Atos inerentes ao processo legislativo (enunciação) podem impor limites interpretativos à lei produzida? (Análise decorrente da interpretação autêntica dada ao subitem 4.07 ? serviços farmacêuticos ? da lista anexa à Lei Complementar 116/2003)

AutorDanilo Monteiro de Castro
CargoMestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Advogado e Consultor
Páginas113-123

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1. Introdução

Estas reflexões decorrem de problema prático enfrentado que nos levou ao questionamento de determinadas premissas teóricas hodiernamente adotadas (na amplitude em que têm sido adotadas), exatamente como bem colocou Lourival Vilanova1ser o papel do jurista, "ponto de intersecção da teoria e da prática, da ciência e da experiência".

Tal motivação, em suma, adveio do sentido atribuído (construído) a determinado enunciado prescritivo pelo Poder Judiciário em sentido oposto ao pretendido pelo Poder Legislativo (tal sentido pretendido pelo Legislativo encontra-se devidamente relatado em enunciados relacionados à tramitação desta lei) e, provocado quanto a isso (construção de sentido em desacordo com os relatos constitutivos daquela mensagem interpretada) o argumento do Poder Judiciário para manutenção de sua construção foi o de que o enunciado jurídico, uma vez positivado, tem "vida própria", pouco importando a intenção (vontade) do emissor, cabendo ao receptor a construção do sentido que bem entender.

Nunca questionamos essa premissa, de que a construção do sentido compete ao receptor, cabendo ao emissor torcer para que sua mensagem alcance a finalidade pretendida. Pelo contrário, ela nos parece perfeitamente coerente às construções filosóficas posteriores ao chamado giro-linguístico.

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Todavia, quando ela foi inserida dentro deste contexto, onde há um relato (devidamente formalizado) do Senado Federal, rejeitando pretensão da Câmara dos Deputados de inserção de determinado enunciado no texto da lei e, posteriormente, vem o Poder Judiciário e insere no sistema tal enunciado vedado mediante "interpretação extensiva"2 daquele efetivamente promulgado, isso nos motivou a repensar aquela premissa, não no intuito de afastá-la por completo, mas de verificar a validade de seu alcance ilimitado.

Para facilitar a visualização do ocorrido (conflito entre enunciados - que, no caso, impõe conflito entre "Poderes"), vamos a sua abstração lógica:3

(i) Enunciado proposto pelo Senado Federal: "(a ? c)";

(ii) Alteração proposta pela Câmara dos Deputados: "(a v b ? c)";

(iii) Alteração rejeitada no Poder Legislativo "(b ? -c)". Dispositivo legal: "D(a ? c)"; e

(iv) Partindo da premissa (b ? a), o Poder Judiciário construiu o enunciado: "D(b ? c)".

Desformalizando, (i) o Senado Federal apresentou proposta de lei com o seguinte enunciado: "ante o fato ‘a’ deve ser a consequência jurídica ‘c’"; (ii) a Câmara dos Deputados buscou ampliar a hipótese normativa inserindo novo elemento motivador da consequência ‘c’ (ante os fatos ‘a’ e/ou4 ‘b’ deve ser a consequência jurídica ‘c’); (iii) tal ampliação proposta pela Câmara dos Deputados foi rejeitada (ou seja, não houve interesse legislativo em ‘b’ implicar ‘c’ - essa ausência de interesse encontra-se explicitada em Parecer do Senado Federal) e, portanto, o relato legislativo vencedor5(enunciado jurídico prescritivo) foi "ante o fato ‘a’ deve ser6a consequência jurídica ‘c’"; (iv) veio, então, o Poder Judiciário e, analisando um caso concreto interpretou que ‘b’ está contido em ‘a’ (ou seja, ‘b’ é espécie do gênero ‘a’7) e, portanto, se a norma dispõe "ante o fato ‘a’ deve ser a consequência jurídica ‘c’", é válida a construção "ante o fato ‘b’ deve ser a consequência ‘c’".

Ora, se a pretensão da Câmara dos Deputados (de ampliação do enunciado, para que a consequência "c" alcançasse o fato

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"b") foi rejeitada no processo legislativo (e tal rejeição não se deu por ser implícito que o fato "b" pertence ao conjunto "a"; muito pelo contrário, a rejeição deu-se expressamente para que o fato "b" não implicasse a consequência "c") encontra-se evidente o conflito linguístico entre os Poderes Legislativo (b ? -c) e Judiciário (b ? c).

Importante destacar que a construção feita pelo Poder Judiciário não invocou outra norma de igual ou superior hierarquia existente no sistema no intuito de validar tal raciocínio (se assim fosse, inexistiria razão para as considerações aqui presentes). A inter-pretação dada parte tão somente do raciocínio de que "a" (gênero) compõe "b" (espécie), e de que o enunciado, uma vez proferido, ganha "vida própria", cabendo apenas ao intérprete a construção do sentido.

Ciente de que o Poder Legislativo não quis regular determinada relação intersubjetiva e, principalmente, estando essa informação expressa em ato formal relacionado à enunciação8da lei interpretada (intenção legislativa devidamente vertida em linguagem, portanto), pode o Poder Judiciário manter a construção de sentido feita, regulando tal relação intersubjetiva em frontal oposição àquela informação?

