Não cabe avós conhecer o direito?

AutorNoli Bernardo Hahn
CargoDoutor em Ci&ecirc;ncias da Religi&atilde;o, &aacute;rea de concentra&ccedil;&atilde;o Ci&ecirc;ncias Sociais e Religi&atilde;o, pela UMESP. Professor do programa de p&oacute;s-gradua&ccedil;&atilde;o em direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Miss&otilde;es &#x2013; URI -<i> campus</i> de Santo &Acirc;ngelo.
Páginas219-237

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Introdução

Ao longo1 da humanidade, o anseio e a luta por justiça são componentes e integrantes da condição humana. O ser humano, na condição e na possibilidade de se tornar sempre mais humano, mantém a justiça como um valor e um ideal a ser construído e conquistado.

No sonho da construção da justiça, os povos, na sua trajetória histórica, planejam e organizam a vida, em suas distintas dimensões, elaborando, também, cadaPage 220qual, um sistema jurídico (Direito, Lei).

O sistema jurídico consiste, por conseguinte, numa mediação necessária à construção da justiça real e utópica. O Direito jamais será a justiça, mas é um meio imprescindível para implementá-la. Quem sonha com a justiça jamais reduz suas utopias ao Direito, mas sabe da importância e necessidade da construção histórico- contextual e histórico-cultural dele para realizar justiça. Nessa ótica, novos direitos impõem-se no horizonte da construção histórica permanente do justo.

As idéias acima não são novas. Elas já foram ditas há, pelo menos, dois mil e setecentos anos. Um movimento social entre o povo hebreu, nação que elaborou a legislação mosaica, traz, integra e inspira a compreensão de que, na medida em que as relações humanas e sociais se complexificam, há a necessidade de se criar novos direitos, especialmente em função de defender aqueles mais desprotegidos pela legislação em vigor. Falo, aqui, do movimento social profético, na região do Antigo Oriente.

A literatura profética hebraica, que se elaborou entre os séculos X e VI antes de Cristo (a.C.), é um espelho deste movimento, que fundamentalmente foi camponês. Em relação à lei, a profecia se mostra sob duas perspectivas. De um lado, ela representa a defesa do Direito Mosaico vigente, quando este estava sendo ameaçado pela corrupção, pela violência ou outras formas de o desconsiderar; de outro, o movimento social-profético-camponês inspira novidade e liberdade, ou seja, está aberto à dimensão do recriar, do reinventar, do reler, quando o contexto socioeconômico e político assim exigia, ou quando a lei permanecia distante do horizonte da justiça. Essas duas dimensões inter-relacionadas são, em síntese, o ensinamento sempre atual da profecia hebraica às nações que pretendem acompanhar a história da humanidade sem desvincular-se de princípios que auxiliam na construção de uma sociedade mais humana e justa.

Vou, a seguir, apresentar um estudo de um pequeno texto (dito profético) mostrando a atualidade, também para a ciência do Direito, dos ensinamentos do movimento social-profético-camponês de oito séculos antes de Cristo (a.C.). O texto é um dito do livro de Miquéias, capítulo 3, versículos 1 a 4. Apresento inicialmente uma tradução (literal) do original hebraico para, em seguida, compreender seus conteúdos.

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1 A fotografia do texto de Miquéias 3,1-4

Uma das características dos ditos proféticos é o estilo poético. A poesia hebraica mostra-se fundamentalmente através de paralelismos, que podem ser sinonímicos, antitéticos ou sintéticos, e através de repetições. Na disposição das frases, a seguir, é possível perceber que o estilo predominante da fala profética é o poético. Tanto as frases paralelas quanto as repetidas, em nível de conteúdo, procuram enfatizar as idéias centrais às que o autor original quis dar relevância. Vejamos, então, a tradução: 3,1E digo:

Ouvi, pois, chefes3 de Jacó e líderes da casa de Israel

Não (cabe)4 a vós conhecer o direito? 2Desprezadores do bem e amantes do mal arrancadores de pele deles de cima deles5 e carne deles de cima quebrais os ossos deles. 3E devoraram a carne de meu povo e pele deles de sobre eles esfolaram e desossaram eles quebraram6 e partiram como em panela e como carne em meio a um caldeirão.

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4Aí clamarão para Javé e não responderá a eles e esconderá sua face deles neste tempo porque agiram mal em suas obras.

2 A linguagem, o conteúdo e o destinatário de Miquéias 3,1-4

Uma peculiaridade deste dito profético é o uso de uma linguagem intensamente figurada, com repetições e ênfases. Nas traduções, na generalidade, ignoram-se palavras e/ou expressões7 . Com a desatenção em relação a ênfases existentes no texto, não se incorre numa desconsideração de aspectos essenciais que evidenciam o processo do surgimento do escrito? Ao evidenciar o processo da criação do texto, o tema do Direito torna-se central? Caso essa temática seja fundamental, a quem se dirige a pergunta que se encontra no final do versículo 1 e que foi escolhida como título deste artigo: “Não cabe a vós conhecer o Direito”? Que razões explicam ser o Direito um assunto importante na literatura profética dos hebreus?

