Aspectos da eleição de foro internacional

AutorRafael Barud Casqueira Pimenta
CargoMestrando em Direito Processual na UERJ.
Páginas224-241

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1. Justificativa

Jogando luz sobre um dos temas mais recorrentes atualmente no Direito Processual, o presente trabalho pretende discutir os limites à autonomia da vontade das partes quanto à autodefinição do foro em que pretendem litigar. O tema, um desses capazes de deflagrar acalorados debates entre processualistas e internacionalistas, vem ao longo dos anos conquistando adeptos de um e de outro lado. Geralmente, adeptos apaixonados pelas posições que defendem. Essa adesão não é gratuita. Ela decorre essencialmente de um contexto mundial em que barreiras econômicas praticamente inexistem e em que relações humanas são travadas cotidianamente inobstante a distância geográfica que as separam.

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Decorrência natural da intensificação das relações humanas e comerciais, o aumento de conflitos sociais abre um caleidoscópio de questões jurídicas, algumas aparentemente insolúveis, outras nem tanto. Nenhuma, porém, indiscutível. Uma delas sem dúvida é relativa à possibilidade ou não de as partes de um contrato internacional escolherem o foro (jurisdição) a que submeterão o seu conflito. E esta possibilidade (ou não) de escolha surge como elemento fundamental na compreensão, e sobretudo na definição, do modelo de direito processual internacional que se pretende construir para esse mundo sem barreiras que desponta no novo século.

O trabalho limita-se a debater aspectos peculiares ao direito brasileiro, tais como a opção do legislador pela summa divisio entre hipóteses de competência concorrente e hipóteses de competência exclusiva; quais os limites de cada uma delas e quando – e se – é lícito às partes derrogá-los ou alterá-los, de modo a fazer operar a sua própria vontade no mundo jurídico.

A defesa de algumas posições é temperada pela advertência quanto à complexidade do tema. Ponto de interseção entre dois ramos do direito, a eleição de foro internacional apoia-se, ao mesmo tempo, em princípios próprios do direito público cogente, corriqueiramente tido como repositório hostil à autonomia da vontade, e princípios de direito privado, ramo que tem na vontade humana o seu vértice axiológico1-2.

Além de recomendar o comedimento na defesa de algumas posições, essa dicotomia está por trás de outros enfrentamentos tais como se as partes podem ou não conferir competência (rectius: jurisdição) à autoridade judiciária brasileira em hipóteses legalmente atípicas ou, de outro lado, se elas poderiam derrogar tal jurisdição naqueles casos em que o juiz brasileiro está expressamente investido de tal poder. Esses são, em termos gerais, os aspectos abordados a seguir.

2. Competência Internacional

A competência internacional, ou também designada jurisdição internacional – nomenclatura que se revela tecnicamente mais apropriada3 – caracteriza-se por ser o desdobramento do exercício da soberania por um Estado juridicamente organizado, mediante o qual tal Estado arroga-se o poder de realizar o direito objetivo a casos concretos4.

Como decorrência direta da soberania, que é a capacidade de cada Estado de se auto- organizar e de impor a sua ordem jurídica àqueles que se encontram sob sua esfera de poder, a jurisdição não encontra limites senão na própria ordem jurídica do Estado. Não provém desta, mas éPage 226por ela limitada. Isso significa que a lei não cria – e nem poderia criar – a jurisdição internacional de um dado Estado. Apenas lhe dá contornos, limites5.

A jurisdição, portanto, diferencia-se da competência, na medida em que esta é a "jurisdição repartida", a divisão interna para que o Estado exerça, de maneira correta e racional, a jurisdição dentro de seus limites territoriais6 (MIRANDA, 1973, p. 172). No ordenamento brasileiro, a jurisdição é una e constitui um poder-função.

Jacob Dolinger nos fornece dois conceitos distintos, um de Gaetano Morelli, para quem jurisdição é a circunscrição dos poderes do Estado, ao passo que a competência presta-se a nada mais que indicar a autoridade judiciária responsável por julgar o caso; e outro, de Amílcar de Castro que, referindo-se a Chiovenda, infere de jurisdição a relação entre Estado e litigantes, e de competência a relação entre juízes e cortes7.

Vigoram, no mundo, dois grandes sistemas de delimitação da jurisdição8: um denominado por inclusão e outro, por exclusão. O sistema por inclusão consiste naquele em que os limites da jurisdição são determinados de forma expressa, com a enumeração das hipóteses nas quais o país exercerá o seu poder jurisdicional, como acontece por exemplo em Portugal9.

