Aspectos gerais do salário
Autor | Márcio Túlio Viana |
Páginas | 295-302 |
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Se perguntarem a um de nós o que é o salário, talvez respondamos algo assim:
"É o que um homem, trabalhando para outro, recebe em troca de seu trabalho1".
No entanto, um conceito como este, embora correto, não seria completo - pois esconde dois fenômenos importantes.
De um lado, porque, num sentido mais superficial, o que há é mais do que uma troca pura e simples, ou - se preferirmos dizer assim - é uma troca que pode envolver não só o trabalho, mas a falta dele.
De outro lado, porque, em sentido mais profundo, o que há é menos do que uma troca, ou - mais exatamente - é uma troca desigual. Uma troca... com um troco.
Invertendo a ordem das questões, vejamos primeiro porque a troca é desigual.
Como ensina Marx, o empregador não paga ao empregado todo o valor que este incorpora ao produto. Fica com a sobra, com o lucro - a mais-valia.
Como se dá essa operação?
Tentemos explicá-la da forma mais simples.
A natureza nos oferece, a todo momento, coisas úteis e inúteis. Nós mesmos, ao criarmos essa outra natureza que nos cerca, a cada instante, construímos ou destruímos objetos que nos servem, nos desservem ou nos são indiferentes.
O problema é que o mundo natural nos foi dado; ao passo que o mundo artificial tem de ser conquistado palmo a palmo. No mito bíblico, Adão podia colher sem esforço todas as frutas - salvo a maçã. Na vida real, devemos trabalhar para comê-las.
Ora, é o trabalho que transforma a argila num pote de barro. É ele que faz uma coisa inútil se tornar útil. E como entre as coisas úteis estão as mercadorias, o trabalho se insere também nelas. Ele está dentro do pote de barro - invisível, misturado, objetivado2. Compõe o próprio objeto.
Pois bem. Toda mercadoria tem um valor de uso e um valor de troca. O valor de uso é o valor - maior ou menor - que nós lhe damos, em razão daquilo mesmo que ela nos dá. Por isso, é algo variável e subjetivo. Um laptop pode valer muito para você e ser inútil para um lavrador. E com a enxada acontece o inverso.
Já o valor de troca revela qual o preço de uma mercadoria em relação a outra. Por isso, é algo objetivo e bem mais estável. Uma caixa de fósforos, na prateleira de um supermercado, vale sempre o mesmo tanto, seja qual for o comprador.
Todavia, o que faz a caixa de fósforos valer 100 mil vezes menos do que um automóvel? O que a faz ter um maior valor de troca?
Na base de tudo está - ainda uma vez - o trabalho, ou mais exatamente a força de trabalho. O valor de troca de uma mercadoria será maior ou menor conforme a quantidade de energia que o operário usou3. É ela que faz uma caixa de fósforos valer 100 mil vezes menos do que um automóvel.
Naturalmente, outros fatores entram em jogo. Mas o básico é mesmo a força de trabalho. A própria máquina é construída por ela - trazendo, dentro de si, o resultado do esforço humano. Dentro de um velho moinho de pedra ou do mais refinado robô, há sempre trabalho morto, produzido algum dia por trabalho vivo4.
Pois bem. Com o sistema capitalista, a própria força de trabalho se torna mercadoria. Do mesmo modo que compra sapatos e alfaces, o trabalhador vai ao mercado oferecer os
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seus serviços. No entanto, trata-se de uma mercadoria diferente, já que - ao contrário dos sapatos ou alfaces - ela foge para sempre das mãos do vendedor5.
Na escravidão, o que se compra é o próprio sujeito. No trabalho assalariado, é a sua energia, o que representa tempo de vida6. Mas - num caso ou noutro - o modo de executar a prestação não parece ser tão diferente - pelo menos em sua essência. Tanto o patrão do operário como o senhor do escravo modulam os corpos alheios, impondo gestos e movimentos7.
Qual seria o valor de troca desta nova mercadoria? Assim como acontece com o par de sapatos ou qualquer outro bem que compramos, a força de trabalho tem valor igual à quantidade de trabalho necessária para que ela própria subsista - o que inclui, por isso mesmo, gastos com a saúde, a moradia, a comida, a qualificação e tudo o mais que permite que o trabalhador se reproduza enquanto tal.
Em outras palavras: o valor da força de trabalho é a quantidade de trabalho necessária para que o empregado - com o dinheiro recebido - a mantenha viva e atuante. Esse dinheiro corresponde exatamente ao valor que ele acresceu na mercadoria. Ele lhe acrescenta valor e este valor lhe é devolvido.
