Aspectos jurídicos do desabamento

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas147-178

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E caddi come corpo morto cade.

Dante

Depois, a casa continuou desabitada e caiu lentamente em ruínas, como toda habitação à qual a presença do homem não mais comunica vida.

Victor Hugo,

Os Miseráveis

I Introdução

O desfazimento da edificação constitui operação claramente perigosa e da qual podem surgir consequências pessoais e patrimoniais graves. Assim, além da responsabilidade civil e profissional dos agentes, há três delitos tipificados no nosso ordenamento jurídico-penal que, determinando a solidez continuada da edificação, punem o seu reverso que é o desabamento. São eles o crime do art. 256 do Código Penal (“desabamento ou desmoronamento”) e as contravenções dos arts. 29 (“desabamento de construção”) e

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30 (“perigo de desabamento”) da Lei das Contravenções Penais (v. textos no anexo). O ruir descontrolado constitui ato ilícito notório, que atinge a incolumidade pública, tendo conseqüências jurídicas várias, dentre elas a penal. Mas dele igualmente derivam conseqüências civis e administrativas importantes porquanto os controles se multiplicam dada a gravidade potencial do fato.

Por certo, o sistema jurídico pune tão fortemente os agentes humanos que, por ação ou omissão, causam desabamento em razão de exporem a perigo a vida, a integridade física e o patrimônio de outras pessoas, em número indeterminado, que se encontram no entorno da edificação ou mesmo dentro dela (os operários, por exemplo). Esta exposição ao perigo ou mesmo a mera probabilidade de expor ao perigo pessoas e bens circundantes – e não apenas o dano efetivo, que pode ocorrer ou não, assim como o próprio perigo, diante da queda do prédio, pode não se configurar – basta para dar fundamento à punição dos responsáveis pelo desabamento: pune-se a possibilidade do dano, pune-se o risco, pune-se mesmo a provocação, voluntária ou involuntária, do perigo. É a chamada “dupla couraça” (Sebastian Soler) do Direito Penal que, visando tutelar certos bens jurídicos, pune tanto a lesão efetiva quanto a probabilidade da lesão.

Veja-se, com clareza, que tanto o levantamento da edificação quanto o seu posterior desfazimento (= desconstrução), ou seja, a demolição da obra já feita, dependem de licença prévia do Poder Público. No entanto, como bem mostra a jurisprudência, o erro na execução do projeto de demolição ou de edificação poderá caracterizar o delito, como desabamento culposo, involuntário, não querido. Nesse sentido, o desabamento é fato – anormal, patológico – que foge do controle seja dos responsáveis, seja Poder Público e que tem potencial danoso efetivo, tanto que é punido desde a Mesopotâmia, região onde vários assentamentos humanos começaram a se

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formar há cerca de 10.000 anos atrás1. Daí a existência das várias figuras típicas, criminosas, como veremos, que atingem tanto o fato concreto quanto sua provocação, ou mesmo a possibilidade de sua existência (ruína), mesmo não havendo prejuízo presente algum.

Com função preventiva de ilícitos, o Direito, dessa forma, protege o cidadão seja contra a lesão efetiva à pessoa (forma típica qualificada) seja contra o perigo do dano (arts. 256 do CP e 29 da LCP), seja ainda contra a ameaça do perigo do dano (art. 30 da LCP, perigo de desabamento) causado pela queda do edifício. Em outras palavras, mesmo a eventualidade do fato merece punição do Estado para coartar, de qualquer modo, a conduta perigosa. Ocorre aqui, como em todos os delitos de perigo, uma “antecipação ou adiantamento da proteção do direito penal” (Pierangeli).

II O contrário da solidez

Conceitualmente, desabar é vir abaixo, é cair com estrépito, violência e rapidez; é ruir, é derribar, é desmanchar-se a edificação de modo inusitado e, às vezes, inesperado – porquanto pode haver a intenção do desabamento, que se torna então voluntário, por ação ou omissão, ingressando no campo penal. O clássico dicionário do filólogo Émile Littré define bem como “ruine”: “destruction d’um bâtiment qui tombe de lui-même ou qu’on fait tomber” (“destruição de uma edificação que cai ou que alguém faz cair”)2. As duas hipóteses – cair e fazer cair – estão bem caracterizadas nesta definição. No Brasil, a ruína há de ser sempre da estrutura física, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Espanha onde o Tribunal Supremo evoluiu a interpretação de ruína “física” para admitir a “ruína

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funcional”, como vício da edificação (art. 1.591 do Código Civil espanhol3), equiparando-as.

