As Reformas da Previdência Social

AutorRaul Miguel Freitas de Oliveira
Ocupação do AutorProfessor Doutor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FDRP/USP, na cadeira de Direito Administrativo, Ambiental e Sanitário
Páginas45-87

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2. 1 As reformas nos sistemas de previdência social como uma preocupação mundial

As reformas nos sistemas previdenciários têm sido uma realidade constante em diversos países do mundo, caracterizando-se por debates intensos nos quais diversificadas teorias foram geradas e discutidas.

A análise de alguns pontos básicos dessas teorias que embasaram tais reformas é indispensável para a compreensão do atual modelo previdenciário brasileiro, podendo adicionar elementos ao perfeito entendimento dos princípios ora estudados.

Além das teorias, construídas muitas vezes no seio de organismos internacionais, como o Banco Mundial, a Organização Internacional do Trabalho, entre outros, relevante também o entendimento dos fatos que têm sido apontados como as causas básicas de tais reformas.

Um primeiro fato, que tem sido ressaltado como razão para a implementação de reformas em países da América Latina e Europa, é a denominada “crise fiscal do Estado”, conforme apontado por Ademir Alves da Silva1:

A Europa e a América Latina têm sido palco de intensa polêmica e de medidas inovadoras em torno da reforma de seus sistemas de seguridade social em razão da chamada crise fiscal do Estado. De fato, o desequilíbrio das contas públicas vem constituindo o grande argumento em favor da

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redução das despesas previdenciárias, como no caso da América Latina e, particularmente, do Brasil – uma das formas de liberar recursos para o pagamento de juros e encargos da dívida pública.

Tal crise teria se acentuado a partir da década de 1980, época em que vários países começaram a discutir e realizar suas reformas, informação confirmada por Wagner Balera2: “Sem embargo, os anos oitenta e noventa foram aqueles nos quais houve a mais intensa e extensa temporada de reformas previdenciárias mundo afora”.

Mesmo dado é registrado por Reinhold Stephanes3:

A crise que afetou o mundo inteiro na década de 1980 evidenciou o esgotamento das fontes tradicionais de financiamento. Houve uma generalização do déficit público da maioria das nações e, em conseqüência, uma busca por saídas que não fossem o aumento dos impostos ou o endividamento. (...) Percebe-se também que os países da América Latina demoraram para iniciar seu ciclo de reformas. Somente no início da década de 1980, o Chile daria a largada adotando um modelo que continua servindo de inspiração para os demais, com raras exceções.

O mesmo autor ressaltou também que, atualmente, “dos dez países de maior expressão socioeconômica da região, à exceção do Brasil, sete estão com seus sistemas de previdência estruturados ou em fase de reestruturação, e em apenas dois deles não há registro de reformas”.

Porém, importante dado histórico foi registrado, em obra do ano de 1986, por Carmelo Mesa-Lago4: muitos países da América Latina sofriam crises em seus sistemas de seguridade social desde a década de cinquenta e sessenta do século passado, em virtude da forma como foram estruturados em seus nascedouros:

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Además algunos países latinoamericanos han sufrido prematuramente los efectos negativos de la crisis de la seguridad social. Para los primeros países adoptantes de la seguridad social, la existencia de programas anti-guos y de benefícios demasiado generosos, combinada con los recursos escasos, provocó dificultades y crisis financieras en los años cincuenta y sessenta, mucho antes del surgimiento de crisis similares en Norteamérica y Europa. Dichos países estudiaron los problemas y propusieron reformas que se retrasaron a veces hasta por un cuarto de siglo debido a la fuerte oposición de grupos de presión. [grifo nosso]

Conclui-se, do exposto, que a falta de recursos financeiros para o atendimento das várias necessidades públicas pelo Estado, entre elas a previdência social, com a consequente necessidade de reformas nos sistemas previdenciários, é realidade que vários países da América Latina e Europa têm vivenciado, desde a década de 1880.

Nesse período, também, começou-se a associar os movimentos reformadores às tendências de desregulamentação e privatização nas políticas públicas, em substituição às políticas estatizantes e reguladoras do passado.

Não se deve também olvidar que os sistemas previdenciários da América Latina, nas décadas de 1980 e 1990, atingiram sua maturidade caracterizada pelo envelhecimento de suas populações.

Tal fato, aliado ao momento histórico marcado por fortes crises econômicas e políticas, possivelmente contribuíram para a deterioração das desgastadas estruturas previdenciárias.

Adiciona-se a esse contexto a publicação do relatório Averting the old age crisis: policies to protect the old and promote growth (“Prevenindo a crise da terceira idade: políticas para proteger o idoso e promover crescimento”), pelo Banco Mundial, no ano de 1994.

