As últimas reformas 'constitucionais' na 'Europa'. O Tratado Orçamental, a ameaça federalista e o colonialismo interno

AutorAntónio José Avelãs Nunes
CargoProfessor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal)
Páginas45-73
P A N Ó P T I C A
In: NUNES, Adriano Peclat; SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de (ed.). Miscelânea sobre a integração
europeia. Panóptica, vol. 10, n. 1, pp. 45-73, jan./jun. 2015.
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As últimas reformas ‘constitucionais’ na ‘Europa’. O Tratado
Orçamental, a ameaça federalista e o colonialismo interno
António José Avelãs Nunes
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1. - Durante o período de debate público que antecedeu o referendo sobre o projeto da
chamada Constituição Europeia, alguns antigos dirigentes do Partido Socialista francês (que,
contra o seu partido, fizeram campanha pelo NÃO à dita ‘constituição’) vieram dizer verdades
que não se ouviam antes, vindas de dentro do campo social-democrata.
Jean-Pierre Chevènement, várias vezes ministro de governos socialistas, caraterizou a
‘esquerda’ representada pelo PSF como “uma mescla de ‘realismo económico’, de
anticomunismo renovado e de espírito social cristão”, considerando-a a “convergência de fundo
da esquerda social-liberal com a direita liberal em matéria de política económica e social”.
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Georges Sarre veio defender que “a Europa se transformou no joker de uma esquerda sem
projeto nem reflexão”, uma “esquerda que não tem outro projeto para além da construção
europeia, a Europa”, uma esquerda que, para ser credível e não assustar os mercados, defende
e pratica “uma política ainda mais à direita do que a direita”.
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E Jacques Généreux não hesitou
em escrever que se ela [a tal ‘constituição europeia’] fosse aprovada, “só as políticas de direita
e conformes à lógica liberal seriam constitucionais”.
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Em outubro de 2011 escreveu o porta-voz do Partido Socialista francês (Benoît Hamon,
atual ministro do governo Hollande): “Uma parte da esquerda europeia [a social-democracia
europeia], à semelhança da direita, deixou de pôr em causa que é preciso sacrificar o estado-
providência para restabelecer o equilíbrio orçamental e agradar aos mercados. (…) Fomos em
vários lugares do mundo um obstáculo ao progresso”. Feito o diagnóstico, acrescenta este
dirigente socialista: “Não me resigno a isso”.
Também em Portugal algumas vozes vindas do campo socialista sublinham que o
‘blairismo’ não passa de uma “tentativa de conciliar o inconciliável e de justificar o
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Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal).
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Citado por S. HALIMI, “A esquerda governamental…, cit., 8/9.
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Cfr. G. SARRE, ob. cit., 165-169.
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Cfr. Libération, 9.10.2003.
P A N Ó P T I C A
In: NUNES, Adriano Peclat; SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de (ed.). Miscelânea sobre a integração
europeia. Panóptica, vol. 10, n. 1, pp. 45-73, jan./jun. 2015.
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injustificável” e reconhecem que os partidos socialistas e sociais-democratas europeus
“perderam a alma e a coerência ideológica”, não passando hoje de uma “variante social-
democrata do neoliberalismo”. Alguns admitem mesmo que a tendência dominante nos partidos
que integram a Internacional Socialista é “a tendência neoliberal (…), que se traduz,
basicamente, na aceitação do fundamentalismo do mercado”.
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Perpassa por aqui a ideia de que é urgente arejar esta Europa construída “à porta
fechada”, deixando entrar por ela adentro a vontade dos povos da Europa, escorraçando os
guardiões do templo neoliberal. Mas a tendência dominante da social-democracia europeia
continua a comportar-se como uma verdadeira “esquerda choramingas”,
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a ‘esquerda’ que
lamenta, com uma lágrima ao canto do olho, o desemprego, a precariedade, as desigualdades e
a exclusão social, mas que se recusa a identificar as suas causas estruturais, para não ter de as
combater, levando tudo à conta da globalização incontornável (talvez a “globalização feliz” de
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Este é o diagnóstico de Alfredo BARROSO, ob. cit. Já em 2013, o economista e deputado eleito pelo PS na
Assembleia da República João Galamba escreveu um artigo que confirma haver entre os socialistas e sociais-
democratas portugueses alguns que não fogem aos problemas, não recusam enfrentá -los e analisá-los, colocando-
se assim no caminho da compreensão da vida e da d escoberta de soluções alternativas para as dificuldades que
temos de enfrentar (porque a ideia de que não há alternativa é uma ideia que devia envergonhar os seus
defensores). Vale a pena transcrever o último parágrafo desse artigo: “A moeda única, para funcionar, teria de ser
uma federação, semelhante aos Estados Unido s da América. Isto é, teria de ter um verdadeiro orçamento federal,
financiado por recursos próprios; teria de criar títulos de dívida europeia, para garantir estabilidade financeira;
teria de institucionalizar mecanismos de transferências orçamentais, para garantir o mínimo de co esão territorial.
E tudo isto j á, e não daqui a uns anos. Como esta revolução institucional é simultaneamente impossível (não
existem condições políticas para pôr em prática esse projeto) e necessária (sem essas reformas o euro não é
sustentável), é difícil criticar o statu quo sem concluir que o problema reside, afinal, na existência da própria moeda
única. Co nsequentemente, o único caminho desejável consiste em tentar desmantelar, de forma coordenada, a
união monetária, sem pôr em causa o próprio projeto europeu. Não sei se e sse projeto será possível, mas tenho a
certeza de que será necessário, porque a alternativa é um desmantela mento desordenado e caótico, com
consequências sociais, económicas e políticas devastadoras” (Cfr. J. GALAMBA, “Game Over”, cit.). Se bem
interpreto o Autor, ele pressupõe que é necessário deitar fora o Tratado de Maastricht, o estatuto esquizofrénico
do BCE, o PEC, o Pacto Orçamental e a regra de ouro. Pela minha p arte, acrescentaria que o “próprio projeto
europeu” precisaria também de ser passado a limpo.
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A expressão “esquerda choramingas” é de Frédéric LORDON (“A desglobalização…, cit.), para caracterizar uma
‘esquerda’ que, segundo o autor, não está interessada em pôr em causa o que diz ser u ma consequência inevitável
da ‘globalização’: “a concorrência falseada entre economias com standards salariais abissalmente diferentes; a
ameaça permanente de deslocalização; o constrangimento accionista que exige rentabilidades financeiras sem
limites, de tal forma que a sua combinação opera u ma compressão constante dos rendimentos salariais; o
desenvolvimento do endividamento crónico das famílias que isso origina; a liberdade absoluta do sistema
financeiro para desenvolver as suas operações especulativas desestabilizadoras, neste caso a partir de dívidas
contraídas pelas famílias ( como no caso dos subprime); o sequestro dos poderes públicos, instados a socorrer
instituições financeiras enfraquecidas pelas crises recorrentes; o pagamento do custo macroeconómico destas
crises pelos desempregados e ainda o seu custo para as finanças públicas pago pelos contribuintes, pelos
utilizadores de serviços, pelos funcionários públicos e pelos pensionistas; a subtração aos cid adãos de qualquer
forma de controlo da política económica, agora regulada unicamente pelas exigências dos credores internacionais,
seja qual for o preço a pagar pelo s corpos sociais; a transferência da gestão da política monetária para uma
instituição independente, fora de qualquer controlo político”.

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