As Singularidades do Assédio Moral e seu Enquadramento como Dano Moral e/ou Dano Existencial

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas173-188

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1. Introdução

O tema do assédio moral no Brasil é novo. Como também é tudo o que se relaciona ao dano moral. Da mesma forma, há pouco tempo iniciaram-se estudos em nosso país sobre o dano existencial.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de
05.10.1988, garante, no seu art. 5º, X, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Assegura, em consequência, o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente das violações aos direitos mencionados.

Anteriormente a essa disposição constitucional eram raríssimos os casos de indenizações por dano moral no Direito brasileiro. Sequer havia doutrina sobre o assédio moral, quanto mais decisões dos tribunais.

Em obra pioneira, a Professora Flaviana Rampazzo Soares destacou o surgimento na Itália, na década de 1990, de uma nova categoria jurídica denominada dano existencial. Esclarece essa doutrinadora, no entanto, que “a Suprema Corte italiana pronunciou-se, explicitamente, sobre o dano existencial, pela primeira vez, em 7 de junho de 2000, com a Decisão n.
7.713” (SOARES, 2009, p. 43).1Neste breve estudo que se inicia buscar-se-á apresentar, com apoio na doutrina e na jurisprudência, o assédio moral como modalidade de dano moral ou de dano existencial.

2. Singularidades do assédio moral

O ser humano ao trabalhar busca não apenas, e tão somente, a sua sobrevivência. Procura, também, realizar-se como pessoa, alcançar consideração e respeito à sua dignidade.

Quando se examina o local do trabalho, a importância do trabalho na existência individual e social contemporânea deve-se compreender sua significação ética. Dois aspectos essenciais devem ser mencionados a esse respeito. Em primeiro lugar, em qualquer hipótese e circunstância, o homem deve afirmar e consolidar, em qualquer época e cultura, na universalidade do tempo, “sua condição de ser humano”. Por meio do trabalho, em segundo lugar, “o homem também deve realizar-se e revelar-se em sua identidade social e emancipação política”.2É preciso compreender a ocorrência psicossocial denominada “desenraizamento operário”. Simone Weil utilizou esse conceito a partir de sua experiência de trabalho nas fábricas de Paris, nos anos de 1935 e 1936, para discorrer sobre e analisar o sofrimento gerado pela organização do trabalho fabril. Essa autora dedicou diversos estudos à análise das causas de opressão social e sua relação com a forma capitalista de organização do trabalho. Segundo ela, há um problema bem claro:

[...] trata-se de saber se se pode conceber uma organização da produção que, embora impotente para eliminar as

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necessidades naturais e a pressão social daí resultantes, permita, pelo menos, que ela se exerça sem esmagar com a opressão os espíritos e os corpos (WEIL, 1996, p. 298).3Os textos de Simone Weil oferecem importantes contribuições às atuais pesquisas e reflexões sobre o assédio moral, especialmente: a) sua análise de opressão social, na qual discute a humilhação e o desenraizamento gerados pela organização capitalista da produção; b) suas análises sobre o trabalho fabril não são simplesmente reflexões teóricas, mas informadas por radical proximidade com os trabalhadores. O texto denominado “Diário de vida na fábrica” afirma que o trabalho fabril está intrinsecamente relacionado com uma experiência de humilhação social. Verifica-se essa humilhação pela pressão de se alcançar uma forte cadência produtiva, pela ameaça constante de demissão caso não se alcance a meta determinada, pela maneira de suportar as ordens, pela contínua simplificação e fragmentação das atividades.4O sofrimento gerado pela organização do trabalho fabril, segundo Simone Weil, deveria ser entendido como uma forma aguda de desenraizamento. Essa figura do “desenraizamento” liga-se ao impedimento de “participação real, ativa e natural numa coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”.5Recentemente, pesquisas realizadas sobre a humilhação social retomaram a ideia de desenraizamento, revelando que esse acontecimento pode ser compreendido como o impedimento de participação igualitária no governo da cidade ou do trabalho, um encolhimento do campo das iniciativas e das palavras, uma redução de cidadãos e trabalhadores a papéis servis.6Considerando que as relações de trabalho envolvem um sistema no qual o empregador organiza as atividades e o empregado realiza os serviços, tendem a concentrar-se nesse espaço, especialmente, os conflitos e abusos envolvendo a dignidade da pessoa humana.

