As repercussões do código de processo civil/2015 e da Lei n. 13.467/2017 no instituto da desconsideração de personalidade jurídica no processo do trabalho

AutorAline Braga de Castro
Páginas74-82

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1. Introdução

O ordenamento jurídico brasileiro criou distinção entre a pessoa do sócio e a sociedade empresária, propriamente dita. A criação do instituto civilista da personalidade jurídica foi essencial para o desenvolvimento econômico do país, uma vez que possibilitou conferir autonomia patrimonial aos bens empregados na atividade econômica, passando esses a responder de maneira independente pelas obrigações contraídas pela empresa. A maneira criada para distinguir foi a aquisição de personalidade jurídica à sociedade que inscreve os seus atos constitutivos no registro próprio (art. 985, CC).

O objetivo da criação da personalidade jurídica foi delimitar a responsabilidade dos sócios e os respectivos patrimônios, sendo certo que, em regra, os bens dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade. No entanto, com o passar do tempo e, diante da constatação dos abusos e fraudes cometidos pelas sociedades empresarias, essa limitação de responsabilidade foi flexibilizada pela Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, a qual permite que o patrimônio dos sócios respondam pelas obrigações contraídas pela sociedade quando constatado que a pessoa jurídica está usando de sua personalidade para fraudar os credores.

A teoria existe no ordenamento jurídico há bastante tempo e, como exemplo, podemos citar o art. 28 do CDC de 1990 e o art. 50 do CC de 2002. No entanto, até o advento do CPC, não existia norma processual ditando o procedimento pelo qual a Desconsideração da Personalidade Jurídica deveria ser aplicada.

O CPC, consagrando as garantias individuais pre-vistas no art. 5º da Constituição Federal e reforçando o aspecto constitucional do processo, criou o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, nos arts. 133 a 137. O Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa n. 39, na qual dispôs sobre a aplicação do referido procedimento ao Processo do Trabalho. Por fim, com o advento da Reforma Trabalhista houve a inserção do art. 855-A na CLT, que prevê a utilização do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no Processo do Trabalho, nos moldes do CPC. Faz-se necessário estudar a compatibilidade do referido incidente com a dinâmica do Processo do Trabalho.

2. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica à luz do CPC e da Lei n 13.467/2017

O Código de Processo Civil trouxe inúmeras inovações processuais ao ordenamento jurídico brasileiro que, certamente, demandarão da comunidade jurídica profundos estudos para a aplicação das mudanças de paradigma trazidas pela nova legislação. A alteração mais relevante trazida pelo Código, ainda que não se trate de novidade, é a necessidade de os operadores do direito interpretarem os institutos processuais à luz dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República de 1988, que agora foram incorporados a legislação processual pelos arts. 1º ao 11º do CPC/15.

Verifica-se que o legislador, ao conferir aos direitos fundamentais localização topográfica privilegiada, pretendeu reafirmar a visão pós-positivista de constitucionalização do processo. Dentre todos os princípios constitucionais, observa-se que o CPC teceu maiores deferências ao contraditório, o que, inclusive, alterou a forma de se perceber e conceituar o princípio1. A nova

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concepção do contraditório, inspirada no direito processual civil europeu, constitui expressão de um novo processo judicial, marcado notadamente pelos princípios da
democracia e cooperação (DALAZEN, 135, 2017).

O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica está diretamente relacionado ao princípio do contraditório substancial e à noção de processo justo. Sua normatização na esfera processual se deu em razão de críticas relacionadas à violação de direitos constitucionais pelo Poder Judiciário na aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, encampada pelos arts. 50 do CC/02 e 28 do Código de Defesa do Consumidor.

Além da direta relação com o contraditório, o incidente previsto no art. 133 e seguintes do CPC/15 dialoga com o dever das partes de atuarem em conformidade com os ditames da boa-fé (art. 5º CPC). Não obstante os princípios já elencados, ao aplicar o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica no Processo do Trabalho, o intérprete deve considerar a norma prevista no art. 8º do CPC, principalmente do tocante à necessi-dade de se promover e resguardar a dignidade da pessoa humana, tendo sempre em mente que a aplicação da norma processual, de cunho eminentemente instrumental, tem por objetivo atender aos fins sociais, notadamente os previstos no art. 3º da Constituição da República.