Em tal documento foram lançadas as bases teóricas das reformas concretizadas nos países da América Latina (por exemplo, o Chile) e, mais tardiamente, nos antigos países socialistas do chamado Leste Europeu.

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Wagner Balera5corrobora a sua importância da seguinte forma:

Poucos documentos terão tido tanta influência pelo mundo afora quanto o célebre informe do Banco Mundial: Averting the old crisis: Policies to protect the old and promote growth, que foi dado à estampa em 1994.

A proposta, em suma, pretendia que os regimes de repartição deveriam ser substituídos pelo de capitalização.

O modelo constante nele é denominado de “modelo do Banco Mundial”, que é costumeiramente interpretado como uma proposta de privatização dos sistemas previdenciários públicos, pela instalação dos chamados ‘três pilares’:

  1. um de benefício definido financiado;

  2. um de contribuição definida, mandatória, de gerenciamento privado; e

  3. um pilar privado voluntário.

Mesmo entendimento foi esposado pelo jurista Wagner Balera6:

As reformas detiveram-se no que se pode, acompanhando a terminologia usual, denominar esquema dos três pilares: o plano público, o plano dos fundos de pensão e o plano das seguradoras privadas, no subsistema de previdência.

Flávio Martins Rodrigues7aborda os três pilares da seguinte forma:

O modelo previdenciário observado na grande maioria dos países desenvolvidos organiza-se em três vertentes principais, também chamados os três pilares da previdência. O primeiro pilar é de natureza pública e de

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participação compulsória de toda a massa de trabalhadores, funciona em regime de custeio por repartição simples (e, portanto sem a acumulação de recursos) e possui contribuições de natureza tributária para o seu custeio. O segundo pilar é de natureza complementar ao primeiro, de iniciativa conjunta do empregador (por razões de responsabilidade social) e dos empregados, seus destinatários, seu custeio é feito de forma capitalizada. São os grandes fundos de pensão que associam, de forma solidária e sem visar o lucro, todos os trabalhadores de uma empresa, grupo de empresas ou segmento econômico. O terceiro pilar é iniciativa individual dos trabalhadores, em geral para repor a totalidade de sua remuneração, quando da inatividade, e se operacionalizam através de seguradoras ou grupos financeiros.

Muitos pesquisadores da matéria previdenciária costumam também afirmar que vários mitos foram criados sobre as bases teóricas do modelo do Banco Mundial, como apontaram Peter R. Orszag e Joseph
E. Stiglitz8, na Conferência do Banco Mundial “Novas idéias sobre a seguridade da terceira idade”, em 14 e 15 de setembro de 1999.

Tais doutrinadores9chamaram atenção para o fato de que foi criada uma concepção de que seria possível conceber uma receita pronta e acabada a ser aplicada a todos os países do mundo na reestruturação de seus sistemas previdenciários. Ao contrário de tal opinião generalista, os autores explicaram que os três pilares propostos pelo Banco Mundial são por demais amplos e costumam ser interpretados de forma superficial:

Em princípio, os “três pilares” delineados em Averting the Old Age Crisis (Prevenindo a crise da terceira idade) são amplos o suficiente para refletir qualquer combinação potencial de medidas políticas – especialmente, se o segundo pilar financiado incorpora ambos sistemas – gerenciados privativa e publicamente. Mas, na prática, o “modelo do Banco Mundial” tem sido interpretado como envolvendo uma constelação específica de três pilares: um pilar de benefício definido financiado; um pilar de contribuição definida financiada; e um pilar privado voluntário.

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Apregoa-se também que o mesmo modelo proporia a substituição do regime financeiro de repartição simples por capitalização, em modelos previdenciários.

Nessa linha é que muitos teóricos da economia, ao analisarem a realidade previdenciária de vários países, costumam apontar que as preocupações atuais devem se focalizar em tal detalhe: a substituição dos regimes de financiamento, levando o debate, quase sempre, a proporções que extrapolam o real significado de tais mecanismos, conforme adiante se demonstrará.

Lawrence Thompson10, porém, com clareza, assim resume o cerne das reformas previdenciárias cujo pano de fundo é a discussão do regime financeiro de repartição simples:

Uma preocupação é que os sistemas previdenciários tradicionais em regime de repartição, o nível geral de promessas de benefícios se tornou generoso demais, a relação entre contribuições e benefícios é demasiadamente tênue e grupos políticos influentes têm tido excessivo êxito na obtenção de privilégios injustificáveis. Além disso, como resultado direto dessas tendências ou de outros desenvolvimentos econômicos e políticos, as autoridades já não conseguem arrecadar uma parcela significativa das contribuições devidas, o que as deixa sem condições de financiar as atuais promessas de benefícios e solapa a confiança nas instituições respectivas. Essas preocupações são mais...

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