A Criminalização da Atividade Empresarial no Brasil: Entre Conceitos e Preconceitos

AutorLuciano Feldens
CargoAdvogado. Doutor em Direito Constitucional (Universidade de Valladolid - Espanha) e mestre em Direito (UNISINOS)
Páginas6-11

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1. O problema

Percebemos, nas demandas criminais brasileiras, uma progressiva rotulação de empresas lícitas - regularmente constituídas sob as leis do país, com objeto social definido e alinhado às atividades econômicas efetivamente desenvolvidas -como "organizações criminosas", isso ante a circunstância de que determinado delito fora praticado por meio do corpo diretivo da respectiva pessoa jurídica.

Um dos consectários lógicos decorrentes dessa gravíssima imputação já seria o bastante à constatação de sua impropriedade: a dissolução da "organização criminosa" - algo de se esperar, quando efetivamente estivermos diante de uma espécie do gênero - apenas se atingiria mediante a dissolução da própria empresa.

Esse movimento não representa coisa distinta que a criminalização da atividade empresarial no Brasil, mediante a ilegítima transposição, ao mundo das pessoas jurídicas formais, de um conceito ainda flui-do, de baixa densidade normativa e escasso apuro dogmático; imprestável, portanto, aos fins a que vem sendo indiscriminadamente utilizado.

2. Do direito penal clássico ao direito penal económico

A expansão do direito penal clássico, com a ampliação do espectro de tutela para determinadas áreas do setor econômico, surge como decorrência da expansão do próprio direito - mais especificamente, dos direitos - e do incremento dos interesses e necessidades sociais de nossa época.

Decerto, no plano político-normativo, boa parte das constituições do século XX, para além de cingirem-se à articulação do poder (instituição, divisão, limitação e controle) e ao arrolamento de uma carta de direitos (civis), passaram a contabilizar normas envolventes da intervenção do Estado nos se-tores econômico e social, estabelecendo impulsos e diretrizes à consecução de fins e objetivos também constitucionalizados1.

Princípios atrelados à ordem econômica (propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência e defesa do consumidor) receberiam incorporação constitucional (art. 170 da CF/1988). A constitucionalização da ordem tributária, no Brasil e em diversos países da Europa Ocidental, se moldaria à base do dever (fundamental) de contribuir ao sustento das despesas públicas. O sistema financeiro se instituiria de modo a "promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade" (art. 192 da CF/1988) e a seguridade social haveria de ser financiada "por toda a sociedade" (art. 195 da CF/1988). No capítulo destinado ao meio ambiente assentar-se-ia que "todos têm direito ao meio

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ambiente ecologicamente equilibrado" (art. 225 da CF/1988).

No plano da dinâmica social, o acelerado desenvolvimento da técnica e o redimensionamento da ge-opolítica dos mercados (abertura e internacionalização da economia) abriria novos canais de relacionamento, redundando na propagação da oferta de serviços e bens de consumo, produzindo, nessa esteira, novas necessidades sociais, retratáveis no lapidar diagnóstico de Silva Sánchez: "a crescente dependência do ser humano a realidades externas a si mesmo"2.

Tudo a gerar, enfim, novos interesses e, no influxo desses, "novos direitos". E o que não é difícil constatar: esses novos direitos, em progressiva expansão, vão consumindo espaços até então desocupados (livres de direito), fecundando novas áreas de tensão.

Acresça-se a isso o significativo aumento populacional, a introduzir novos titulares de direitos reivindicando seu espaço em um ambiente universal onde a soma dos bens disponíveis é indubitavelmente inferior à soma das expectativas dos indivíduos.

Mais direitos (socioeconômi-cos) e mais titulares de direitos reivindicando-os. Mais conflitos, portanto.

Essa nova forma de viver em sociedade, a que todos estamos condicionados, trouxe consigo novos perigos, em um mundo onde até mesmo a convivência virtual mostra-se hábil a gerar lesões concretas, bastando-nos exemplificar com as novas práticas de ilícitos nascidas a partir da revolução na seara das comunicações (cibercri-mes).

Parece evidente que o direito penal não passaria incólume por essa transformação social. Em uma sociedade passível de crescer e deteriorar-se em rede, não se ha-veria de esperar pelo dano. A ilega-lização do perigo - muito presente nos delitos econômicos, embora não exclusivamente - mostrava-se como alternativa.

Premido portais circunstâncias, aliadas a um igualmente crescente reclamo por segurança, o tradicional direito penal avançaria suas barreiras, reapresentando-se, agora, sob a feição de um direito penal da prevenção, abrindo espaço a novas áreas de intervenção: o direito penal clássico se faria acompanhar do direito penal econômico.

3. Problemas decorrentes de uma reorientação político-criminal legítima; porém, destituída de apuro dogmático

A par da inquestionável adequação, em gênero, dessa reorientação de política criminal, é inegável que essa expansão do direito penal não se fez acompanhar de um desenvolvimento dogmático à altura; novas formas de tutela foram enxertadas em uma teoria do delito inegavelmente moldada para a criminalidade clássica.

Tomemos um dado elucidativo: a "nova" Parte Geral do Código Penal, gestada no início dos anos 80, com enfoque na criminalidade então vigente, entraria em vigor em 1985. A seu turno, os delitos que hoje compreendemos como a representação mais evidente do denominado direito penal econômico viriam à luz em momento posterior: Lei 7.492/86 (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), Lei 8.137/90 (crimes contra a Ordem Econômica e Tri-butária) e Lei 9.613/98 (crimes de Lavagem de Capitais).

Não é difícil constatar o descompasso: a teoria da norma penal não foi projetada para fazer frente a essas novas formas de intervenção. E os efeitos disso se fizeram sentir. Desde logo, surgiram, entre tantos outros, problemas relacionados:

(a) à tipicidade, a partir da instituição de fórmulas típicas demasiado abrangentes (v.g., art. 4o, caput e parágrafo único, da Lei 7.492/86, em correspondência a seu art. Io, parágrafo único, incisos I e II);

(b) à ilicitude material, sobretudo nos crimes de perigo, em alguns casos projetados na forma omissiva;

(c) à culpabilidade, consideradas as contingências econômicas da empresa (v.g., a valoração ju-risprudencial das "dificuldades financeiras" da empresa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade no delito do art. 2o, inc. II, da Lei 8.137/90);

(d) à materialidade do delito, ou mesmo seu momento consumativo (v.g., HC 81.611-STF, j. 10/12/2003, acerca da configuração do delito do art. Io da Lei 8.137/90),

(e) à sanção penal no delito econômico continuado (v.g., relativização do art. 72 do CP, por exemplo, nos crimes de omissão no recolhimento de contribuições previ-denciárias), e

(f) à delimitação da autoria nos delitos societários, o que estimularia a proliferação de "denúncias genéricas" e, em uma segunda onda, a migração à bastante dis-

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cutível responsabilidade penal da pessoa jurídica3.

Neste último particular, a tentativa de sobrepor ao direito penal econômico os institutos modelados no contexto do - e para o - direito penal clássico alimentaria uma práxis temerária, para dizer o menos, nas demandas...

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