As Muitas Faces do Humanitarismo/The many faces of Humanitarianism.

AutorDouzinas, Costas

Versao original: The many faces of Humanitarianism, publicado em PARRHESIA NUMBER 2, 2007, pp 1-28

Traducao realizada com o fomento do Edital de Apoio a Periodicos Cientificos da FAPERJ

Humanismo e Direitos Humanos

Quem e ou o que e o "humano" dos direitos humanos' e a "humanidade" do humanitarismo? A pergunta soa ingenua, ate mesmo boba. No entanto, importantes questoes filosoficas e ontologicas estao envolvidas neste tema. Se sao dados direitos aos seres em razao de sua "humanidade", a natureza "humana", com suas necessidades, caracteristicas e desejos, e a fonte normativa dos direitos. A definicao de humano vai determinar a substancia e o alcance dos direitos. Mesmo se soubessemos quem e o "humano", quando comecam e terminam a sua existencia e os direitos a ela associados? Fetos, bebes geneticamente planejados ("designer babies"), clones, pessoas em estado vegetativo permanente sao plenamente humanos? E quanto aos animais? O movimento de defesa dos direitos dos animais, desde a militancia da ecologia profunda e da anti-viviseccao ate as suas variacoes ecologicas mais suaves, colocou na agenda politica a diferenciacao legal entre humano e animal firmemente e elaborou um grande numero de projetos de direitos dos animais. Este artigo examina a ideologia do humanismo em suas diversas transformacoes e permutacoes. Comeca com a historia dos conceitos de humanidade e de natureza humana.

O conceito de "humanidade" e uma invencao da modernidade. Tanto Atenas quanto Roma possuiam cidadaos, mas nao "homens", no sentido de membros da especie humana. Homens livres eram atenienses ou espartanos, romanos ou cartagineses, mas nao eram pessoas; eles eram gregos ou barbaros, mas nao humanos. A palavra humanitas apareceu na Republica Romana. Era uma traducao de paideia, a palavra grega para cultura e educacao, e foi definida como eruditio et institutio in bonas artes. (1) Os romanos herdaram a ideia de humanidade da filosofia helenica, em particular do Estoicismo, e a usaram para distinguir entre o homo humanus, o romano educado, e o homo barbarus. O "homem humano" era regulado pelo jus civile, possuia algum conhecimento da cultura e filosofia grega e falava a forma culta do idioma--ele era como um pos-graduado que le Greats em Oxford e fala com um sotaque um pouco mais chique e elegante. O homo barbarus era submetido ao jus gentium, carecia da sofisticacao do homem de verdade e vivia na periferia do imperio. O primeiro humanismo foi resultado do encontro entre as civilizacoes grega e romana, e foi usado pelos romanos para fixar sua superioridade sobre o mundo. De modo semelhante, o humanismo do inicio da era moderna da Renascenca italiana reteve a nostalgia pelo passado perdido e a exclusao dos que nao se igualavam aquele periodo. Ele foi apresentado como um retorno aos prototipos gregos e romanos e tinha como alvo o barbarismo da escolastica medieval e o norte gotico.

Uma concepcao diferente de humanitas emergiu na teologia Crista, formidavelmente capturada na afirmacao Paulina de que nao ha grego ou judeu, homem livre ou escravo. Todos os homens sao igualmente parte da humanidade espiritual, que e justaposta a divindade e ao mundo inanimado da natureza. Todos podem ser salvos pelo plano de Deus para a salvacao. A igualdade universal--ainda que de carater espiritual--, um conceito desconhecido aos classicos, adentrou o cenario mundial. No entanto, a base religiosa da humanidade foi abalada pelas filosofias politicas liberais do seculo 18. O fundamento da humanidade foi transferido de Deus para a natureza (humana), inicialmente concebida de uma forma deista, e hoje compreendida de forma cientifica. Ao final do seculo 18, o conceito de "homem" veio a existir e logo se tornou o valor absoluto e inalienavel ao redor do qual girava o mundo inteiro. A humanidade, o homem como existencia da especie, adentrou o estagio historico como a combinacao peculiar das metafisicas classica e crista.

Para o humanismo, ha uma essencia universal do homem, e essa essencia e o atributo de cada individuo que e o sujeito real. (2) Michael Ignatieff e caracteristico quando escreve que "nossa especie e una, e cada um dos individuos que a compoe tem direito a igual consideracao moral". (3) Como mera existencia, o homem aparece sem diferenciacao ou distincao em sua nudez e simplicidade, unido a todos os outros em uma natureza vazia, privado de caracteristicas substantivas a nao ser seu livre-arbitrio, razao e alma--os elementos universais da essencia humana. Este e o homem dos direitos do homem, alguem sem historia, desejos ou necessidades, uma abstracao que tem tao pouca humanidade quanto possivel, ja que ele abandonou todos aqueles tracos e qualidades que constroem a identidade humana. Se, segundo Heidegger, a subjetividade e o principio metafisico da modernidade, e a personalidade legal, o "homem" dos direitos do homem, o sujeito de direitos, que exemplifica e move a nova epoca. Um minimo de humanidade e o que permite ao homem reivindicar autonomia, responsabilidade moral e subjetividade legal.

