Asilo político: Uma proposta alternativa sob a ótica constitucional

AutorSiddharta Legale Ferreira; Adriano Corrêa de Sousa
Páginas3-35

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I Colocação do problema: premissas metodológicas

Durante muito tempo234, o direito de asilo político foi relegado a um segundo plano pelos juristas brasileiros. A bibliografia rarefeita, esparsa e descontínua comprova essa afirmação. Atualmente, algumas publicações sobre o tema foram editadas, modificando a despreocupação de costume.5

A maioria delas, contudo, decorre de produções de um ponto de vista daPage 4 doutrina do direito internacional. Em geral, os internacionalistas explicam a diferença entre asilo territorial e diplomático e, ainda, entre asilo e refúgio.6 Vejamos essas questões preliminares.

Em relação à diferença entre o asilo territorial e o diplomático, usualmente, os internacionalistas colocam que o asilo territorial, também chamado de externo ou internacional, é outorgado pelo Estado por onde o asilado penetra, fugindo do país no qual via seus direitos fundamentais em franca ameaça.7-8

Diversamente do asilo diplomático, denominado igualmente de interno, que se refere à acolhida em prédio de missão diplomática ou residência de Chefe de missão diplomática.9-10 Por sua própria composição, “essa modalidade significa apenas um estágio provisório para o asilo territorial, a consumar-se no solo daquele mesmo país cuja embaixada acolheu o fugitivo, ou eventualmente no solo de um terceiro país que o aceite.”11

José Francisco Rezek lembra um exemplo interessante: “O acolhimento do general Humberto Delgado – líder da resistência ao regime salazarista pela embaixada doPage 5 Brasil em Lisboa, em fevereiro de 1959”.12

Júlio Marino Carvalho acrescenta o asilo militar a essa tipologia tradicional. Segundo o autor, ocorreria a bordo de navios de guerra, aeronaves militares ou acampamentos no caso de ocupação militar em território estrangeiro.13

Muito embora haja semelhanças entre os institutos do asilo e do refúgio, como, por exemplo, a proteção internacional de indivíduos perseguidos,14 é possível estabelecer uma série de diferenças.15 A propósito, é esclarecedora a esquematização delas, realizada por José H. Fischel de Andrade:

“- ‘asilo’ é um instituto jurídico regional, vislumbrado pela primeira vez em instrumento regional, pelo Tratado de Montevidéu sobre Direito Penal Internacional, de 1889, sendo regulamentado, na atualidade, por vários instrumentos regionais. ‘Refúgio’ é um instituto jurídico global, vislumbrado pela Convenção de 1951 e pelo Protocolo de 1967, cujo desenvolvimento deu-se a partir do AcordoPage 6 Relativo à Emissão de Certificados de identidade para Refugiados Russos, de 1922. Foi tão-só recentemente que o refúgio encontrou expressão em instrumentos regionais convencionais e nãoconvencionais – respectivamente a Convenção da OUA de 1969 e a Declaração de Cartagena de 1984;

- ‘asilo’ é um instituto jurídico que pode ser aplicado, e portanto brindar proteção, dentro das fronteiras dos países ‘produtores de asilados’, este é o caso do asilo diplomático. O ‘refúgio’ pode tão-somente ser considerado se a pessoa em questão cruzou a fronteira de seu país de origem;

- para ser considerado um ‘asilado’, o indivíduo necessita estar sendo in actu exercitu perseguido. Para um ‘refugiado’ é suficiente ter um ‘bem fundado temor de perseguição’, o qual não necessariamente se materializou ainda;

- um ‘asilado é perseguido devido a crimes políticos. A definição de ‘refugiado’ é mais ampla, uma vez que menciona opiniões políticas e, ademais, engloba outros motivos, a saber, raça, religião, nacionalidade e pertinência a determinado grupo social;

- no que respeita aos ‘asilados’, nenhuma organização foi estabelecida para supervisionar e colaborar na implementação dos instrumentos de asilo; o que não acontece quanto aos instrumentos relativos a ‘refugiados’, onde o ACNUR tem um papel importante e significativo nessas atividades, ademais de desenvolver e difundir os princípios aplicáveis à proteção dos refugiados;

- os instrumentos de ‘asilo’ não contêm cláusulas de cessação ou exclusão, as quais são vislumbradas em instrumentos de ‘refúgio’; e

- A concessão da condição jurídica de ‘asilado’ tem natureza constitutiva. A obtenção da condição jurídica de ‘refugiado’, por sua vez, se dá por meio de um ato de natureza declaratória, mediante o qual o Estado reconhece o indivíduo como refugiado.”16

Do ponto de vista do direito constitucional, no entanto, a diferença não parece tão relevante. O importante, nesse olhar, refere-se à proteção do ser humano nas relações internacionais. Tanto é assim que a Lei 9.474/97, em seu artigo 1º, reconhece por refugiado:

“(...) todo indivíduo que: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; (...)” 17 .

