Aspectos práticos sobre a importância da inserção do conhecimento da Psicanálise na legislação contemporânea: o Discurso do Capitalista e sua relação com a loucura ordinária

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas70-78

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Neste aspecto nós temos a assinalar que a descoberta freudiana do inconsciente, que data de mais de cem anos, é igualmente um fato importante na pós-modernidade, como o foi a inserção do conhecimento da Psiquiatria no Direito Penal na época da Revolução Francesa. A inserção do conhecimento psicanalítico,

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não somente no Direito Penal, mas também na Filosoia do Direito em geral, poderá talvez ter a mesma importância nos nossos dias que a incursão da Psiquiatria no campo jurídico na época da Revolução Francesa, e poderá de fato produzir uma evolução da teoria e da prática jurídica moderna.

Para pensar esta possibilidade de consideração do saber psicanalítico no campo do Direito pós-moderno, é preciso partir da concepção da psicanálise aplicada. Esta expressão designa, na acepção corrente, "quan-do a psicanálise ? ‘aplicada’, seu saber teórico e seu ?todo, a objetos exteriores ao campo da cura"101, por exemplo, às obras literárias, mas também às religiões, às instituições, à Medicina, à Justiça e a todas as outras disciplinas.

Este termo "psicanálise aplicada" não teve sempre efeitos felizes, no senso onde ele pode privilegiar a ideia do controle de um saber todo pronto sobre um objeto passivo. Uma tal concepção pode se encontrar em certas obras de psicanalistas de primeira hora, que não reprimem seu entusiasmo de abraçar a signiicação escondida de uma obra e as motivações psíquicas inconscientes. Mas Freud102 tem outra concepção, que, no "Essai sur la Gradiva de Jensen" ("O delírio e os sonhos na ‘Gradiva’ de W. Jensen"), nos diz inicialmente: "[...] os poetas e os romancistas são preciosos aliados [...] Eles são, no conhecimento da alma, nossos mestres a nós, homens vulgares, pois eles bebem em fontes que nós não temos ainda tornado cessíveis à ciência"103.

Lacan104 retomou esta perspectiva freudiana em "Hommage fait à Marguerite Duras du Ravissement de Lol V. Stein" ("Homenagem feita a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein" [1965]): "Haveria grosseria, disse ele, ao atribuir a técnica confessada de um autor a alguma neurose [...] a única vantagem que um analista teria no direito a assumir sua posição, é de se lembrar com Freud que nesta matéria o artista sempre o precede e que, portanto, ele, o psicólogo, tem a fazer lá onde o artista lhe abre o caminho". Ele nos diz ainda "A Psicanálise não se aplica, no senso próprio, senão como tratamento, e então a um sujeito que fala e que ouve"105 e ele acrescenta, nos dando lá os limites da Psicanálise dita aplicada: "Não pode se tratar fora deste caso senão do método psicanalítico, que faz a decifração dos significantes sem levar em conta qualquer forma de existência pressuposta do signiicado"106.

Quando um psicanalista aplica seu saber a objetos exteriores ao campo da cura, por exemplo, às obras literárias, não se trata, para ele, de tratar a obra como um sintoma de uma das estruturas psíquicas, neuróticas, perversas ou psicóticas. Não se trata também de compreender, de relatar o discurso do autor num saber constituído, mas de fazer coniança ao escritor, ao trabalho de escrita e ? coerência interna da obra, à sua lógica interna. Longe da ideia de um discurso aparente que encobre o senso pro-fundo, trata-se de operar uma decifragem dos significantes na obra, tomar o texto ao pé da letra com o uso do inconsciente. Trata-se de entender o que diz todo sujeito a partir do Édipo.

Segundo a psicanalista Josée Lapeyrère-Leconte107:

A prática da psicanálise dita aplicada começa em geral nos analistas por um questionamento que se desenvolve no encontro com uma obra, um evento ou uma disciplina particular. O que faz ponto de encontro entre o psicanalista "aplicante" e a obra, é a maneira como a obra vai cernir um mesmo ponto do impossível, um efeito de real, com a lógica dos instrumentos que lhe são próprios. Por conseguinte - se, por vezes, a psicanálise aplicada a uma obra ou outra disciplina pode permitir de ilustrar ou de exempliicar a teoria, para oferecer numa visão didática uma apre-sentação a um público bastante largo - o apoio tomado sobre uma obra, o fato de se servir de um saber para permitir cruzamentos, oferece passagens, brechas, dos avanços teóricos.

Isso é inteiramente coerente com a teoria lacaniana dos quatro discursos, onde o discurso psicanalítico é aquele que interroga e coloca em trabalho os outros discursos.

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Citemos, dentre os exemplos dos mais famosos de psicanálise "aplicada", em Freud, Édipo certamente, a Gradiva de Jensen, o tema dos três cofres, Hamlet, [...] mas também Moisés, às religiões, à Igreja, ao exército, à civilização moderna etc.