2.1. O reconhecimento tardio do fenômeno

Do ponto de vista histórico, não é possível precisar quando os abusos cometidos nas relações de trabalho passaram a ser reconhecidos e punidos. Registra-se, no entanto, que “o assédio moral nas relações de trabalho não é fenômeno recente”, podendo-se afirmar “que é tão antigo quanto o próprio trabalho”.7Não se trata aqui, porém, de apresentar um percurso histórico do desenvolvimento da doutrina do assédio moral. Qual a razão, no entanto, pela qual a prática do assédio moral só muito recentemente foi reconhecida e tratada no âmbito jurídico? Segundo informam Rodolfo Pamplona Filho, Adriana Wzykowski e Renato da Costa Lino de Goes Barros, essa clandestinidade, ou tardio reconhecimento das atitudes causadoras do assédio moral, ocorreu por duas razões principais: a) não possuir o trabalhador consciência das atitudes que configuravam o assédio moral; e b) “o temor das vítimas em proceder com a denúncia desta violência” (PAMPLONA; WZYKOWSKI; BARROS, 2016, p. 115).8Diferentemente do que se poderia imaginar, a “descoberta” do assédio moral não se deu no âmbito das relações humanas, com seu reconhecimento (e punição) pelo Direito. As pesquisas iniciaram-se no ramo da biologia, com o etologista Konrad Lorenz. Os estudos partiram da análise da conduta de determinados animais de pequeno porte físico que, quando confrontados com invasões de seu território por outros animais, apresentavam “comportamento agressivo”. O grupo de animais “invadido” nessa situação, tentava expulsar o invasor solitário “com intimidações e atitudes agressivas coletivas”. O pesquisador denominou essa conduta do grupo animal de mobbing, “termo inglês que traduz a ideia de turba ou multi-dão desordeira” (apud FERREIRA, 2004, p. 38).9Somente nos anos 1960 Peter Paul Heinemann, um médico sueco, usou a mesma terminologia para descrever a conduta hostil de certas crianças a respeito de outras nas escolas. Em 1972, esse autor publicou o primeiro livro sobre mobbing, que abordou “a problemática da violência de grupo entre as crianças” (apud HIRIGOYEN, 2008, p. 69).10Na década de 1980 Heinz Leymann, psicólogo de origem alemã estabelecido na Suécia, introduziu o conceito de mobbing para descrever as formas severas de assédio nas organizações (apud HIRIGOYEN, 2008, p. 69).11A importância da pesquisa de Heinz Leymann foi descobrir que, como observado nas escolas, “também existia certo nível de violência nas relações de trabalho”. No processo de assédio moral no ambiente de trabalho, explicou, a violência física raramente é usada, marcando-se, isso sim, “por condutas insidiosas, de difícil demonstração, como o isolamento social da vítima”. Constatou, também, como “devastadoras as consequências na saúde mental das vítimas do fenômeno”.12

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Por intermédio das pesquisas de Heinz Leymann conseguiu-se descobrir que “3,5% dos trabalhadores assalariados
na Suécia sofriam assédio moral e que 15% dos suicídios o
tinham como causa”.13

2.2. A concentração do estudo na área jurídica

Embora os primeiros estudos sobre o assédio moral tenham surgido na Biologia e na Psicologia, o Direito e a Sociologia passaram também a se interessar pelo tema. Trata-se, por isso, de uma compreensão que demanda estudo multidisciplinar, não se esgotando “em apenas uma área do conhecimento humano”. A partir das importantes contribuições da Sociologia e do Direito passou-se a conhecer “os principais focos originadores do problema, bem como os meios de coibi-los e de solucioná-los”.14Somente no final do século XX a psicóloga e vitimóloga francesa Marie-France Hirigoyen, em uma publicação, concentrou a discussão sobre o assédio moral na esfera jurídica. Essa obra, traduzida no Brasil, apresenta o problema baseando-se em casos reais, destacando aspectos relacionados à perversidade do agressor e às condutas que tipificam o assédio, especialmente as graves consequências que podem causar à saúde da vítima.15Embora a expressão assédio moral seja a mais conhecida para denominar o fenômeno que ora se examina, também se utilizam outros vocábulos. Na Itália, Alemanha e países escandinavos, utiliza-se a palavra mobbing, que deriva do verbo to mob, com o significado de cercar, assediar, agredir, atacar. Em países de língua espanhola usam-se os termos psicoterror laboral ou acoso moral. Em países de língua portuguesa, as expressões utilizadas são terror psicológico, tortura psicológica ou humilhações no trabalho. No Japão, ijime; na França...

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