O sistema por exclusão, ao contrário, caracteriza-se pela omissão de norma expressa delimitadora da jurisdição. Por esse sistema, as causas de competência internacional são extraídas das hipóteses de competência interna. Desse modo, caso a demanda não seja de competência de nenhum dos juízes de seus tribunais, o Estado não terá competência internacional para aquela causa. São exemplos de Estados que adotam esse sistema a Alemanha e a Áustria (Id. Ibid.).

Desde diplomas anteriores, o Brasil filia-se ao sistema por inclusão e divide as hipóteses delimitadoras de sua jurisdição entre as concorrentes10 (art. 88, do Código de Processo Civil) e as exclusivas (art. 89 do Código de Processo Civil).

Do ponto de vista do direito positivo, a competência internacional do Brasil está atualmente definida nos artigos 88, 89 e 90, do Código de Processo Civil. Historicamente, a matéria era tratadaPage 227no art. 12 da Lei de Introdução ao Código Civil11; e nos arts. 134 a 136 do Código de Processo Civil de 193912.

No âmbito internacional, o principal diploma legislativo a que o Brasil encontra-se submetido é o Código Bustamante13 que, no Título II do Livro Quarto, "Direito Processual Internacional", trata da competência (arts. 318 a 339).

Nas hipóteses de competência concorrente, não se exclui a priori a jurisdição de tribunais estrangeiros para conhecer da causa – o que poderão fazer, inclusive, paralelamente ao judiciário brasileiro – visto não configurar litispendência a existência de demandas idênticas em países distintos14. Na verdade, e em prestígio à boa técnica, é preciso ressaltar que o efeito da divisão entre concorrente e exclusiva nunca será o de excluir (na segunda hipótese) ou de conferir (na primeira) jurisdição a Estados estrangeiros. Mas tão somente permitir, ou não, a produção de efeitos de tal decisão no território brasileiro15.

Nos casos de competência exclusiva, é vedada a concessão de tal eficácia à eventual decisão proferida por tribunal estrangeiro. Não se trata, neste último caso, de impedir que o tribunal estrangeiro conheça da causa; trata-se, nunca é demais repetir, simplesmente – e por força das limitações impostas pelo princípio par in parem imperium non habet – de não emprestar a tal decisão eficácia jurídica em território brasileiro.

A seguir, serão analisados separadamente os casos de competência concorrente e os de competência exclusiva, começando por estes últimos por suscitarem menos dúvidas do que os primeiros.

2. 1 Competência exclusiva

Os dois casos de competência exclusiva são aqueles previstos no art. 89 do CPC e dividemse em duas hipóteses: (a) de ações relativas a imóveis situados no Brasil; e (b) de inventário e partilha de bens aqui localizados, ainda que o autor da herança tenha residido no exterior.

2.1. 1 As ações relativas a imóveis

Barbi destaca que, nesse inciso, estão abrangidas tanto as ações reais quanto as ações pessoais relativas a imóveis. Assim, a autoridade judiciária brasileira seria competente tanto em casos oriundos de contratos de locação, promessa de compra e venda quanto em ações de usucapião16.

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Em sentido contrário, Tornaghi restringe essa hipótese aos casos de ações reais (ou relativas à posse) de bens imóveis. O autor ainda vai além e afirma que, na expressão "bens imóveis" contida no dispositivo, deve-se entender apenas e tão somente o solo com a sua superfície, acessórios e adjacências naturais, espaço aéreo e o subsolo, ou que a ele for incorporado, e os direitos reais a eles relacionados17.

O autor justifica a sua opção. E dá para isso duas razões. A primeira delas é de que a ratio essendi da norma é evitar que a decisão proferida por uma autoridade estrangeira goze de pouca ou nenhuma eficácia quando, e se, internalizada pelo direito brasileiro. Como as decisões estrangeiras sobre bens imóveis (na acepção que lhe dá o autor) são praticamente inexequiveis no Brasil, não restam dúvidas de que o dispositivo restringiu-se àqueles bens (solo e o que a ele for incorporado), não tratando portanto de direito à sucessão aberta e as apólices de dívida pública18.

A inexequibilidade ou ineficácia se justificaria, pois, em primeiro lugar, as decisões judiciais estrangeiras sobre bens imóveis, para se perfazerem, deverão dialogar com o cartório competente para o registro do título; e, em segundo, porque a instrução processual ficaria prejudicada, tendo em vista a distância entre o objeto litigioso e o juiz.

Paralelamente à presumida ineficácia, a interpretação restritiva do dispositivo se justificaria também porque, sendo os bens imóveis (o solo e aquilo que a ele aderir) parte do território nacional, admitir que um Estado estrangeiro sobre ele decida significaria abrir mão de parte da soberania. (Id. Ibid.). O que não ocorreria, por outro lado, nos casos de ações pessoais relativas a imóveis tais como locações, comodato etc., em que não há porção de...

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