As tradições democráticas e os novos modelos de democracia

AutorMurilo Gaspardo
CargoBacharel em Direito (2005) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Páginas121-156
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE
ISSN: 1980-3087
Volume 87, número 1, jan./jun. 2015
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DEMOCRATIC TRADITIONS AND NEW MODELS OF DEMOCRACY
*
AS TRADIÇÕES DEMOCRÁTICAS E OS NOVOS MODELOS DE DEMOCRACIA
Murilo Gaspardo1
ABSTRACT
In a context in which Brazilian shows consolidated democracy, but whose functioning of
its institutions is a matter of great discontent of the population, the demand for a reform
of the political system established by the 1988 Constitution grows. However, proper
treatment of this issue requires a reflection about the very concept of democracy in the
face of profound changes undergone by the state and all forms of social organization.
This article aims to make a contribution to this debate through a review of values,
principles and traditional forms of democracy, as well as an analysis about new
democratic models that can contribute to the enrichment of proposals for political
reform.
Keywords: Democratic principles. Models of democracy. Democratic theory.
RESUMO
Em um contexto em que a democracia brasileira se mostra consolidada, mas cujo
funcionamento de suas instituições é objeto de grande descontentamento da população,
cresce a demanda por uma reforma do sistema político estabelecido pela Constituição de
1988. Entretanto, o adequado enfrentamento deste tema requer uma reflexão sobre a
própria concepção de democracia diante das profundas mudanças pelas quais passa o
Estado e todas as formas de organização social. Este artigo pretende trazer uma
contribuição para este debate por meio de uma revisão dos valores, princípios e formas
tradicionais da democracia, bem como de uma análise a propósito de novos modelos
democráticos que podem contribuir com o enriquecimento das propostas de reforma
política.
Palavras-chave: Princípios democráticos. Modelos de democracia. Teoria da democracia.
1 Professor de Ci ência Política, Teoria do Estado e Direitos Fundamentais do Curso de Graduação em
Direito, e do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado) da FCHS/UNESP (São Paulo, SP/Brasil).
Doutor (2013) e Mestre (2 009) em Direito do Estado, e Bachar el em Direito (2005) pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo. E-mail: murilogaspardo@franca.unesp.br
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1. Introdução
No momento em que se acaba de fazer memória dos cinquenta anos do golpe
militar de 1964, a democracia brasileira vive um contexto marcado por ambiguidades:
por um lado, passou-se pela sétima eleição presidencial direta consecutiva, com
estabilidade institucional, e pesquisa de opinião registra o mais amplo apoio da
população ao regime democrático
2. Por outro lado, de acordo a mesma pesquisa, os
brasileiros revelam insatisfação com o funcionamento das instituições políticas, o que
também se expressou nas mobilizações populares de junho de 2013 e março de 2015, e
no crescimento dos índices de abstenção nas eleições. Paralelamente, continuam em
debate no Congresso Nacional projetos de reforma política, centrados em propostas de
alterações, com maior ou menor profundidade, das regras do processo eleitoral e do
sistema partidário. Há entretanto, uma questão prévia a qualquer proposta de mudanças
jurídico-institucionais que precisa ser discutida: o que se compreende por democracia
neste contexto de profundas mudanças pelas quais passa o Estado e todas as formas de
organização social?
Este artigo pretende trazer uma contribuição para este debate, em primeiro
lugar, com uma revisão dos valores e princípios que, ao longo do tempo, foram
compondo os elementos caracterizadores da democracia ideal não tanto no sentido de
meta desejável, mas no sentido de conceito puro, de tipo-ideal BOVERO  p 
Em segundo lugar, retomar-se-á as formas como a democracia historicamente se
concretizou, ou seja, suas formas tradicionais. Por fim, serão apresentados alguns
modelos de democracia alternativos ou complementares ao paradigma representativo
dominante, propondo-se que sejam considerados como possibilidades a serem
incorporadas em uma eventual reforma política que não se limite às questões
2  dos brasileiros acreditam que a democracia é sempre melhor que qualquer outra forma d e
governo, patamar similar ao verificado em dezembro de 2008 (61%) e, numericamente, o mais alto já
atingido na série histórica do Datafolha sobre o tema Cf DATAFOLHA INSTITUTO DE PESQUISAS.
Brasileiros preferem democracia, mas são críticos com seu funcionamento. Dis ponível em:
-brasileiros-preferem-democracia-
mas-sao-criticos-com-seu-funcionamento.shtml>. Acesso: 14 abr. 2014.
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pertinentes às eleições e aos partidos, mas que ouse colocar em pauta toda a estrutura
de exercício do poder estatal e, portanto, a ideia de democracia que se pretende realizar.
2. Valores e princípios caracterizadores da democracia
Preliminarmente, como se sabe, democracia é uma palavra resultante da
composição de dois substantivos gregos: dêmos e krátos. Krátos refere-se, dentre outros
significados a força superioridade ou então designa o poder político ou seja o poder
de tomar decisões coletivas Já dêmos, de forma genérica, significa povo. Assim, pode-se
dizer que democracia é o regime político em que o povo exerce o poder
3 (BOVERO,
2002, p. 15 16.).
Entretanto, logo se apresenta o problema de se definir exatamente quem é o
povo Entre os gregos a palavra povo poderia designar tanto a totalidade dos
componentes da comunidade política, ou seja, os cidadãos da cidade-Estado os homens
adultos livres residentes e autóctones como a parte menos elevada da população a
classe não-nobre da sociedade que representava sua maioria BOVERO  p  A
propósito, Müller (2010, p. 47, 63) entende que o povo não pode ser considerado como
simples ícone para legitimação do poder mas deve sempre corresponder à totalidade
dos atingidos pelas normas e no contexto da globalização também não poderia ser
limitado ao conjunto dos nacionais.
Esta ideia de livre participação de todos os cidadãos nas decisões coletivas
remete aos dois grandes valores da democracia: igualdade e liberdade. A igualdade, ou
isonomia, afirma-se desde Antiguidade como valor que distingue a democracia na sua
especificidade entre as formas de governo Colocam-se, todavia, questões como:
igualdade entre quem e igualdade em quê Ou ainda todos os homens são
3 Ou seja como explica Bovero  p  um regime político pode ser definido como democracia 
qualquer que seja a forma específica quando todos os sujeitos aos quais são dirigidas as decisões
coletivas (leis e providências políticas) têm o direito- poder de participar, cada qual com igual peso em
relação ao outro, do processo que conduz à determinação e à assunção daquelas decisões. De acordo com
o autor   p  na pureza ideal do c onceito de democracia ca da indivíduo deve poder reconhecer
como própria a vontade geral uma vez que contribui como cidadão para a sua formação Cf Bobbio
2001, p. 135 136.

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