As Repercussões da Globalização no Direito do Trabalho

AutorMaria Alice Gurgel do Amaral
CargoAdvogada. Pós-doutoranda École de Droit, Université Paris I Panthéon Sorbonne, França
Páginas32-37

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Excertos

"As estatísticas, os problemas sociais, o desemprego, a exclusão social e o aumento dos trabalhos informais e precários (ou precarizados) estão expostos na realidade dos países e na vida das pessoas"

"A escolha dos países onde investir é orientada pela procura de mão de obra de valores menores e de matéria-prima a preços competitivos"

"Não é possível manter a contradição de proteger a água, o solo, os animais, o ar, o patrimônio natural e histórico, e jogar para a pobreza, o desemprego, a doença, enfim, para a exclusão social a pessoa humana do trabalhador"

1. Os efeitos perversos para a pessoa humana do trabalhador

Um grito de alerta, que ressoou em Roma, no ano 63a.C., motivado por um sentimento de inconformismo e urgência, poderia novamente ecoar nos dias atuais:

Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iac-tabit audacia? (Até quando, ó Catilina, abusará de nossa paciência? Por quanto tempo ainda zombará de nós essa tua loucura? Até que ponto a tua audácia sem freios nos oprimirá?)1

São as palavras proferidas por Marcus Tullius Cicero, orador, político, filósofo, no senado ro-mano, contra Catilina, que ameaçava o governo da época. Neste momento, tais palavras deveriam ser direcionadas para todo o sistema capitalista, que através das várias ondas históricas (usando a expressão de Alvin Toffier, autor de A Terceira Onda) e focando principalmente na segunda e atual globalização, modificou a geografia do mundo, as relações de produção e de trabalho, mas também produziu mais empobrecimento.

Esse movimento avassalador, viabilizado, entre outros fatores, pela tecnologia da informação, que determinou o fim das econo-mias nacionais, com a integração cada vez maior dos mercados, dos meios de transportes e das comunicações, levou oportunida-des de investimentos financeiros e de trabalho a todo o planeta. Essa é, comprovadamente, uma repercussão positiva. No entanto, enriqueceu ainda mais o capital e aviltou o trabalho, ao buscar países com oferta de mão de obra mais barata. Também na procura de matérias-primas de preços mais competitivos e grandes mercados consumidores, o capital obteve altos lucros, concentrando ainda mais as riquezas e, em consequência, aumentando a desigualdade em todo o mundo.

Historicamente, sedimenta-se a posição de que o trabalhador tem se perpetuado na posição de refém do capital desde as duas revoluções industriais, sendo a primeira nos anos de 1760 a 1830 e a segunda, entre 1830 e 1860 (séc. 18 a 19), quando se registrou o aumento inédito das riquezas na mão de poucos.

Registre-se ainda que, ante-riormente, já havia ocorrido um enorme acúmulo de capitais, o qual viabilizou os grandes feitos da revolução industrial do século 18, em particular na Inglaterra e na França, as duas principais po-tências coloniais e financeiras do séc. 19 e início do séc. 20, e que subtraíam grandes contingentes de riquezas de suas colônias.

Piketty (2014, p. 35) refere-se a uma "primeira globalização financeira e comercial, dos anos 1870 a 1914, época que guarda profundas semelhanças com a atual globalização, em curso

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desde os anos 1970-1980", como um período "ao mesmo tempo fascinante e prodigiosamente desigual. São os anos em que se inventaram a lâmpada elétrica e as viagens transatlânticas (o Titanic partiu em 1912), o cinema e o rádio, o automóvel e os inves-timentos financeiros internacio-nais".

Mello e Costa (1991, p. 153) explicam que houve uma acumulação primitiva do capital, ainda mais antiga:

A Revolução Comercial (sécs. XV - XVII) que se estendeu da expansão ultramarina (sécs. XV - XVI) ao início da industrialização (séc. XVII), correspondeu a um gigantesco incremento do comércio em consequência da descoberta dos novos continentes, do caminho marítimo das Índias e da formação do mercado mundial. As trocas se espalharam por todo o planeta, ocorrendo uma fabulosa concentração de riquezas nos países da Europa Ocidental. Nessa época, com a formação dos impérios coloniais, a Europa transformou-se no centro da economia mundial. Os produtos tropicais e o ouro do Brasil, os metais preciosos da América espanhola, os escravos da África e as especiarias do Oriente criaram condições para a primeira grande acumulação de capitais no continente europeu.

Complementado, Mello e Costa afirmam que "esse proces-so de concentração de riquezas na Europa proporcionou os re-cursos necessários à defiagração da Revolução Industrial".

Essa foi considerada a acumulação primitiva do capital. "Une fois constitué, le capital se reproduit tout seul, plus vite que ne s’accroît la production. Le passé dévore l’avenir", afirma Piketty (2013, p. 942). Uma vez constituído, o capital se reproduz sozinho e mais rápido do que cresce a produção. O passado devora (determina) o futuro.

As estatísticas, os problemas sociais, o desemprego, a exclusão social e o aumento dos trabalhos informais e precários (ou precarizados) estão expostos na realidade dos países e na vida das pessoas. Evidentemente, a globalização é apenas um dos movimentos capitalistas que colaboram para a desigualdade crescente e concentração de riquezas. É claro que a internacionalização de recursos trouxe e traz aberturas de mercados e criação de centros de trabalho e lugares-vagas.

Mas é seguro também que o capita-lismo trafega com liberdade total, favorecendo os seus interesses corporativos em detrimento do capital humano, e com apoio dos governos, que anseiam sempre pela entrada de investimentos internacionais maciços.

Paul Singer adverte para um aspecto que não foi considerado (1999, p. 32):

Este pensamento consolador não nos deve fazer esquecer, no entanto, que ao mesmo tempo, os ricos es-tão ficando mais ricos em todos os países e que muito da degradação e do sofrimento infiigidos poderiam ter sido evitados se a globalização tivesse sido minimamente combinada com programas internacionais de reestruturação produtiva.

São passados, pois, mais de vinte anos ou trinta (conforme a data convencionada para seu início - Piketty indica 1970-1980, enquanto outros autores colocam a queda do muro de Berlim como o marco inicial, em 9 de novembro de 1989) desde que essa nova ordem sacudiu o mundo e fez um...

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