante o período compreendido entre os séculos XV e XIX, a exploração do trabalho escravo era legal em todo o território brasileiro. A escravidão gozava de forte proteção jurídica, caracterizada pela manutenção de um aparato legal que legitimava o poder de domínio do senhor sobre o escravo e impedia este de qualquer forma de insurreição contra seu dono, com a prescrição de condutas criminosas e penalidades severas. Nesta seara, o poder público tinha um papel importante na manutenção do modelo econômico dominante da época, que vinha desde a produção legislativa favorável à conservação do regime escravista até a cessão de incentivos para os latifundiários que mantivessem trabalhadores escravos em sua posse.

A concessão de créditos por parte do governo imperial tinha como motivação o fato de a mão de obra nas terras brasileiras ser escassa e dependente do tráfico negreiro africano. O escravo antigo era uma mercadoria cara e gerava, ao longo do tempo,

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vultosos gastos de manutenção para o seu senhor. Para a economia da época, ter um escravo representava um status de riqueza e de poder.

É importante ressaltarmos que a escravidão no período imperial tinha características étnicas bastante definidas, representadas principalmente pela comercialização e exploração de pessoas pertencentes a tribos africanas retiradas de seu território original, não desmerecendo também que etnias indígenas, em menor proporção, trabalhavam sob o regime de escravidão.

Após uma lenta conquista de direitos por parte das populações escravas, a abolição da escravatura foi formalmente promulgada através da Lei Áurea. Convém esclarecer que esta Lei não representou somente o fim da relação dominial entre o latifundiário e seus escravos, mas também decretou a derrocada do regime imperialista no Brasil, influenciando a construção de uma República Liberal nos moldes das nações europeias. A mudança da estrutura política do Estado brasileiro, no entanto, não culminou numa profunda alteração das relações socioeconômicas do país, visto que uma pequena elite agrária ainda continuava detendo o poder de influir nas principais decisões políticas da época.

Desta forma, mesmo após a abolição do regime escravista, o Poder Público não conseguiu erradicar totalmente a prática do escravismo no território nacional. As primeiras denúncias da utilização deste tipo de prática vieram principalmente através de escritores das primeiras décadas do século xx, como Lima Barreto, Euclides da Cunha e Ferreira de Castro1. Dentre as principais denúncias, destacamos as histórias envolvendo os trabalhadores encarregados de coletar o látex nos seringais na região amazônica para produzir borracha2. Os "Soldados da Borracha", como eram conhecidos os seringueiros da época, eram obrigados a trabalhar de forma exaustiva dentro da floresta, sendo pouco ou não recompensados pela atividade.

Neste período, surgiram, no plano nacional e internacional, alguns instrumentos normativos que tentariam acabar com as relações escravistas ainda existentes. Dentre eles, apontamos: o art. 1493 do

Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n. 2.848/40), que tipificou a conduta de reduzir alguém à condição análoga à de escravo como crime; as Convenções n. 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho - OIT (incorporadas ao plano normativo brasileiro pelos Decretos ns. 47.721/57 e 58.822/66, respectivamente), que previam a adoção de medidas para abolir o trabalho escravo dentro dos territórios dos Estados signatários; e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da ONU (Organização das Nações Unidas) de 1948, proclamando que nenhum homem será mantido em escravidão ou servidão.

A convenção n. 29, da Organização Internacional do Trabalho - OIT4, trata sobre o tema do trabalho escravo contemporâneo utilizando a expressão "trabalho forçado". Segundo a prescrição normativa da Organização, o trabalho forçado caracteriza-se pela ausência de vontade livre do trabalhador de abandonar o emprego em razão da coação (física ou moral) imposta pelo empregador. Esta nomenclatura era e continua sendo a mais utilizada nas legislações internacionais sobre a questão escravista contemporânea.

Além desse, alguns outros termos também servem para identificar a relação de coação, através do trabalho, entre o empregador e o empregado, como "trabalho servil", "trabalho exaustivo", "redução análoga ao trabalho escravo" e a própria nomenclatura "trabalho escravo", sendo que estas duas últimas são mais utilizadas no contexto brasileiro. Contudo, não é nosso objetivo neste trabalho apresentar as diver-gências de sentido entre os termos mais empregados.

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Utilizaremos, com maior ênfase, a expressão "trabalho escravo", por ser encontrada com maior frequência nas obras, nas notícias e na legislação pertinente sobre o tema, absorvendo o significado assumido pelo "trabalho forçado", como prescreve a Convenção n. 29 da OIT, bem como contendo as modalidades incorporadas pela nova redação do art. 149 do Código Penal.

2.2. O trabalho escravo contemporâneo no Brasil

Apesar da implantação, as legislações acima identificadas não surtiram o efeito que era esperado no Brasil. As relações agrícolas ainda continuavam profundamente ligadas à desvalorização do trabalhador campesino. Com o passar dos anos, a Igreja Católica teve (e ainda tem) um importante papel ao denunciar os locais onde eram encontrados trabalhadores submetidos a condições desumanas, principalmente através do trabalho desenvolvido pelas comissões pastorais nas mobilizações sociais pela luta por direitos básicos5. Dentre as organizações religiosas que ainda atuam na luta contra o trabalho escravo, destacamos a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Durante o governo ditatorial implantado no país entre as décadas de 60 a 80 a exploração de mão de obra escrava foi estimulada indiretamente, pois o Estado intensificou uma política de concessão de créditos agrícolas a grandes latifundiários para a ocupação da região amazônica, sem, no entanto, realizar uma fiscalização mais apurada do emprego deste crédito. Este favorecimento governamental não previa a redução das desigualdades no campo, resultando no aumento da concentração fundiária, principalmente nas regiões Norte e Centro-Oeste do país.

Assim relata Nágila Gomes:

Foi, pois, dentro do contexto de expansão da frente pioneira, na década de 60, que se intensificaram os registros da prática de aliciamento e redução de pessoas análogas ao trabalho escravo. Eles são o resultado do modelo adotado pelo governo para a ocupação da Amazônia. Um modelo que ampliou o poder da classe dominante, concentrou a terra nas mãos de alguns poucos e aumentou o poder pessoal dos proprietários rurais, deixando os trabalhadores totalmente dependentes destes últimos6.

Nas últimas décadas, houve uma modernização das formas e técnicas de produção do setor agrícola brasileiro, estimulada através de estímulos fiscais do setor público. No entanto, tal mudança não surtiu efeito nas relações trabalhistas no campo, onde ainda é grande o número de trabalhadores vivendo em condições desumanas. Ressalte-se que o nível de concentração fundiária também se intensificou nesse lapso temporal, principalmente nas mãos dos empresários do "agronegócio"; em contrapartida, houve o aumento da falência das pequenas e médias propriedades rurais7, como relata Stédile no relatório vencido da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito - CPMI - da Terra:

(...) Segundo, aumentou a concentração da propriedade da terra nos últimos dez anos. (...) Os dados do INCRA revelam que as propriedades acima de mil hectares, nos 12 anos de 1990 a 2002, encamparam 20 milhões de hectares a mais do que já tinham. Por outro lado, 960 mil pequenas propriedades com menos de cem hectares desapareceram, foram à falência, gerando concentração. Houve uma marginalização dos pequenos agricultores familiares8.

Diferentemente do período imperial e colonial, o trabalho escravo hoje não é fruto da relação geral de propriedade entre o senhor e o escravo, estimulada pela lei, mas sim de uma relação de dependência do obreiro com o seu empregador...

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