Com essas indagações, convido o leitor a trilhar um caminho que pode nos levar a inúmeras e interessantes descobertas. Vamos fazer um esforço para ouvir o texto. O som revela integrantes que um simples olhar dificilmente capta. Escutemos8 , inicialmente, a denúncia9 .

2. 1 As vozes da acusação: Miquéias 3,1-3

A primeira voz que se escuta é: “e digo”. Tem-se, ali, alguém que, na primeira pessoa do singular, quer dizer algo e recorre a este recurso de linguagem, usando-se do verbo “dizer”. A impressão imediata é a de que virá, agora, uma voz,Page 223um som. Segue-lhe logo após o imperativo “ouvi”, que recebe uma ênfase especial com a partícula enfática “pois”. Ao dizer “ouvi, pois” interpela-se alguém para se preparar a prestar atenção, a escutar uma voz que virá. Esta voz tem um ouvido destinado: “chefes de” e “líderes de”, interpelados por uma questão, ou seja, o “Direito”, o que torna evidente ser um único sujeito. “Chefes” e “líderes” parecem ser apenas uma repetição de palavras de significado semelhante, ou verificando as frases como um todo, temos ali um paralelismo sinonímico.

Vou a uma análise desses dados. O verbo “dizer”, ao significar uma ação comunicativa, exprime, por lhe ser inerente, o sentido de fala ou dito. Mesmo que transcrito para o nível da escrita, o seu sentido transborda do texto, enquanto literatura, para o nível em que se escuta a voz de quem se comunica oralmente. A ação verbal “digo”, por conseguinte, emerge da fala e invade o nível da palavra escrita, levando e expressando ali o mundo simbólico da palavra falada.

O mesmo, e com maior segurança, pode-se afirmar do verbo “ouvir”, “escutar”. Ao ler o texto, o leitor atual enxerga ouvintes e não leitores! Como explicar este fenômeno? Acontece que as ações verbais migram de um campo ao outro, da fala à escrita, da voz à letra. A terra fértil, no entanto, que produz esta linguagem, em primeiro plano, é a comunicação que se estabelece nas relações humanas, em que o escutar tem função preponderante.

Nesta lógica, o sentido imperativo imprime uma nuança toda especial. O uso do imperativo não tem sentido em si. O objetivo do uso do modo imperativo está inerente a ele. Quer dizer: o fim que se quer alcançar empresta o significado à ação verbal imperativa. Qual é a finalidade do “ouvi, pois”? O objetivo é interpelar alguém ao ser interpelado. Pode-se, por isso, afirmar que a experiência interpeladora é relacional. Um sujeito só faz a experiência de ser interpelado se se abre a um outro sujeito e o integra em sua vida, em seus projetos; e só interpela verdadeiramente quem se sente interpelado. Neste sentido, a linguagem imperativo-interpeladora é resultado de uma relação estabelecida entre sujeitos que, ao estabelecer a comunicação, se desafiam ao se sentirem desafiados, se solidarizam ao se sentirem interpelados. Cabe afirmar que o profeta é interpelado e interpela. Ele é desafiado e desafia. Ao ser desafiado e interpelado, ele também se solidariza.

Pode-se, pois, perguntar com o horizonte do nosso texto: a interpelaçãoPage 224acontece sem a fala? Toda interpelação pressupõe o ouvir, o escutar, o estar atento, o abrir-se ao outro. Ao se suceder a acolhida do outro, este tem a possibilidade de ser integrado na vida, nos projetos daquele que se abre e acolhe. Disto resulta a afirmação de que a interpelação supõe e pressupõe experiência de relações.

Esses dados, portanto, levam-nos a ver a vida do texto antes de ele ser definitivamente um texto escrito. Linguagem e gênero situam-nos numa realidade em que a comunicação entre as pessoas se dá ouvindo, desafiando e interpelando, possivelmente sem a mediação da palavra escrita, num primeiro estágio. Porém esta vida entrou no texto via linguagem criada pelos que escreveram, sem distanciar-se, por demais, da linguagem falada. Esta continua sendo um núcleo gerador de sentido implícito na palavra escrita, que ajuda aproximar o leitor da experiência inicial a que, afinal, desencadeou o texto.

Vamos voltar novamente ao texto de Miquéias com o intuito de nele perceber como a palavra do profeta foi se gerando texto.

“Desprezadores do bem e amantes do mal” (3,2) é a primeira acusação dirigida aos interpelados a “ouvir”. Na continuidade, tem-se três frases. Vejamos a sua disposição literária:

“Arrancais a pele de cima deles”

“e a carne deles de cima/sobre”

“quebrais os ossos deles”

Aqueles que inicialmente foram acusados, numa linguagem um tanto genérica, de “desprezadores do bem” e “amantes do mal” são, agora, através de uma linguagem mais específica, denunciados de “arrancar” a “pele” e a “carne” e “quebrar” os “ossos” de um sujeito coletivo (“sobre eles”, “deles”). Chama atenção a insistência e a ênfase no uso da linguagem em dizer, repetidamente “deles”, “de cima deles”10 ou...

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