O desabamento, portanto, significa a ruína material da edificação, que é um conceito bastante abrangente seja pelas causas (porque caiu ?), seja pela extensão daquilo que ruiu (o que caiu ?), seja, de outro lado, pelas consequências jurídicas (quais os danos ou perigos causados e quem são os responsáveis ?). E, potencializando o ilícito, pode significar a violação do dever profissional de preocupação com o bem-estar coletivo, gerando várias responsabilidades (que é sempre decorrência da violação de deveres, “deberes colegiales o deontológicos”, como diz a lei espanhola). Ele é a própria negação da exigência – legal e técnica – de solidez da obra de Engenharia e Arquitetura: (a) construção, obra em processo, ou (b) edificação, obra concluída, como um estádio, um muro ou um condomínio edilício. A obra desaba primeiramente quando não é “firme” (firmitas), qualidade destacada por Vitrúvio (e mesmo bem antes dele) como essencial do edifício.

Na Mesopotâmia – que produziu uma magnífica arquitetura monumental urbana –, o Código de Hammurabi, cujo texto foi identificado e traduzido em 1902, já tratava do assunto em 1754 a.C., punindo com a pena do talião (ius talionis). O texto é o seguinte: “Se um pedreiro edificou uma casa para um homem livre, mas não reforçou o seu trabalho e casa, que construiu, caiu e causou a morte do dono da casa, esse pedreiro será morto. Se causou a morte do filho do dono da casa, matarão o filho desse pedreiro” (§§ 229/2304). É sabido que a metáfora da construção na areia é bíblica: Jesus, no Sermão da Montanha, chama sensato o homem que constrói sobre a rocha e de insensato o homem que constrói sobre a areia – “Caiu a chuva,

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vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, ela caiu. E foi grande sua ruína” (Mt, 7:24-27).

Já no início da ordenação sistemática do solo urbano, entre nós, o Código de Posturas do Município de São Paulo, de 1886, igualmente punia com prisão o mestre de obras “que der por concluída qualquer obra e esta ameaçar ruína, quer por mal construída, quer por falta de alicerce ou má combinação dos materiais empregados”. Neste caso, “sendo assim declarado por peritos em exame, será [o mestre de obras] multado em 30$ e oito dias de prisão, sem prejuízo da indenização a que for obrigado” (art. 33). Hoje, para além dos aspectos administrativos – que permanecem –, o tema está consagrado pelo Direito Penal, que contempla o crime de desabamento, tanto pelo perigo posto quanto pelo perigo suposto e até pressuposto (perigo de desabamento, art. 30 da LCP).

III Especificações do conceito de desabamento

Para estabelecer corretamente o conceito, é importante distinguir o desabamento (a) do desmoronamento e (b) da demolição, que são figuras jurídicas afins. Quanto à primeira distinção, o Código Penal dá o mesmo tratamento punitivo a ambas as figuras delituosas (desabamento e desmoronamento), quando praticadas por vontade humana. Mas são fenômenos distintos. Como ensina José Henrique Pierangeli, o desabamento refere-se à “queda de construções em geral”, enquanto o desmoronamento ajusta-se à “queda de formações telúricas (rochedos, pedreiras, minas, barrancos, etc)”5, ou seja, movimentação de partes do solo natural causada pelo homem. A origem etimológica do termo é significativa: vem do caste-lhano “borona”, ou seja, broa, confeito cuja massa espedaça e esfarela (esboroa). Um deslizamento de encosta (fenômeno geológico), uma avalanche (“valanga”, prevista na lei italiana) não são desaba-

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mento mas desmoronamento, que também pode ser provocado voluntariamente, por ação ou omissão.

Quanto à segunda distinção, o desabamento absolutamente não se confunde com a demolição (termos com o mesmo prefixo, denotando afastamento, separação), que são modos bastante distintos de desfazimento da obra. A demolição é uma obra de Engenharia ou de Arquitetura destinada a desfazer a edificação de modo técnico, racional, metódico. Daí porque depende de licença do Poder Público (a licença para executar demolição), que vai verificar, dentre outros aspectos, a competência técnica do responsável pelo desfazimento da obra – já que ela constitui atividade de inerente perigo. Por isso que na França, ao contrário do que ocorre no Brasil, a demolição sem permissão do Poder Público constitui infração penal (art. L480-4 do Código de Urbanismo) pela qual responde tanto o proprietário da obra, quanto o construtor ou mesmo o arquiteto6.

A demolição é, pois, obra técnica, que se realiza no tempo, enquanto o desabamento é o ruir descontrolado, sem segurança, muitas vezes (mas não sempre) contra a própria vontade dos agentes. Em suma, cabe resumir a distinção da seguinte forma:

Quadro 1 – Desabamento e demolição

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É evidente que as causas do desabamento podem indicar total inexistência de ato ilícito, como ocorrer em caso de terremoto, quando as estruturas entram em colapso em razão da insegurança geológica momentânea. Porém, o desabamento também pode ter causa humana, seja por ação ou por omissão. Caso típico da primeira hipótese é um erro de projeto, fazendo com que a estrutura não suporte a carga; da segunda, é a falta de...

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