Se o trabalhador recebesse o valor de sua força de trabalho e fosse embora para casa, a troca seria igual, tanto por tanto. E era o que acontecia, possivelmente, nas antigas aldeias, com os produtos que os camponeses levavam às feiras: a ideia não era lucrar na troca do trigo pela uva, mas apenas se livrar do trigo que sobrava e receber a uva que faltava.
Já na fábrica, porém, as coisas se passam de outro modo. A troca não é tanto por tanto. Mesmo depois de acrescer na mercadoria um valor igual ao necessário para manter sua força-trabalho, o operário continua a trabalhar. Embora não o perceba, essas horas a mais lhe são sonegadas. São elas que produzem a mais-valia.
Naturalmente, nem todos os trabalhadores ganham a mesma importância, mas também nem todos têm iguais necessidades - inclusive as subjetivas. Além disso, o operário especializado é como se fosse um múltiplo do operário sem qualificação.
Essa possibilidade de exploração - maior ou menor - da força de trabalho abre espaço para as lutas operárias e as resistências patronais. E elas acontecem a cada instante, minuto a minuto, não só quando a regra jurídica está sendo feita, mas em seu momento seguinte, quando ela é submetida à prova nas relações concretas de trabalho8.
Talvez também se possa dizer, por tudo isso, que esses conflitos - visíveis ou invisíveis, individuais ou coletivos - carregam todo um simbolismo. Eles denunciam, a cada vez, a condição de dependência do empregado diante de seu patrão, ou do trabalho diante do capital.
Note-se que há outras formas de explicar a relação entre os preços e o valor do salário. Mas esse modo de ver as coisas - que Marx examina de modo completo - tem ainda muito prestígio.
Vejamos agora porque a troca pode envolver o não trabalho - embora esse fenômeno seja mais aparente do que real.
Se observarmos à nossa volta, veremos que nem sempre o salário é a resposta direta e precisa a um gasto de energia. Mesmo se nos abstrairmos da mais-valia, a troca não é tanto por tanto, como costuma acontecer nos contratos de compra e venda. Assim, mesmo que o empregado esteja apenas esperando que algum trabalho lhe seja entregue, deve receber por esse tempo.
É por isso que, para Deveali, salário é:
"a remuneração correspondente ao fato de o trabalhador pôr suas energias à disposição do empregador."9
Aliás, em certos casos, o trabalhador nem sequer está disponível, e ainda assim deve receber a sua paga. É o que se dá, por ex., nas férias. Mas a razão é simples. Como ensina Ramirez Gronda, o contrato de trabalho:
"(...) é sinalagmático em seu conjunto, e não prestação por prestação."10
Desse modo, aquela "disponibilidade" referida por Deveali tem também um caráter global. É por estar empregado (e não exatamente por ter trabalhado) que o trabalhador faz jus ao salário, embora em geral seja preciso que ele tenha prestado serviços ou ficado à disposição do empregador.
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Daí a lição de Delgado:
"Salário é o conjunto de parcelas contraprestativas pagas pelo empregador ao empregado em função do contrato de trabalho."11
Naturalmente, isso não significa que o salário não se relacione com o trabalho. Basta notar que quem está à disposição do empregador continua subordinado; e quem está em férias descansa de um trabalho prestado antes.
Assim, ainda que de forma indireta ou global, o salário realmente paga o trabalho. Mas não qualquer tipo de trabalho, e sim o trabalho subordinado. Por isso, sob esse aspecto, pode-se dizer também - como fazem alguns autores - que o salário é a moeda de troca da própria subordinação, embora em termos quantitativos não costume ser assim12.
Voltando à hipótese das férias, é preciso notar ainda que a empresa pode muito bem contabilizá-las ao propor um determinado salário ao empregado. Sabendo que terá de pagá-las, o salário x que ela ofereceria passa a ser de x – y.
Isso nos mostra, como observa Deveali13, que várias conquistas dos trabalhadores podem ser compensadas - pelo menos num primeiro momento - pelos empregadores. Assim, se um dia a lei inventa um 14º salário, o mercado tenderá a oferecer salários mais baixos. Só não poderá fazê-lo em relação aos que ganham salário mínimo... Marx ensina, a propósito, como o capitalismo é capaz de aumentar a produção de bens sem reduzir a extração da mais-valia, graças às constantes inovações tecnológicas14.
Além disso, é importante notar como a empresa vem relativizando as lições da doutrina, para aproximar ao máximo cada fração de salário a cada fração de trabalho - por meio de prêmios e outras parcelas variáveis. É a mesma tendência de enxugamento que a faz reduzir o pessoal, eliminar estoques e terceirizar-se15.
Quando isso acontece, o salário assume outro papel - o de pressionar o trabalhador, aumentando os ritmos de trabalho. E nesse sentido passa a servir não ao empregado, mas ao empregador. Sem deixar de ser moeda de troca da subordinação, fortalece o poder diretivo...
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