Atitude critica e o sujeito de direitos das politicas (nao) identitarias/Critical attitude and the subject of rights of (non) identity politics.

AutorDe Araujo, Dhyego Camara
CargoReport
  1. Introducao

    Uma das facetas do cenario juridico-politico contemporaneo refere-se aos movimentos de reivindicacoes de direitos radicados em tracos identitarios. Tomando como exemplos apenas algumas acoes constitucionais no ambito do Supremo Tribunal Federal (STF), o reconhecimento de determinados sujeitos como titulares de direitos dirige-se a identidade como seu ponto de fundamentacao. Dentre tais exemplos, pode-se citar o reconhecimento juridico de uniao estavel formada por pessoas do mesmo sexo (BRASIL, 2011), o ingresso de pessoas negras nas universidades publicas (BRASIL, 2012) e no servico publico por meio de cotas (BRASIL, 2017), a posse de terras as comunidades quilombolas (BRASIL, 2018a), a possiblidade de retificacao de nome e designativo de sexo (BRASIL, 2018b) nos registros publicos de pessoas (trans) (1) etc.

    De fato, a garantia desses direitos pelo STF alinha-se ao objetivo constitucional de construcao de uma sociedade livre, justa e solidaria, de tal sorte que o reconhecimento de determinados individuos como titulares de direitos implica, primeiro, na construcao de uma identidade estabilizada, conforme expressao butleriana (BUTLER, 2016). Pode-se citar pelos menos dois pontos problematicos desse panorama: o primeiro situa-se na cristalizacao de uma identidade tida como verdadeira, promovendo a formatacao dos sujeitos em um unico modo de ser; o segundo, e que decorre da anterior cristalizacao, refere-se a disposicao dos individuos numa rede hierarquica, estabelecendo cortes no corpo coletivo entre aqueles mais aptos a titularidade dos direitos e aqueles marcados pela suspeicao (ARAUJO, 2017).

    Muito embora cientes da complexidade que envolve trabalhar com o tema das identidades no direito, o presente artigo nao propoe uma analise detida a respeito dos percursos historicos de construcoes das subjetividades daqueles envolvidos nas acoes constitucionais mencionadas. Busca-se, de outro modo, identificar pontos de contato delicados quando o direito e interpelado pelas politicas identitarias, tratando-se as situacoes aqui elencadas mais de tentativas de explicitacao do problema, do que o esgotamento teorico e pratico das questoes juridicas relativas aos grupos especificos.

    A titulo de ilustracao, percebemos tal situacao na necessidade juridica e politica de se discutir a existencia de arranjos familiares para alem do padrao heteronormativo. De um lado, a naturalizacao heterossexual do parentesco (BUTLER, 2003) revela uma rede de diferenciacoes juridicas entre pessoas mais aptas que outras a constituir familias de acordo com sua identidade de genero e orientacao sexual. De outro, a integracao juridica promovida por tal reconhecimento acarreta distincao entre sujeitos nao-heterossexuais aptos a constituir familia em face de outros inaptos. Vale dizer, o reconhecimento juridico nao se aplica da mesma maneira a um casal formado por dois homens cis homossexuais, a uma mulher (trans) com uma mulher cis, ou a uma travesti solteira que deseje adotar filhos.

    Desse modo, o reconhecimento juridico implica, tambem ele, em um novo sistema de hierarquias pela construcao e formatacao de um tipo de identidade--metafisica da identidade (2). Entretanto, essa integracao metafisica das identidades no direito permitira a constante problematizacao daquilo tido, momentaneamente, como sujeito de direitos apto a compor uma familia, abrindo novos espacos para construcao de novos titulares de direitos--identidade-acontecimento (3). O desenrolar dessa tecnologia juridica se da nessa tensao entre protecao pela formatacao e hierarquizacao dos individuos e a abertura para futuras rearticulacoes das politicas (nao) identitarias.

    Nao raras vezes, essa estabilizacao das identidades e garantida por certos usos da historia que buscam desvendar no passado o ponto fundacional desses sujeitos, garantindo, com isso, seja a sua protecao juridica, seja a justificativa para promocao/manutencao de exclusoes. Ao analisarmos, por exemplo, o estabelecimento do criterio juridico do "marco temporal" para concessao do direito de posse de terra as comunidades quilombolas, verificamos um recurso a historia direcionado a (des)legitimacao de sujeitos de direitos com base numa construcao de subjetividade metafisica ligada a uma temporalidade especifica.

    Antevendo os perigosos desdobramentos da cristalizacao de uma identidade verdadeira, ja na decada de 80 Foucault alertava para os riscos da formulacao de direitos radicados em um traco identitario. Para o filosofo frances ha tres tipos de lutas (4) no campo social: aquelas que se opoem as formas de dominacao (etnicas, religiosas, raciais); aquelas que denunciam formas de exploracao e que separam o individuo do que ele produz; e por fim, e aqui as que mais nos interessam, as que combatem toda essa rede de conexoes existente entre o individuo e ele mesmo e que garantem, desse modo, sua submissao ao governo (5) dos outros (FOUCAULT, 2014, p. 122). Trata-se, nesse caso, das lutas contra as variadas formas de sujeicao que se dao por meio do estabelecimento de uma verdadeira identidade.