Conforme já mencionado, umas das grandes inovações do Código de Processo Civil foi a disciplina do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica. O procedimento criado pelo CPC refletiu os anseios dos operadores do direito, que sempre questionaram a necessidade de aplicação do incidente à luz do princípio do contraditório, já que, principalmente no direito processual do trabalho, primeiro se atingia o patrimônio do terceiro e, somente após a prática do ato expropriatório, esse era chamado para integrar o pólo processual.

O CPC estabeleceu a necessidade de observância do contraditório prévio, o qual se prima pela cooperação e pela construção de um provimento jurisdicional, não só com base na figura do magistrado, mas também com o amparo das partes. Dessa forma, admitir o incidente da maneira como era aplicado, ou seja, apenas com o contraditório diferido, restavam caracterizadas violações ao direito do terceiro, que só se tornará parte no processo após a prática de uma série de atos, inclusive expropriatórios.

Muitos doutrinadores2 sempre questionaram a prejudicialidade de defesa quando não se permite o contraditório prévio em um instituto que visa a atingir o patrimônio de um indivíduo. Atendendo a esses questionamentos que o incidente foi criado, para que seja dada a oportunidade prévia do terceiro se manifestar. Ou seja, a disciplina do incidente trouxe efetividade aos princípios constitucionais já existentes.

Importante frisar que, para que a prestação jurisdicional seja efetivamente cumprida, não basta a mera prolação de uma decisão de mérito, sendo imprescindível que a decisão atenda aos requisitos legais e que seja justa no seu aspecto processual. Não se pode admitir como apta a produção de efeitos a decisão que viola direitos fundamentais.

As garantias processuais são direitos humanos fundamentais e, portanto, devem ser observadas em todas as fases do processo. Assim sendo, qualquer medida, tal como o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, que atinge o patrimônio de uma pessoa e, por conseguinte, interfere no direito de propriedade de um terceiro, deve ocorrer sob os ditames legais, sob pena de violar direitos fundamentais.

Muito se diz que a verdadeira motivação do legislador para a criação do procedimento previsto nos arts. 133 e seguintes do CPC se deu em razão da forma como a Desconsideração da Personalidade Jurídica é feita na Justiça do Trabalho. Assim, por meio da criação desse procedimento, o legislador visou a assegurar, ao terceiro, a efetividade dos direitos fundamentais previstos na Constituição, que agora também encontram previsão nos artigos do CPC. O procedimento criado para o incidente garante a aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica com observância dos princípios do contraditório e do devido processo legal.

Até a publicação da Lei n. 13.467/2017, a CLT era omissa quanto ao regramento do incidente, razão pela qual cada magistrado aplicava a desconsideração de maneira distinta. Enquanto para uns bastava que a execução contra a pessoa jurídica tornasse frustrada para determinar a expropriação de bens de terceiro, outros magistrados promoviam a citação dos sócios para integrar a lide.

É certo que existem no ordenamento jurídico brasileiro duas teorias que prevêem a Desconsideração da Personalidade Jurídica. A primeira, chamada de Teoria Maior ou Subjetiva, com previsão no art. 50, do CC/02, trata a desconsideração como medida excepcional, que somente é autorizada na hipótese de fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial. A segunda, denominada de Teoria Menor ou Objetiva, consagrada no art. 28 do CDC, permite que seja atingido os bens dos sócios pela mera constatação da inexistência de bens da empresa suficientes para satisfazer a dívida da pessoa jurídica.

Neste ponto, constata-se que a Justiça do Trabalho aplica a Teoria Menor, haja vista que, se restar comprovada a insuficiência de bens da pessoa jurídica, admite que a execução prossiga na pessoa dos sócios3.

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Importante frisar que a aplicação do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica é medida eficaz para garantir a efetividade da execução. No entanto, por vezes, pode-se atingir o patrimônio de um ex-sócio que, em que pese ter integrado o quadro societário da empresa em um lapso temporal, não é responsável pela dívida que gera o bloqueio ou expropriação no seu patrimônio. Situações como essa, além de gerar sentimento de injustiça, violam o direito de propriedade e o direito à ampla defesa.

Por tal razão, é necessário que o magistrado, no momento de apreciação da Desconsideração da Personalidade Jurídica – seja o pedido feito por requerimento da parte, seja quando haja atuação de ofício – analise as questões fáticas e jurídicas relevantes para proferir a decisão.

Diante de todas essas violações, o próprio TST, ao editar a IN n. 39/2016, de maneira expressa, afirmou ser o procedimento criado pelo CPC aplicável ao Processo do Trabalho (art. 6º) para que possa ser assegurado...

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