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Ora, perseguição por causa de opiniões políticas esbarra em campo semântico análogo ao do asilado. Nesse sentido, a despeito de ter sido voto vencido, o Ministro Gilmar Mendes chegou a proferir um voto reconhecendo a ausência de diferenças substantivas entre ambos os institutos.18

Na prática, observa-se a dificuldade em diferenciar os institutos, por exemplo, nos recentes casos, envolvendo atletas cubanos em diversos países nos jogos Panamericanos de 2007, no Rio de Janeiro. Os atletas da referida nação abandonaram sua delegação. Rafael Capote, jogador de handebol, deixou a Vila Pan-americana para viajar a São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, com vistas a jogar em um time local, ao mesmo tempo em que ingressou com pedido de refúgio. Percebe-se, nesse caso, um fundado temor no que diz respeito ao exercício de sua liberdade, pois caso procedesse pela via normal, dificilmente poderia ser autorizado a deixar o país cujo regime é totalitário. Por outro lado, na época alguns jornais, provavelmente, por desconhecimento do instituto, empregaram o termo asilo político para o pedido do jogador.19

Em outro caso, no mesmo evento esportivo, dois boxeadores cubanos, Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, fizeram o mesmo que seu compatriota. Contudo, foram orientados por seu empresário, Michael Doering, que visava ingressá-los no circuito europeu de boxe. Encaminhados à Polícia Federal para prestar esclarecimentos, supostamente, declararam que desejavam retornar ao seu país e estavam arrependidos de terem fugido da delegação cubana. Depois disso, dentro de poucos dias estavam embarcando de volta a Cuba em um episódio suspeito e obscuro. O episódio deu margem a fazer pensar que ou o governo brasileiro expulsou os atletas ignorando seus direitos fundamentais ou, tão grave quanto, foi ingênuo e apressado em aceitar seu retorno “espontâneo” à Cuba20. Diante disso, oPage 8 Embaixador Marcos Azambuja afirmou que, nas relações internacionais, permitem-se poucos erros e um pecado político não pequeno se refere à ingenuidade21. Difícil acreditar que, dentro de duas semanas alguém que abandona seu país para iniciar uma nova vida volte atrás sem ter algum “fundado temor”.

Ademais, com o devido respeito aos internacionalistas, apontamos a insuficiência de critérios técnicos com alguma serventia na aplicação do instituto do asilo político. Especialmente, critérios capazes de guiar a administração e o judiciário na tarefa de controle, por exemplo, da legitimidade dos casos em que o asilo deve ser concedido ou negado.

Dessa forma, o Judiciário fica aparentemente desprovido de parâmetros claros para analisar os (in)deferimentos de asilo político por parte do Executivo. Acreditamos, por isso mesmo, ser necessário um olhar diferente sobre a matéria: o do direito constitucional pátrio.

Nesse referencial, o direito de asilo pode ser descrito como princípio constitucional setorial22 e de eficácia limitada de princípio institutivo23-24 cuja incidência devePage 9 pautar a atuação do Estado brasileiro nas relações internacionais. Princípio constitucional setorial porque rege mais avidamente um determinado ramo do direito, o internacional. Princípio de eficácia limitada de princípio institutivo, pois o asilo é um instituto pré-fixado constitucionalmente para seus efeitos operarem dentro dos limites propostos pela carta constitucional.

Será exposta, posteriormente, uma visão panorâmica de modo a facilitar a compreensão da polêmica quanto a natureza do asilo. Deve-se ressaltar, por fim, apesar do parco tratamento dispensado pela doutrina, sua importância do tema.

Haja vista a necessidade de salvaguardar direitos fundamentais de “indivíduos-pretendentes-à-asilados” frente ao Estado brasileiro no plano internacional. Não se pode tratar o ser humano, seja ele nacional, seja estrangeiro como um súdito submisso a uma soberania estatal absoluta. Afinal de contas, os direitos fundamentais pela Constituição são reconhecidos a todos.25 Mais que isso, fazemos parte de um Estado Democrático de Direito não só no plano interno, mas também no plano internacional. Portanto, há de se ter atos compatíveis.

II Visão panorâmica do embasamento constitucional

Preliminarmente ao trabalho de análise em relação ao asilo como categoria constitucional, vale à pena recordar a conhecida classificação dos princípios constitucionais em princípios fundamentais, gerais e setoriais.

Os princípios fundamentais estruturam o Estado e a própria Constituição, por exemplo, a dignidade da pessoa humana ou a soberania. Já os princípios gerais, embora...

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