As medidas liminares no mercado de capitais

AutorDaniel de Andrade Levy - Ana Luíza Arguello
Páginas85-100

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O objetivo do presente estudo é aprofundar um tema que permanece quase sempre dissimulado pelo dinamismo e pela confidencialidade que marcam com traços fortes o espaço em que se desenvolvem as transações societárias no mercado de capitais. A rapidez e o segredo que cercam as demandas empresariais, especialmente aquelas que concernem a empresas com ações negociadas publicamente, impedem que alguns temas possam ser enfrentados com a acuidade necessária ao possível desenvolvimento de alguma jurisprudência, seja judicial, seja arbitral.

É a partir dessa premissa que passamos a examinar o problema recorrente - mas raras vezes difundido - das medidas de urgência no direito empresarial, especialmente aquelas concernentes à suspensão de deliberações societárias.

Procuraremos examinar não apenas a doutrina nacional e a comparada, mas também uma certa jurisprudência,1ainda que grande parte dos debates fique limitada a sentenças arbitrais ou judiciais sob a guarida da confidencialidade. Quanto à jurisprudência, o TJSP2reúne aproximadamente 60 acórdãos que tratam dos requisitos e das condições para a suspensão de reuniões societárias, especialmente de conselho de administração.

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Procuramos selecionar aquelas que trazem, obiter dictum em sua maioria, parâmetros explicitando as condições para a concessão de uma medida urgente de suspensão dos efeitos de uma reunião societária no direito empresarial brasileiro.

Faremos, preliminarmente, uma aná-lise geral do assunto, a fim de justificar sua relevância nos dias atuais. Em seguida, considerando a ausência de regulação expressa sobre o assunto no Direito Brasileiro, imprescindível apontar os princípios que norteiam o tema, os quais, quando colocados em equilíbrio, apontam automaticamente seus limites e desafios. É a partir desse olhar axiológico que abordamos, especificamente, o problema da suspensão liminar das deliberações societárias, antes de propor breve síntese sobre o tema, a qual não visa a esgotar todas as dúvidas, mas apenas a sugerir um ponto de partida possível para as discussões vindouras.

1. Noções gerais

Ninguém mais nega que a empresa assumiu função de mola propulsora da economia, não só organizando a atividade econômica para viabilizar seu desenvolvimento, mas também com uma função social que transcende a mera maximização dos lucros. É nesse sentido que o estudo dos mecanismos de regulação destinados a proteger a atividade social e obstar a danos que prejudiquem a continuidade da empresa se torna fundamental.

Importante não olvidar os traços peculiares do direito societário que justificam o tratamento diferenciado das medidas de urgência neste contexto. Para Eros Grau e Paula Forgioni a sociedade é um "feixe de instrumentos jurídicos com objetivo de racionalização dos meios de produção e dos fatores econômicos, humanos e tecnológicos".3Essa relação complexa de interesses subjetivos convergentes e concorrentes é fonte de inúmeras questões processuais que demandam tratamento específico, adequado às suas necessidades e à teoria da empresa. Logo veremos que qualquer pronunciamento jurisdicional atinente à sociedade empresária não poderá jamais se limitar a uma análise unipessoal, mas sempre deverá considerar o feixe de relações jurídicas que formam e que resultam da empresa. Raramente prevalece apenas a ficção da personne morale.

Já que o processo é um instrumento de efetivação do direito material, os contornos e fundamentos filosóficos desse último é que servem a lhe dar forma. Portanto, apenas a compreensão das exigências do direito comercial e, mais precisamente, da sociedade empresária é que permitirão justificar uma atitude processual diferenciada.

Acentua-se ainda mais essa discussão quando está em pauta a tutela da verrossimilhança de um direito alegado com fundamento num juízo de cognição tão somente sumária para deferimento de uma medida urgente. Considerando, portanto, o exercício da atividade empresarial brasileira como o centro gerador de riqueza e impulsionador da economia do País, imprescindível garantir um ordenamento jurídico capaz de viabilizar o bom desempenho das relações comerciais, sob a égide dos princípios estatuídos pelo direito material. De um lado, a importância da continuidade econômica; de outro, a provisoriedade do processo liminar. É entre esses dois extremos que se desenvolvem as próximas linhas.

Como gênero das tutelas de urgência4 temos tanto os pedidos de natureza cautelar (art. 798 do CPC) como aqueles antecipatórios da tutela (art. 273 do CPC). A reunião desses instrumentos justifica-se na medida em que são espécies de provimentos que têm

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como objetivo evitar os males da demora. No caso específico das deliberações societárias, haja vista que se requer não tanto a tutela específica da futura decisão assemblear - salvo, por exemplo, no caso da tutela específica de um acordo proibindo algum conclave -, mas a suspensão da reunião, o poder geral de cautela e as respectivas medidas cautelares constituem mecanismos mais comuns.

