Ativismo judicial e a concretização de prestações sociais

AutorMichelle Chalbaud Biscaia Hartmann
CargoAdvogada, pós-graduada pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná, Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil - Curitiba e Doutoranda em Ciência Jurídico-Política pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa ? Portugal
Páginas153-169

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1. A judicialização das prestações sociais: alguns esclarecimentos terminológicos necessários

Por conta da crise de efetividade enfrentada pelos direitos fundamentais sociais na atualidade, não há como se afastar a possibilidade do Poder Judiciário atuar concretizando aqueles direitos previstos no texto constitucional, determinando tanto a garantia individual de bens e serviços quanto a adoção de políticas públicas. Isto porque, este atua

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para proteger os direitos ligados às liberdades individuais e para garantir concretização aos direitos sociais, que exigem prestações estatais (negativas ou positivas).

Assim, os direitos sociais como direitos complexos que são, estão relacionados com as formas de se dirimir as desigualdades sociais (âmbito coletivo ligado a noção de solidariedade) e visam assegurar uma vida digna e o pleno desenvolvimento da personalidade (âmbito individual ligado a preservação da dignidade humana e a condições mínimas existenciais). Em outras palavras, a sua complexidade decorre do fato de que tais direitos visam alcançar a liberdade real dos indivíduos e a igualdade material.

Por esta razão, quando tratamos de judicialização de prestações sociais a maior dificuldade a ser enfrentada é adequar a garantia das prestações necessárias para a manutenção da vida humana com qualidade de cada cidadão e a sua distribuição coletiva, de uma sorte de bens e serviços públicos básicos.

Cumpre esclarecer que, a judicialização compreende o que parte da doutrina designa de "ativismo judicial", ou seja, a possibilidade do Poder Judiciário condenar os poderes públicos a promover prestações sociais. Isso decorre da atual configuração do Estado - Estado Democrático de Direito, que tem o Poder Judiciário como protagonista e responsável pela harmonização da estrutura estatal, pela concretização dos direitos fundamentais e pela preservação da dignidade humana. Hoje é inimaginável tê-lo como um poder passivo às necessidades sociais mutantes, ainda mais quando se trata de concretizar direitos subjeti-vos previstos no texto constitucional.

Em linhas gerais, os direitos sociais são direitos subjetivos dos indivíduos ou de uma coletividade, oponíveis contra o Estado ou contra particulares e, que garantem a possibilidade de socorro à via judicial para torná-los efetivos, razão pela qual não podem ser considerados como meras normas programáticas.

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Destarte, quando tratamos da judicialização dos direitos sociais ela pode envolver tanto a perspectiva de satisfação de pretensão do cidadão à política pública (envolvendo a criação de políticas públicas que atinjam uma coletividade) quanto a adjudicação individual de bens públicos, com a proteção da vida e da dignidade humana (envolvendo a prestação de um direito que corresponde ao mínimo para uma existência digna).

Destaca-se que, a criação de políticas públicas é juízo de conveniência e oportunidade dos administradores públicos que determinam o meio e a forma como os recursos públicos serão investidos para que o Estado cumpra fins sociais, como por exemplo, no caso de dos investimentos na saúde, a viabilização do direito à moradia e do maior acesso à educação. Tal procedimento para a sua instituição é complexo, envolvendo aspectos administrativos, técnicos e políticos (MEKSENAS, 2002, p. 112-113).

Tecidos esses esclarecimentos, indispensáveis para o desenvolvimento das ideias, questiona-se: a judicialização estaria de alguma forma limitada ou, em matéria de direitos fundamentais, o Judiciário pode concede tudo a todos, criando inclusive políticas públicas?

Atualmente, na configuração política do Estado (Estado Democrático de Direito), os bens e valores contidos na Constituição são considerados como uma pauta mínima que vincula a todos e até mesmo o Estado. Assim, superada a estrita legalidade do período Liberal, o Judiciário passa a ser valorizado, pois o Direito encerra normas e valores morais que exigem interpretação judicial. Vislumbra-se, então, que a missão do Judiciário é transformar a realidade social, buscar pela justiça social, adaptando as normas abstratamente previstas no texto constitucional às novas necessidades humanas, mantendo-se a força normativa da Constituição (HESSE, 2009. p. 98 e 108)1.

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Portanto, a priori, pode-se afirmar que o Judiciário poderá sempre atuar ponderando os interesses nos casos concretos e implementará políticas sociais quando os poderes públicos, originariamente legitimados, forem ineficientes ou omissos.

Observa-se, assim, que duas podem ser as situações a serem analisadas em um caso concreto. Uma, em que há previsão de um direito social e a administração pública prevê a sua concretização por meio de políticas governamentais, mas não as implementa e, outra, em que há previsão do direito social, porém os poderes públicos sequer os concretiza, ou seja, são absolutamente omissos.

Na primeira hipótese resta claro que não se está diante de casos difíceis, que demandam maior cautela, de maneira que a atuação do Poder Judiciário se restringirá a aplicar uma regra já criada pelo próprio poder público ao caso concreto. Tratando-se de um controle na execução/implementação dos direitos sociais. Contudo, é na segunda hipótese que surgem as maiores controvérsias quanto o grau de interferência e definição das políticas públicas pelo Poder Judiciário.

Nestes casos suscitam-se os argumentos de matriz democrática, os ligados a legitimidade do Poder Judiciário para fazer escolhas políticas, a separação dos poderes, a limitação dos recursos, a reserva do possível, a preservação do mínimo existencial, dentre outros, que serão melhor explorados na sequência.

Contudo, previamente é possível afirmar que, mesmos nestes casos onde há omissões, não há como se afastar a possibilidade de socorro ao Poder Judiciário para concretizar os direitos sociais.

Essa ideia se encontra de tal modo sedimentada que constata-se uma verdadeira judicialização sistemática, no sentido de que, todas as instâncias do Poder Judiciário vêm garantindo e tornando reais/concretos os direitos abstratamente previstos na Constituição Federal

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de 1988, àqueles cidadãos que provocam a via jurisdicional, em especial quando envolve o direito à saúde, à moradia e à educação.

Este protagonismo do Poder Judiciário quanto a concretização das prestações sociais representa uma maneira de garantir aos cidadãos que ao menos os seus direitos indispensáveis para o desenvolvimento de uma vida digna em sociedade serão concretizados, fomentando-se a segurança jurídica, a dignidade da pessoa humana e o bem-estar social.

Deste modo, não está o Poder Judiciário limitado a captar e determinar o sentido das normas expressas na Constituição, pois não está limitado ao significado semântico e à vontade do legislador (como defende a corrente procedimentalista habermasiana) (HABERMAS, 1997. p. 297).

Portanto, não há fundamentos sólidos para se sustentar que apenas observando a separação do exercício das funções dos poderes clássica (executivo, legislativo e judiciário), o procedimento democrático (escolha pela maioria) e as razões que são dadas na lei (legalismo), se estaria garantindo decisões...

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