    Ao detalhar os aspectos dessas lutas contra as formas de submissao governamentais, Foucault aponta que se trata menos de lutas por ou contra o "individuo" do que propriamente estrategias que se opoem ao que ele denomina por "governo pela individualizacao" (FOUCAULT, 2014, p. 122), cujos efeitos eventualmente podem ser propagados pelo direito. Nas palavras do arqueogenealogista,

    Essa forma de poder se exerce sobre a vida quotidiana imediata, que classifica os individuos em categorias, designa-os por sua individualidade propria, liga-os a sua identidade, impoem-lhes uma lei de verdade que lhes e necessario reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. E uma forma de poder que transforma os individuos em sujeitos. Ha dois sentidos para a palavra "sujeito": sujeito submisso ao outro pelo controle e pela dependencia, e sujeito ligado a sua propria identidade pela consciencia ou pelo conhecimento de si. Nos dois casos, essa palavra sugere uma forma de poder que subjuga e submete (FOUCAULT, 2014, p.123--grifo nosso). A atencao a esse aspecto governamental do direito nao busca apontar para um ordenamento juridico presidido por um ente de racionalidade com vistas a normalizacao--o que levaria a uma compreensao anti-foucaultina de um poder personalizado. Buscase, com isso, sinalizar que o direito e atravessado por praticas de governo capazes de gerenciar comportamentos identitarios relacionados aos variados dispositivos de poder, manejando o Estado como seu instrumento, mas nao se reduzindo a ele. No horizonte da biopolitica (6) e o governo que operacionaliza o Estado, e nao o contrario.

    Segundo Ben Golder (2015), ao atravessar o campo juridico o governo pela individualizacao tende a situa-lo em um quadro ambivalente. De um lado, amarra-se a categoria de sujeito de direitos, que passa a ter frente ao Estado e aos outros individuos uma serie de direitos e obrigacoes reciprocos, por meio da exigencia de demandas identitarias. Por outro, contudo, permite a instauracao de praticas de sujeicao multiplas ao relega-los a uma identidade reveladora de sua propria verdade, em torno da qual se articularao mecanismos de controle e regulacao, mas que tambem conterao as possibilidades de suas rearticulacoes. Na perspectiva de Golder (2015), saem de cena os direitos como um fim ultimo a ser buscado, para se colocarem em uma politica.

    Considerando o entendimento de Michel Foucault a respeito das praticas asceticas no contexto desenhado pelo governo pastoral, Golder formula a sua concepcao de politica dos direitos como uma situacao estrategica, que permite pensalos na imanencia desse movimento de fechamento e enclausuramento das identidades, simultaneamente a sua rearticulacao para novas formas de se conduzir e ser conduzido. Segundo Golder (2015, p. 2),

    Rights emerge [...] not as an end in themselves but rather as a tatical means, as an opening to other forms of emancipation, rearcitulation, and struggle--that is, as representing some form of political possibility, whereas hitherto they had merely represented a blockage, an obstacle, an ideological mystification, or an unhelpful displacement of political energies onto legal-formalist terrain (7) O desenrolar deste artigo se fara entre duas tomadas de posicoes possiveis a respeito do que se entende por identidade no interior dessa politica dos direitos, que aqui chamaremos de metafisica da identidade e de identidade-acontecimento. Tais modos de compreensao do fenomeno identitario servirao de chave interpretativa as concepcoes ligadas aos sujeitos de direitos, situados entre os processos de sujeicao juridica e seus movimentos de rearticulacoes e desestabilizacoes.

    Sendo assim, buscaremos demarcar as diferencas entre esses dois modos de compreensao da identidade no direito, privilegiando a atitude critica de Michel Foucault, que a compreende nao como causa em si mesma, mas como efeito de um longo e infindavel processo de relacoes de forcas--como acontecimentos.

    O argumento do artigo reside na compreensao da atitude critica arqueogenealogica (8) foucaultiana como uma das formas de resistencia ao governo pela individualizacao, ao escavar realidades outras soterradas pela naturalizacao de uma metafisica da identidade, que aparece na atualidade como necessaria. Por meio dela, relativizamos o absolutismo do presente (9), permitindo o constante questionamento de "como nao ser governado?" diante de praticas e metodos precisos e determinados. O recurso a historia (10), por tal vies, se inscreve nesse registro de resistencia a operacao metafisica deflagrada pelo direito, que constroi o sujeito de direitos como subjetividade coerente e estavel, ao mesmo tempo em que, na concretude da vida, sujeita os corpos aos espacos de suspeita e normalizacao.

  2. Por uma "ontologia historica" do sujeito de direitos: tensoes entre a metafisica da identidade e a identidade-acontecimento

    Se pelas lentes construidas...

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