Do lado de Lacan, A carta roubada de Edgard Poe, Booz adormecido de Victor Hugo, [...], Antígona e Édipo na Co-lônia de Sófocles, [...] mas também à pintura, à linguística, às matemáticas. [...] o reencontro de Jacques Lacan com a topologia e com o nó borromeo [...]. Todos esses avanços questionam a psicanálise quanto ? sua inalidade e têm remarcáveis incidências ou "aplicações" sobre a prática da cura.

E, nesse sentido, o que é feito, por exemplo, da questão da interpretação em análise e do escrito poético, se Lacan faz lembrar em 1977 que: "Não existe senão a poesia que permite a interpretação?". Como fazer não somente passar no dito ou no escrito a verdade da estrutura, mas como a tornar consequente, ou ainda como obter efeitos de sensos reais na cura, mas também nas trocas cotidianas e no campo social? O nó borromeo não pode nos ajudar nessas questões colocadas à psicanálise e, portanto a todos que falam e que escutam?108

Portanto, nós partimos da concepção da "psicanálise aplicada", porém, excluindo o ecletismo nefasto o qual poderia nos fazer crer a uma equivalência possível entre as categorias que procedem de campos teóricos-práticos distintos, o Direito e a Psicanálise. Nós desenvolvemos uma aproximação entre a teoria lacaniana das Quatro Estruturas dos Discursos (Discurso do Mestre - onde se situa a origem do discurso do Direito -, Discurso do Universitário, Discurso do Histérico, Discurso do Analista109 com a quinta fórmula que Jacques Lacan nos propõe para designar o Discurso do Capitalista110.

Nosso propósito é de orientar o campo jurídico sobre os saberes mais recentes da Psicanálise em relação aos efeitos do Discurso do Capitalista nas derivas que ele produz sobre o aparelho das quatro estruturas discursivas descritas inicialmente por Lacan.

Nós desenvolvemos esta reflexão doutoral, sob a orientação do psicanalista Serge Lesourd a partir de sua tese "A construção do sujeito na modernidade. Da psicopatologia adolescente a uma clínica da criança no laço social"111 e, em particular, de seu texto intitulado "A loucura ordinária dos discursos modernos"112, no qual ele fala da determinação da loucura e sua relação às mudanças de coordenadas referenciais dos discursos.

Nós izemos então uma articulação mais prática entre o Discurso do Direito, o qual se situa na posição de Discurso do Mestre (em Lacan), e o Discurso da Psicanálise, aí incluindo o Discurso do Capitalista. Nós ressaltamos que esta quinta fórmula do Discurso do Capitalista não faz parte do aparelho dos Quatro Discursos o qual Lacan formulou, inicialmente, para descrever os discursos que organizam a comunicação. Este aparelho das quatro estruturas discursivas trata da especiicidade das relações do sujeito aos significantes e ao objeto. Tais relações, ao mesmo tempo em que são estruturantes para o sujeito como cindido de si mesmo e do objeto, regulam também as formas de laço social.

Na sua obra, Lesourd113 nos lembra que segundo Lacan "a metáfora paternal é o produto de um discurso, daquele que organiza o social a partir da diferença dos sexos e do ‘phallus’ como referencial do desejo; e é a ausência desta metáfora que produz os efeitos da loucura". É assim que Lacan constrói sua teoria dos discursos "a partir da estrutura da linguagem S1?S2 e dos efeitos desta estrutura de linguagem sobre a produção do sujeito e do objeto como separados um do outro". Desta maneira Lacan114 demonstra que:

[...] o discurso do Mestre, como organizador de um tipo de laço social, tem a mesma escritura que o discurso do inconsciente e que o sujeito do inconsciente é a produção de um tipo particular de laço social, sempre presente no tempo originário do encontro da linguagem, aquele aonde o significante vem designar o sujeito como representado por um significante para outro significante115.

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Neste texto sobre a relação da loucura com os discursos, Lesourd116 faz uma articulação partindo do quinto discurso que Lacan designa como Discurso do Capitalista.

Ele117 nos explica que na sua proposição do Discurso do Capitalista, Lacan não faz senão uma operação no aparelho onde ele demonstra os Quatro Discursos, "que tem consequências lógicas fundamen-tais: ele inverte o lugar do significante-mestre S1 e do sujeito no primeiro termo do discurso do Mestre".

Discurso do Mestre Discurso do Capitalista

Como nos mostra Lesourd118, no texto "La folie ordinaire des discours modernes":

Há uma determinação do sujeito pelo discurso social que cria formas particulares de loucura, isto é, de impasse a uma realização subjetiva. Nós devemos então disso tirar uma conclusão imediata, pois se a estrutura do sujeito depende dos discursos sociais, se, como Lacan o resume num momento, o inconsciente é o social, quando o discurso organizador da sociedade muda, quando a estrutura do discurso falado por uma sociedade muda, então se coloca instantaneamente a questão: quais modiicações emergem na construção da subjetividade? Os novos modos de lou-cura ordinária, mesmo psicótica, que nós encontramos na clínica colocam a questão da mudança da estrutura do discurso que organiza nosso laço social.

Mas, também:

Esta inversão de lugar transforma radicalmente a estrutura mesma da relação do sujeito na linguagem. Na lingua-gem, atualmente no Discurso do Capitalista, o significante não nomeia mais o sujeito, e no desejo o objeto não lhe...

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