Assédio moral e sexual: tratamento prospectivo dos conflitos no judiciário trabalhista

AutorAmanda Barbosa
Páginas115-125

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1. Introdução

O sistema de produção econômica e a divisão social do trabalho atuais determinam uma relação dire-ta entre a estima social dos indivíduos e sua condição produtiva, sua “parcela de contribuição” para o mode-lo. Os valores meritocráticos do capitalismo e todas as mazelas que os acompanham são cada vez mais determinantes na esfera da reputação social, e o trabalho não é tomado apenas como meio de sobrevivência, mas elemento nuclear da autoestima e autorrealização dos indivíduos.

Não é incomum que, desatentamente, identifiquemos as pessoas, primeiramente, por sua atividade econômica, antes mesmo do próprio nome. Uma observação da experiência cotidiana que muito diz sobre como o trabalho transcende o fator econômico ou jurídico. O trabalho é meio de identidade pessoal e se desenvolve permeado por sentimentos, expectativas e frustrações.

Não à toa, ele é objeto de estudo de uma gama extensa de ramos da ciência, como a Sociologia, a Filo-sofia, a Antropologia, a Psicologia e, também, o Direito. Aos dois últimos, em particular, vem interessando, de modo intenso, a pesquisa e reflexão sobre o impacto do ambiente de trabalho degradante, sob a perspectiva psicossocial, na saúde mental e física dos trabalhadores.

A questão parte de uma realidade triste, a constatação de que em pleno século XXI, e não obstante todos os avanços legislativos experimentados, o ambiente de labor permanece sendo palco de experiências de desrespeito e lesão da dignidade humana, ainda que por intermédio de diferentes e mais “refinadas” práticas.

É que a essência das organizações produtivas não se modificou. Elas seguem reproduzindo as formas de desigualdade gerais da sociedade e continuam estruturadas em relações assimétricas de poder que potencializam práticas de não reconhecimento alheio.
Nesse contexto, se intensificam os riscos de experiências de desrespeito e sentimento de injustiça que motivam lutas que vão muito além da luta econômica por sobrevivência.

Ações trabalhistas envolvendo malferimento aos direitos da personalidade, incapacitações de ordem física e mental motivadas nas condições de trabalho, discriminação ou simples rescisão inesperada do contrato sem motivação informada, são algumas dessas espécies de luta. Conflitos dessa ordem não se resumem à uma pretensão pecuniária, são lutas por reconhecimento.

E nesse imbricamento, próprio dos conflitos trabalhistas de múltiplas causas e dimensões, que se situa a problemática do assédio moral e do assédio sexual no ambiente de trabalho, para os quais a lente restrita do Direito não é suficiente à compreensão. É necessário investigá-las por caminhos interdisciplinares, visões que integrem os elementos culturais, sociais e psíquicos incidentes, e que propiciem a mínima noção da complexidade da matéria e suas repercussões.

Neste tema, não estamos diante de um simples inadimplemento de crédito trabalhista, o qual, ainda que

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reprovável, restringe-se (em regra) a um prejuízo patrimonial e reparável. Os danos advindos das práticas ora destacadas podem ser definitivos, e as compensações a eles direcionadas são quase sempre imperfeitas. Aliás, poderão ser tão mais imperfeitas quanto mais ortodoxas as respostas do Judiciário trabalhista.

É um pouco sobre isso que se destina o presente ensaio.

2. Assédio sexual laboral

O assédio sexual pode ser definido como a abordagem reiterada a uma pessoa com vistas a obter favores sexuais para si ou para terceiro, mediante a imposição de vontade por chantagem ou intimidação, configurando lesão ao direito de liberdade sexual do ofendido.

A questão é antiga, mas a seriedade em seu tratamento é relativamente recente. Superando tabus e resistências culturais, sobretudo a “naturalização” do fato quando a prática é dirigida ao gênero feminino (larga prevalência), a discussão vem tomando corpo na socie-dade e no Direito hodierno.

O progresso no tratamento da questão está intimamente relacionado à afirmação cada vez maior das mulheres no mercado de trabalho, às lutas por direito de igualdade entre os gêneros e ao reconhecimento do direito à liberdade sexual, entendido como o direito à disposição do próprio corpo, e de não ser intimidado ou forçado à prática ou abstenção de ato sexual.

A baixa incidência do assédio sexual de iniciativa feminina em comparação à masculina, reflete a cultura discriminatória, patriarcal e machista ainda imperante. Não obstante os avanços (em boa parte apenas formais), já obtidos. Conforme pondera Rodolfo Pamplona Filho, “desde a antiguidade prevalecia a ideia preconcebida de superioridade masculina, em que a mulher era reduzida à condição muito próxima de objeto, não somente sexual, mas também de Direito”, o que apesar de “superado” no mundo do “dever ser” ainda se reproduz no mundo do ser, cotidianamente.