É a resposta a este questionamento que se pretende no presente estudo.

2. Direito comunicacional (emissor e receptor)

O problema trazido à baila, insista-se, não diz respeito a eventual invalidação formal da norma, ou invalidação material ante o aparente conflito com o conteúdo de norma de igual ou superior hierarquia, mas sim gira em torno de possível conflito entre o enunciado construído (interpretação) e relatos existentes no processo legislativo do suporte físico que o motivou (com eles é possível constatar que o sentido construído é diametralmente oposto ao pretendido pelo emissor).

Para enfrentar essa questão, de inquestionável caráter comunicacional, necessário analisar a relação emissor/receptor, mormente no contexto jurídico.

Por tudo que já foi dito, nos perece óbvio o papel do destinatário da mensagem, qual seja, construir sentido ao enunciado recebido. Assim, se é ele (receptor) quem vai construir o sentido, qual é, então, a importância do emissor? Ugo Volli9esclarece: "(...) o destinatário acredita descobrir o sentido de alguma coisa, mas na realidade recebe uma comunicação cuidadosamente elaborada por um emissor. De modo geral, é até possível pensar toda a comunicação como uma complexa manipulação do ambiente operada por alguém (o emissor) interessado em fazer com que algum outro (o destinatário) perceba um certo sentido".

É certo que, na sequência, este semiólogo italiano vai discorrer sobre a importância do receptor (condição necessária à comunicação, em detrimento à figura do emissor que, para ele, pode inexistir num ato comunicacional), mas a questão que se quer aqui frisar é a relevância do agente responsável pela enunciação na comunicação jurídica.

Gregório Robles,10jurista espanhol considerado um dos precursores do Direito Comunicacional, fortalece a importância do

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emissor na comunicação jurídica ao afirmar que "a decisão geradora de texto jurídico limita o sentido deste". Ora, se o sentido do texto é limitado pela decisão de gerá-lo e, quem dá "vida" ao enunciado é o emissor, evidenciado está sua relevância no contexto comunicacional.

Comprovando a importância do emissor no ato de comunicação, Lucas Galvão de Britto,11em obra inédita, destaca seis etapas intrasubjetivas que antecedem o ato de fala, quais sejam: (i) dúvida ou ideia; (ii) aporia;

(iii) decisão; (iv) estímulo; (v) vontade; e

(vi) resistências (inclui as três primeiras na subclasse "Proposição" e, as três últimas, na subclasse "Objetivação"). Somente com a transposição das resistências, e consequente realização do ato de fala, será possível falar em intersubjetividade linguística. Esclarece o autor:

"A comunicação, vista como um fenômeno para além da intersubjetividade comporta também os domínios da linguagem intrasubjetiva. Ali estarão as etapas da enunciação que darão forma ao enunciado.

"Como o alcance ao seu conteúdo é impossível, eis que a enunciação se esvai no tempo de sua realização, restarão apenas as marcas da enunciação-enunciada, os dícticos (ou dêiticos) que permitam conhecer os dados da intencionalidade (o que não coincide com a voluntariedade consciente) do agente, sem o qual, é impossível a comunicação.

"A intencionalidade é também pressuposto para o ato de recepção a ser realizado pelo receptor da mensagem. O dado da intencionalidade montado pela enunciação enunciada está para a comunicação, como está a verdade lógica para a argumentação. O acesso a uma intencionalidade ‘por correspondência’ é impossível, contudo é imperioso que o receptor pressuponha alguma intenção para que possa construir o sentido da mensagem.

"Ainda que se costume afirmar que, para o direito, observado por uma perspectiva comunicativa, o domínio que importará a análise é o da intersubjetividade, a importância de estudar os elementos envolvidos na etapa de produção do enunciado, sob sua perspectiva intrasubjetiva, é evidenciada pelo reconhecimento dos dados da enunciação (pertencentes à linguagem intrasubjetiva) enquanto pressupostos comunicacionais à formação da mensagem.

"Se não é possível remontar o exato teor da enunciação em todas as suas etapas a partir dos vestígios por ela deixados (enunciação enunciada), a ainda que parcial reconstrução desta é, ao menos, importante dado a auxiliar na construção do conteúdo da mensagem e no poder de convencimento da proposição formada."

O estudo acima é bastante elucidativo e, no contexto do direito, facilitador da resolução de problemas hermenêuticos, como os destacados no início deste estudo, já que mesmo sendo inalcançável o fato-enunciação em sua integralidade, é possível a sua reconstrução parcial e, com ela, provar que determinadas significações não cabem nos limites traçados pelo emissor da mensagem jurídica (e nesse momento, já podemos afirmar que tais limites existem).

Isso porque, no direito não há integrali-dade intrasubjetiva nas etapas que antecedem a enunciação da norma, pelo contrário, boa parte do processo de enunciação12está vertida em linguagem (intersubjetiva, portanto), ou seja, existem relatos (documentos) facilitadores da reconstrução, sempre parcial, da enunciação.

P...

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