As implicações do recurso especial 1.104.900-es e a responsabilidade tributária do administrador

AutorPotira Ferreira Brito de Macêdo
CargoMestranda em Direito Processual Civil pela UFES. Pós-Graduada em Direito Tributário pelo IBET. Advogada
Páginas117-136

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1. Introdução

A discussão a respeito da responsabilidade tributária dos sócios é polêmica e inesgotável. Isso porque um dos sujeitos dessa relação jurídica material e processual é a Fazenda Pública e sua voracidade arrecadadora, que apesar de seus inúmeros privilégios, ganhou um forte aliado, disposto a fechar os olhos às ilegalidades e arbitrariedades por ela cometidas: o Superior Tribunal de Justiça.

Recentemente, a Corte Superior firmou entendimento segundo o qual as Execuções Fiscais serão redirecionadas para os administradores, quando seus nomes constarem das Certidões de Dívida Ativa, momento no qual deverão comprovar, por meio de Embargos de Declaração, a sua irresponsabilidade perante o débito social.

Essa situação, além de se revestir de inconstitucional e ilegal, teve enorme impacto na comunidade jurídica, e vem causando transtornos de toda ordem para os sócios e administradores de empresas devedoras do Fisco, conforme se tentará demonstrar.

2. Fixando as premissas

Inicialmente, faz-se necessário, no intuito de manter a coerência do texto a ser desenvolvido, estabelecer, resumidamente, quais as premissas que orientarão o presente artigo.

2. 1 O direito positivo e a Ciência do Direito

Distingue-se o direito positivo da Ciência Jurídica. Aquele é um complexo de nor-

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mas jurídicas, válidas num dado país e em determinado espaço de tempo, que vertido em linguagem prescritiva, volta-se para regular a conduta humana, tendo como traço distintivo a coercitividade, isto é, a pacificação social feita pelo uso da força, que, excepcionalmente, é aplicada por autoridade competente (agente autorizado pela ordem jurídica).1

Já a Ciência Jurídica descreve o direito posto, ou seja, debruça-se sobre as normas jurídicas, com o propósito de conhecê-las e descrevê-las, e o faz por meio de proposições ou enunciados jurídicos, de cunho descritivo.2

Essa distinção é de suma importância, uma vez que partindo-se da premissa de que o direito positivo é o objeto da Ciência do Direito, percebe-se que o objetivo desse artigo, enquanto Ciência, será justamente descrever o direito posto. Não sua totalidade, mas um segmento específico de normas que o compõe, especificamente inseridas nos arts. 566 e ss. do CPC, e na Lei n. 6.830/1980. Não se afasta com essa afirmação, que será necessário ainda, no decorrer do artigo, socorrer-se a outros diplomas normativos, o que se quer asseverar é que, as normas acima citadas terão análise preponderante. Trata-se de um corte metodológico.

2. 2 A norma jurídica completa

Segundo Hans Kelsen, as normas jurídicas não se caracterizam como enunciados, mas como mandamentos, isto é, comandos imperativos que prescrevem, permitem, atribuem poder ou competência, vertidas em linguagem. São "(...) algo que deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira".3

Estruturalmente, a norma jurídica é um juízo hipotético-condicional (se ocorrer o fato X, então deve ser a prestação Y), composta de uma hipótese e um consequente. Essa ligação entre o antecedente e o consequente denomina-se imputação.4

Assim, toda norma assume uma feição dual, ou seja, terá um antecedente ligado a um consequente, por um conectivo deônti-co, modalizado nas formas proibido, permitido e obrigatório. O antecedente descreve um fato de possível ocorrência no mundo real, e o consequente prescreve as condutas intersubjetivas, apresentando-se como uma proposição relacional entre sujeitos de direito, em torno de uma determinada conduta. Portanto, a relação jurídica prevista no consequente se instaura quando e onde ocorrer o fato descrito na hipótese.

Ademais, existem duas normas jurídicas distintas, dois enunciados de dever ser: um no sentido de que certo indivíduo deve observar determinada conduta, e outro no sentido de que outro indivíduo deve executar uma sanção no caso de a primeira norma ser violada. Trata-se da distinção entre normas primárias e normas secundárias. A primeira é aquela que prescreve a conduta de omissão do delito (lícito), e a segunda estipula uma sanção diante de um possível delito (ilícito). A primeira norma está contida na segunda norma, a única norma genuína.5

Portanto, a significação deôntica completa só é alcançada com a reunião de duas normas em sentido estrito: a norma primária, que prevê certa conduta, e a norma secundária, que prescreve uma sanção, aplicada pelo Estado-Juiz, no caso de descum-primento da conduta estatuída na norma primária. Isso porque, ao suprimir a norma secundária sancionadora, da primária, essa fica desprovida de juridicidade.6

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A norma secundária descreve em seu antecedente o descumprimento da relação jurídica prevista na norma secundária (ato ilícito) e, no seu consequente, uma atuação do Estado-Juiz, chamada tradicionalmente de sanção, isto é, uma penalidade imposta por autoridade, para que o sujeito cumpra com o previsto na norma primária.