Como exemplo de Direito Comparado citem-se os ordenamentos italiano e português. O primeiro, com intenção de regular especificamente esta seara do Direito, prevê um rito especial de competência para julgar casos societários. A iniciativa, apesar de criticada por alguns autores italianos,5procurou ao menos materializar a ideia de celeridade do processo e de tempestividade da tutela jurisdicional, designando-se um processo societário apto a projetar a controvérsia em um tempo abreviado. Para João Paulo Hecker da Silva, porém, ainda que traga maior celeridade, o rito previsto na legislação italiana não seria bem adaptado ao Direito Brasileiro.6

Segundo o autor, mais adequado ao Direito pátrio seria o ordenamento português: oferece uma disciplina diferenciada específica às medidas cautelares, com aplicação de critérios intimamente ligados aos interesses de direito material em jogo. Isso porque, ao se resumir a disciplinar uma medida urgente específica, a tutela mostra-se mais eficiente e produtiva.

No Brasil, portanto, o procedimento interventivo mantém sempre um caráter preliminar e acessório, pressuposto da manutenção ou adiantamento de um direito que será - ou não - assegurado posteriormente.

Assim, as medidas urgentes, não obstante fundadas no fumus boni iuris, ainda preservam nítido caráter processual. Tal só é reforçado em um domínio como o mercado de capitais, em que a prevalência de interesses privados fragmentados em uma sociedade com orientação neoliberal contrapõe-se à natureza pública intervencionista da medida liminar. Nada obstante, a criação de Varas e Turmas Julgadoras especializadas em direito empresarial, como no Rio de Janeiro e em São Paulo,7mostra que a matéria merece tratamento diferenciado em termos também procedimentais.

2. Em busca de um equilíbrio: as características próprias da empresa e a regulação das tutelas de urgência

Ausente uma regulação mais específica no Direito Brasileiro, o estudo das tutelas de urgência no processo societário depende necessariamente da análise de seus princípios norteadores: o princípio da preservação da empresa, o princípio da intervenção mínima e a premissa da efetividade do processo. A associação desses últimos ao processo empresarial torna necessária a definição dos limites que garantem uma coexistência harmônica e capaz de realizar os desígnios de um processo justo.

A discussão surge da necessidade de proteger, em caráter provisório e urgente, os interesses do tutelado, a fim de impedir que determinada ameaça de lesão se concretize. A ideia é fundamentada não apenas na previsão da tutela de urgência no ordenamento brasileiro (ainda que não específica ao processo societário), mas também no ideal de preserva-

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ção da empresa. Tal corrente entende ser parte da função do juiz promover a conservação da sociedade comercial como centro de geração e de distribuição de riqueza.

Ademais, o mercado de capitais exige tomadas de decisão ágeis e, ao mesmo tempo, consistentes. Exige-se que pressa e perfeição andem juntas, contradizendo o ditado popular. Ao mesmo tempo, a reversibilidade dessas medidas sopesa essa mesma perfeição, já que a possibilidade de reconsiderar o pronunciamento jurisdicional nesta seara tão dinâmica dá ao magistrado o conforto de nem sempre poder alcançar com rapidez a perfeição.

Exemplos da necessidade desta tutela são dados por João Paulo Hecker da Silva: "O custo e oportunidade em se fechar um negócio em determinado momento e a circunstância de se tomar uma deliberação a respeito de algum assunto em determinada conjuntura sempre demandam decisões ágeis que, por sua própria natureza, incompatíveis com os processos judiciais pelo procedimento ordinário".8

Diante dessas circunstâncias, as medidas liminares não são isentas de algumas dificuldades, especialmente em virtude da complexidade da matéria societária, muitas vezes alheia à rotina dos tribunais, e, também, da ordinária urgência com que tais medidas são apresentadas em juízo, "ou seja, se não há tempo para o debate profundo sobre essas questões, o juiz se vê premido a proferir uma decisão logo. E aí é que surgem os problemas".9

Em contrapartida à necessidade de se preservar a empresa e garantir a tutela urgente, argumenta Ricardo Padovani Pleti acerca de uma perspectiva liberal predominante no pensamento dos magistrados brasileiros, os quais se pautam pela premissa de que a intervenção é instituto jurídico que exige extrema cautela por parte do juiz que deve decidir sobre sua aplicação.10Em geral, é a pretensão de preservação da autonomia dos negócios empresariais em seu próprio interesse, ainda que em...

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