De qualquer sorte, as alterações formais são passos imprescindíveis, e a tipificação criminal da conduta, em maio de 2001, foi mais um deles. Eis o teor do art. 216-A acrescentado ao Código penal pela Lei n. 10.224/2001:

Art. 216-A – Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. (AC)

Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos

Consoante a redação adotada, e tendo-se em vista o princípio da reserva legal, apenas o assédio sexual ocorrido no bojo de uma relação de emprego caracteriza o crime do art. 216-A, razão pela qual se diz que, no Brasil, existe apenas assédio sexual laboral. Ademais, outras espécies de trabalhador (autônomo, por exemplo), não estão abrangidos pela norma.

De fato, com o veto presidencial ao parágrafo único do art. 216-A do Código Penal, a viabilidade de punição criminal do assédio sexual em várias outras situações concretas foi afastada, o que não significa impossibili-dade de responsabilização civil com espeque no direito à liberdade sexual e no princípio da dignidade humana. Além disso, defende-se que a prática, no contexto de outras relações, possibilite apenas a configuração de outros tipos penais (crime de constrangimento ilegal e contravenção penal de perturbação da tranquilidade).

Seguindo a sistematização de Rodolfo Pamplona Filho1, que conceitua o assédio sexual como “toda conduta de natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continuadamente reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual”, destacamos os seguintes elementos característicos do assédio sexual: a) Sujeitos: agente (assediador) e destinatário (assediado);
b) Conduta de natureza sexual; c) Rejeição à conduta do agente; d) Reiteração da conduta.

Quanto aos sujeitos (sendo possível que o assédio envolva mais de um agente), dividi-se a figura em: assédio sexual horizontal (trabalhadores de um mesmo grau hierárquico); vertical ascendente (do grupo ou subordinado para o chefe, situação de identificação mais rara); vertical descendente (do superior hierárquico para o subordinado).

Vale registrar que o assédio sexual horizontal é também conhecido como “ambiental”, e o assediador tanto pode ser um elemento da mesma hierarquia da vítima como alguém que não integre a estrutura. O exemplo mais típico desta última modalidade é o assédio perpetrado por clientes, e grande discussão há sobre a possibilidade de responsabilização civil do empregador nesta hipótese.

A nosso sentir, tal responsabilização apenas se revela viável quando verificadas condições maximizadoras do risco direta ou indiretamente pelo próprio empregador, circunstâncias que contribuam para a exposição do trabalhador ao assédio. É o caso, por exemplo, de empresas que adotam uniformes insinuantes para suas empregadas, agregando a “ideia de sensualidade” (e suposta disponibilidade sexual da trabalhadora) aos seus produtos e serviços.

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Apesar de a legislação não ser expressa, é possível o assédio com vistas à satisfação sexual de outrem. É a hipótese do assédio do superior hierárquico sobre o (a) empregado (a) visando o benefício de terceira pessoa (cliente ou proprietário da empresa etc.).

No que diz respeito à conduta de natureza sexual, necessário frisar que se cuida de um conceito aberto e variável no espaço, demandando apreciação casuística e valorativa da realidade na qual os fatos ocorreram. A pertinência dessa consideração se revela quando reconhecemos a maior liberdade relacional típica do comportamento brasileiro, cujo modo mais afetivo de agir, em geral, não se confunde com o ilícito em comento. Exemplificativamente, tem-se que o assédio sexual pode se caracterizar em comentários sexuais (insinuações, gracejos), aproximações indevidas, atos de exibicionismo e de ameaça direta, física ou verbal, com intuito de favores sexuais.

Quanto à rejeição da conduta pelo assediado, essa constatação, certas vezes, demanda a manifesta oposição do assediado. Consoante observa Rodolfo Pamplona, o ambiente de trabalho facilita a aproximação dos indivíduos, o que possibilita que desse convívio diuturno surjam relacionamentos amorosos, frutos “de paixões espontâneas”. Assim sendo, o autor pondera que, embora não seja essencial para sua caracterização, é importante que as pessoas que acreditam estar sendo objeto de assédio sexual cientifiquem ao presumido assediador de que seu comportamento não é desejado.

A despeito do conceito recorrente de assédio sexual invocar, assim como ocorre com o assédio moral, a reiteração da conduta, entendimentos há, no sentido de um único ato, desde que bastante grave e que denote incisivamente o assédio, também enseja a configuração do delito. A redação do tipo corrobora essa...

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