O assédio sexual em transporte coletivo, a responsabilidade das transportadoras e a jurisprudência do stj

AutorAnna Luísa Braz Rodrigues, Luíza Resende Guimarães, Renata Lima
Páginas395-428
O assédio sexual em transporte coletivo... • 395
O ASSÉDIO SEXUAL EM TRANSPORTE
COLETIVO, A RESPONSABILIDADE
DAS TRANSPORTADORAS E A
JURISPRUDÊNCIA DO STJ
Anna Luísa Bra z Rodrigues1
Luíza Resende Guimarães2
Renata Lima3
Resumo: A despeito de o STJ possuir a função de contribuir para uni-
car do Direito e uniformizar a jurisprudência, é possível vericar colisão
direta entre decisões sobre o mesmo tema. Este é o caso das respostas
oferecidas às demandas de indenização contra a concessionária de trans-
porte público coletivo pela prática de assédio sexual durante o trajeto.
Diante da divergência apresentada, o presente estudo busca examinar
se as empresas de transporte devem arcar com a indenização direciona-
da à vítima ou se essa deve recair apenas sobre o agente infrator. Para
tanto intentou-se compreender os argumentos delineados pela Terceira
e Quarta Tuma do STJ, bem como o assento legislativo e o posiciona-
mento doutrinário sobre o tema a m de oferecer uma leitura que se
mostre mais adequada à harmonização e unidade do sistema jurídico.
A pesquisa pertinente teve natureza dogmática, revestindo-se de cará-
ter bibliográco, incluindo revisão de literatura e decisões selecionadas.
Como resultado, entendeu-se que as empresas concessionárias de trans-
porte público coletivo, em razão da atribuição objetiva de responsabi-
lidade traduzida pela teoria do risco criado (art. 927, parágrafo único,
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Lavras. Integrante do grupo
de pesquisa Laboratório de Bioética e Direito. Estagiária do Ministério Público de
Minas Gerais.
2
Mestranda em Direito Civil pela UFMG. Bolsista de Mestrado do CNPq. Bacharel
em Direito pela UFLA. Pesquisadora do Laboratório de Bioética e Direito (LABB/
UFLA/CNPq).
3
Mestranda em Direito Civil pela UFMG (pesquisadora bolsista CAPES). Bacha-
rel em Direito pela UFLA. Integrante do Grupo de Pesquisa Pessoa, Autonomia e
Responsabilidade (GPAR/UFMG) e do Laboratório de Bioética e Direito (LABB/
UFLA).
396 • O Direito Civil nos Tribunais Superiores
CC), atraem integralmente o dever de reparar o dano sofrido por vítima
de assédio sexual, resguardado seu direito de regresso contra o terceiro
infrator.
Palavras-chave: Assédio sexual. Responsabilidade civil. Teoria do risco
criado.
INTRODUÇÃO
A crescente procura pelo transporte coletivo, decorrente do
crescimento desenfreado da sociedade moderna, torna evidente a ne-
cessidade de estudo da responsabilidade civil das empresas que prestam
o referido serviço frente a eventuais (ou não tão eventuais) danos4. Nes-
ses ambientes, um dos mais comumente vivenciados é o assédio sexual,
cujas vítimas são, de forma amplamente majoritárias, mulheres. Trata-se
de situação que tem tomado as manchetes dos noticiários nos últimos
anos, em razão de sua prática assustadoramente reiterada.
O presente trabalho parte de um questionamento fundamental
acerca de como deve o direito civil – mais especicamente o regime de
responsabilidade civil – se posicionar frente aos danos ocasionados às
usuárias de transportes coletivos decorrentes dos assédios sexuais sofri-
dos no interior destes. Buscar-se-á, portanto, examinar se as empresas
de transporte devem arcar com a indenização direcionada à vítima ou
se essa deve recair apenas sobre o agente infrator; se há displicência das
transportadoras no que tange à segurança de suas passageiras, dentre
outras questões subjacentes.
Em prol de responder ao problema, em um primeiro momen-
to, faz-se necessário esclarecer conceitos básicos da responsabilidade civil
em sentido amplo e que possuem impactos diretos sobre o recorte aqui
proposto. Por essa razão, no primeiro tópico, a ideia é discorrer acerca
dos pressupostos referentes ao tema (conduta, dano, nexo de causalida-
de, culpa) e, em seguida, partir para a exposição das modalidades ob-
jetiva, subjetiva, contratual e extracontratual da responsabilidade civil.
Com o segundo tópico, vem a imersão mais especíca concer-
nente à responsabilidade das transportadoras nos casos de assédio sexual.
4 NICARETTA, Ricardo. A responsabilidade civil no transporte rodoviário de
passageiros. 2009. 70f. Monograa (Bacharelado em Direito) – Centro Univer-
sitário Univates, Lajeado, 2009. Disponível em: https://bit.ly/33C0jHI. Acesso
em: mar/2020.
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Nesse sentido, serão abordados: os aspectos basilares e o assento legislati-
vo do contrato de transporte no ordenamento nacional, o tipo de obri-
gação assumida pela empresa e a natureza de sua responsabilidade, no
sentido de ser ou não necessária a análise de culpa. Ainda neste tópico,
o enfoque será direcionado às excludentes de responsabilidade civil, em
especial ao fortuito externo e ao fato exclusivo de terceiro, com o to de
debater se o assédio poderia ser encaixado nessas classicações.
Por m, embora denitivamente não menos importante, no
terceiro tópico serão apresentados os argumentos levantados pela ju-
risprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. Com essa
nalidade, duas decisões paradigmáticas divergentes serão mais profun-
damente dissecadas, embora a investigação não se resuma a elas. Não
se trata de temática com resposta fácil, motivo pelo qual compreender
qual o estado da arte atual em um Tribunal Superior pode ser bastante
esclarecedor e útil.
1. BREVES NOTAS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil pode exprimir uma ideia de reparação,
punição ou precaução, a depender da dimensão temporal e espacial em
que é analisada. Ao longo da história, já foi representada pela vingança,
por máximas religiosas (“olho por olho, dente por dente”), já foi autotu-
tela, já se centrou primordialmente na punição do autor e já se fundou
quase que por completo na culpa deste. Na sociedade contemporânea, a
responsabilidade é considerada conceito base e integrador da ética e do
direito, que objetiva e formaliza as perspectivas de liberdade e regulação
conforme as novas exigências econômicas e sociais1.
Em tempos hodiernos, preceitos do direito civil clássico já não
são capazes de responder satisfatoriamente às demandas de responsa-
bilidade civil, em especial sendo a sociedade atual assumidamente de
riscos. Surge, nesse contexto, um amplo arcabouço jurídico de proteção
à personalidade humana, de cujo uxo a responsabilidade civil não po-
deria escapar. É preciso valorizar, portanto, os deveres positivos de evitar
e mitigar danos como resposta a essa realidade de riscos e medos, sempre
visando ao cuidado do outro, vulnerável por sua natureza humana. A
responsabilização amplia sua perspectiva de reparação para incluir a pos-
1 FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson.
Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2019.

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