2. 3 O sistema do direito positivo e o processo de positivação das normas jurídicas

O sistema do direito positivo é o complexo de normas jurídicas, entrelaçadas entre si, que visam regular a conduta humana, e está vertido em uma linguagem prescritiva. Enquanto que o sistema da Ciência do Direito é o conjunto de proposições jurídicas, formuladas com o fim de compreender o direito positivo, por meio de uma linguagem descritiva.

O sistema normativo é aquele onde todas as normas retiram sua validade de uma norma fundamental. Essa norma fundamental é pressuposta e não pode ser derivada de uma norma superior. Logo, o fundamento de validade de uma norma é sempre outra norma, hierarquicamente superior, ou seja, uma norma só é válida se pertencer a um sistema válido de normas, e derivar de outra norma.7

Portanto, o sistema normativo é um conjunto de normas cuja união é estabelecida pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade dessa ordem normativa é a norma fundamental pressuposta, que é uma proposição axiomática obrigatória, da qual, como se disse anteriormente, se retira a validade de todas as demais. Essa é a premissa kelseniana, de que no sistema jurídico as normas formam uma estrutura escalonada de diferentes níveis.

Nesse sentido, na ordem jurídica brasileira, a Constituição Federal está no nível mais elevado dessa estrutura, devendo as demais normas infraconstitucionais, para terem validade, respeitá-la em sua integridade. Caso contrário, decerto, serão inválidas.

Nessa hierarquia das normas jurídicas, as normas gerais e abstratas situam-se no ápice da pirâmide, enquanto que as individuais e concretas, estão mais próximas de sua base, ou seja, dos comportamentos humanos. Aquelas, sozinhas, não regulam a conduta humana, mas dependem das individuais e concretas para fazê-lo.

Esse é o processo de positivação das normas jurídicas, isto é, parte-se de uma norma geral e abstrata, que não se presta a regular a conduta humana diretamente e, por meio do processo de positivação, expede-se uma norma individual e concreta. Essa sim, reguladora dos comportamentos humanos. Assim, o processo de positivação se efetiva pela aplicação ou incidência do direito, quando o agente competente, ou seja, o sujeito de direito autorizado pelo ordenamento jurídico, emite uma norma individual e concreta.8

Eis a lição de Lourival Vilanova, ao afirmar que "A passagem da norma geral para o concreto faz-se mediatamente, nos atos de competência de poder. É preciso ato de poder, manifestação de vontade de órgão (legislativo, administrativo ou ju-risdicional) para a realização da regra abstrata".9

Fixadas essas premissas, imperioso ainda realizar uma breve análise do processo executivo em geral.

3. O processo executivo

Relembrando as lições do capítulo anterior, nota-se que o objetivo principal do direito é a regulação da conduta humana e, diante disso, criou-se para o indivíduo a possibilidade intervir no processo de

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sua positivação, por meio da via judicial, que é dirigida a um terceiro sujeito, o Esta-do-Juiz, que exerce o monopólio da função jurisdicional. Como assevera Lourival Vi-lanova, tal monopólio provém do fato de ser o Poder Judiciário "(...) portador de um complexo de poderes-deveres, em virtude da incidência de normas constitucionais (e legais) que o institui e lhe demarca a competência".10

Portanto, o processo de positivação do direito se inicia com as normas de competência previstas na Constituição Federal, que conferem poderes-deveres aos entes políticos (Legislativo, Executivo e Judiciário), para emitirem normas gerais e abstra-tas. Com o exercício dessa competência e, a emissão das normas gerais e abstratas, surge a possibilidade de emissão de normas concretas, individuais ou gerais, pelos agentes autorizados pelo sistema, que podem interferir na esfera privada do indivíduo ou de dada coletividade, conferindo-lhes, por consequência, o direito de intervir no processo de positivação.11

Assim, quando o agente competente aplica o direito, emitindo uma norma individual e concreta, que afeta o direito de um indivíduo, nasce para ele o direito de interferir no processo de positivação, por meio...

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