A ideia de que a essencia da humanidade seria encontrada em uma cifra humana que carece das caracteristicas que fazem de cada pessoa um ser unico e bizarra. Essa ainda e a ideologia dominante do liberalismo. Francis Fukuyama repetiu recentemente as ortodoxias do seculo 18 no contexto da engenharia genetica. "Quando nos tiramos todas as caracteristicas contingentes e acidentais de uma pessoa, permanece alguma qualidade humana essencial por debaixo, que e digna de um certo nivel minimo de respeito--chame a de fator X. Pele, cor, aparencia, classe social e riqueza, genero, contexto cultural, e ate os talentos naturais de uma pessoa sao todos acidentes de nascimento relegados a classe de caracteristicas nao essenciais. Mas, no ambito politico, nos e exigido respeitar as pessoas igualmente, com o fundamento de que elas possuem o fator X." (4) Para Fukuyama, as diferencas que criam nossa identidade sao superficiais e acidentais, caracteristicas contingentes sem grande importancia. Nesse ponto, ele repete a alegacao de Rawls de que os principios de justica so podem ser acordados entre pessoas que nao possuem conhecimento de seus talentos, necessidades e desejos especificos, que permanecem ocultos sob um veu de ignorancia. (5) Porem, diferentemente de Rawls e Habermas, que descobrem o fator elusivo que define a essencia da humanidade em caracteristicas transcendentais e em uma etica da especie, Fukuyama o procura em nossa heranca genetica. Podemos todos ser diferentes, mas por detras de idiossincrasias acidentais se esconde uma equivalencia universal, um certo je ne sais quoi que nos confere nossa dignidade humana.

Contudo, se olhamos para a pessoa real que desfruta dos "direitos do homem", ela e e permanece um "man all too man"--um cidadao prospero, um homem heterossexual, branco, urbano. Esse homem de direitos condensa em sua identidade a dignidade abstrata da humanidade e as prerrogativas reais de pertencer a comunidade dos poderosos. Em outras palavras, as diferencas superficiais acidentais de raca, cor, genero, etnia foram definidas consistentemente como desigualdades que sustentam a dominacao de uns e a sujeicao de outros, apesar do fator X, comum e subjacente. Poder-se-ia descrever a historia dos direitos humanos como o esforco constante e sempre mal sucedido de acabar com a distancia entre o homem abstrato e o cidadao concreto; de agregar carne, sangue e sexo ao contorno palido do "humano". A persistencia durante a historia dos barbaros, humanos inumanos, os "vermes", "cachorros" e "baratas" de nossos campos de concentracao mais antigos e mais recentes, como a Baia de Guantanamo e Abu Ghraib, o potencial de aniquilacao do mundo pelas criacoes da humanidade, assim como as evolucoes recentes em tecnologia genetica e robotica indicam que nenhuma definicao de humanidade e definitiva ou conclusiva. A maestria da humanidade, como a onipotencia de Deus, inclui a habilidade de redefinir quem ou o que conta como humano e ate mesmo de se autodestruir. Dos escravos de Aristoteles a bebes "geneticamente planejados", clones e ciborgues, as fronteiras da humanidade tem se transformado. O que a historia nos ensinou e que nao ha nada sagrado em nenhuma definicao de humanidade e nada eterno em relacao ao seu escopo. Nao existe "fator X" comum.

O significado de humanidade, como a fonte normativa fundamental, e disputada hoje pelos universalistas e relativistas, as duas expressoes mais proeminentes do humanismo pos-moderno. O universalista alega que valores culturais e normas morais deveriam passar por um teste de aplicabilidade universal e consistencia logica, e frequentemente conclui que se ha uma verdade moral, mas muitos erros, cabe a seus agentes impor esta moral aos outros. Os relativistas e comunitaristas (ja que o relativismo e uma posicao meta-etica) partem da observacao obvia de que valores sao dependentes de um contexto e tentam impo-los sobre aqueles que discordam da opressao da tradicao. Em Kosovo, servios cometeram massacres em nome da comunidade ameacada (a nacao servia devia manter Kosovo perpetuamente em seu "berco" e oprimir albaneses que viviam ali como grande maioria). Os aliados bombardearam em nome da humanidade ameacada e em apoio de direitos universais, mesmo se a relacao entre os direitos de albaneses kosovares e o bombardeio de civis em Belgrado nao seja imediatamente aparente. Ambas as posicoes, quando definem o significado e valor da humanidade, consideram tudo o que a elas resiste como absolutamente descartavel, sem excecoes. Elas exemplificam, talvez de formas diferentes, o desejo metafisico contemporaneo: tomaram uma decisao axiomatica em relacao ao que constitui a essencia da humanidade e a seguem com um obstinado desprezo por argumentos opostos.

O individualismo de principios universais esquece que cada pessoa e um mundo e surge em uma existencia comum com outros, esquece que nos estamos todos em comunidade. Ser em comum e uma...

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