As mazelas do sistema eleitoral e da política/partidária

AutorJurandir Sebastião
Ocupação do AutorJuiz de Direito aposentado
Páginas63-96

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Vésperas de eleições

A cidade estava em alvoroço. Era o dia de encerramento da propaganda eleitoral, para eleição majoritária do Presidente da República, Senadores e Governadores de Estado, e eleição proporcional para Deputados Federais. A disputa, mais uma vez, estava acirrada.

Dr. Fagundes, como nunca fora militante nem integrante de partido político, estava ansioso para que essas disputas se encerrassem de vez, com definição dos vitoriosos, para que a vida da Nação voltasse ao normal. Em seu trabalho, no escritório, durante o dia todo ficou inquieto. Não via a hora de anoitecer e se dirigir à sua Cozinha Cultural, em sua residência, para se encontrar com os amigos. Por mais de uma vez telefonou ao Jonas pedindo que entrasse em contato com todos, encarecendo o compareci-mento de cada um e que, de acordo com as respostas, preparasse as comidas e as bebidas preferidas.

Jonas, com a sua comprovada eficiência, cumpriu a tarefa. Na hora habitual compareceram o Dr. Martins Almeida e Dr. Geraldo Barbosa, advogados. Desta feita, acompanhados de Dra. Nerilda Santana, por eles convidada, e que exercia o cargo de defensora pública em comarca vizinha. Compareceram, também, o Dr. Eusébio Marcondes, juiz de direito aposentado; o Dr. Marcolino de Assis, promotor de justiça, incumbido da Curadoria do Consumidor; o Dr. Antônio Roberto, médico; o professor de Filosofia, Gustavo Lavina; a professora e psicóloga Marina Benini; a professora e pedagoga Marluce Costa e o empresário João Carlos. À medida que esses convidados chegavam, iam se acomodando à mesa. Por último chegou Raul Monteiro, cantor, compositor, declamador e "piadista". Como de costume, pessoa comunicativa que era, nem bem chegou e já foi dizendo:

- Essa campanha eleitoral é um "saco". É muito barulho! É uma lam-bança de panfletos, de cartazes e outdoors espalhados pela cidade, que a

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gente até tropeça neles. Isso sem falar nos papéis jogados ao chão e nos cabos eleitorais em cada cruzamento de rua e avenida, com os seus insistentes serviçais contratados para colar cartazes em nossos automóveis, mesmo contra a vontade da gente. É muito dinheiro jogado fora. O pior de tudo é que nós somos obrigados a votar nos mesmos candidatos já conhecidos há longos anos. E dentre eles, é muito difícil saber quem presta. Ainda bem que tudo terminará em poucas horas.

Dr. Fagundes pensou consigo: sistema eleitoral; que belo assunto para a gente discutir esta noite; claro, sem fazer propaganda de candidato ou de partido político. Ficou em silêncio aguardando o natural evoluir das conversas entre os presentes.

Dr. Eusébio foi o primeiro a falar:

- Todos nós sabemos que uma das condições para frequentar esta nossa prazerosa Cozinha Cultural é não discutir religião nem política, para não fazer da discussão ataques ou proselitismo a favor ou contra qualquer delas. No entanto, como estamos nesse "auê" eleitoral, em que todos nós ficamos chateados e decepcionados com os abusos e o massacre da propaganda de encomenda, com o cinismo dos candidatos e a irresponsabilidade dos partidos políticos, penso que podemos falar sobre esses assuntos, para eventual sugestão de aperfeiçoamento do sistema eleitoral. Neste momento de agitação de uma política rasteira, recheada de expressões chulas, em verdadeiro "vale-tudo", nada mais oportuno do que expressarmos nossos pontos de vista aqui, entre amigos. Claro, se não houver objeção de Dr. Fagundes.

Era essa a "deixa" que Dr. Fagundes esperava. E não deixou por menos:

- Realmente é nossa tradição, em nossa Cozinha Cultural, evitar discussão sobre política e sobre religião. Não pela proibição do assunto em si, mas, sim, para evitar proselitismo em favor de uns e acusação de outros, situação que poderá desaguar em julgamento equivocado de um lado e revide de outro, e em agressões verbais recíprocas. Isso seria muito desagradável. Mas, falar sobre política ou falar sobre religião, com serenidade, para expressarmos nossos pontos de vista, sem ataques e sem partidaris-mos, é coisa natural e inevitável em ambiente intelectual como o nosso. Principalmente quando as observações e as opiniões acentuam o valor ético, em seu sentido lato, como têm sido nossos debates. No tocante à religião, o que não podemos é fazer doutrinação, com o objetivo de atrair

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adeptos. E, na política, o que não podemos fazer é transformar o nosso pra-zeroso convívio, nesta Cozinha Cultural, em palanque ou comício eleitoral. Todos, com palavras acentuadas e com aceno de cabeça, anuíram no posicionamento de Dr. Fagundes. E, com essa brecha, Dr. Eusébio voltou à carga:

- Uma vez que todos estão de acordo, peço licença para falar o que penso. Sabemos que, em nosso país, periodicamente temos eleições para o preenchimento de todos os cargos públicos elegíveis pelo voto popular di-reto, obrigatório e sigiloso. O que, em tese, é muito bom. Infelizmente, boa parte dos candidatos, que os partidos políticos credenciam para o preenchimento desses cargos, agem por profissão e somente para a defesa de seus próprios interesses. Muito raramente por espírito público, por vocação e idealismo. Na maioria das vezes, os interesses dos candidatos são inconfessáveis. Nesse contexto de realidade, é irrelevante a discussão em voga entre voto obrigatório e voto facultativo. Os que defendem o voto facultativo pensam, ingenuamente, que apenas o eleitor interessado e politizado irá comparecer e escolher o candidato melhor. A nosso ver, também a desobrigação, no momento atual, não trará nenhum benefício político. É até possível que piore o atual processo populista e demagógico. Com a desobrigação, o espaço para voto de "cabresto", ou de "compra", via corrupção, será maior. Bastará "comboiar" meia dúzia de eleitores descompromissados, mas suficientes à vitória, diante da inércia e ausência dos demais eleitores, desencantados e cansados com os políticos cínicos, mentirosos e desonestos.

- Mas, de alguma forma, é preciso modificar esse sistema, interveio a professora Marluce. Somente falar que o processo é viciado, que os candidatos são desonestos e cínicos, em nada ajuda. Mesmo porque sempre há exceção.

O ilusório poder do voto naatualidade

- Acho que a principal falha está na impossibilidade de repulsa aos candidatos lançados, passou a falar o professor de filosofia Gustavo La-vina. O eleitor não tem escolha. Daí a prática vigente de os eleitores mais esclarecidos escolherem, em cada eleição, o "menos ruim" dentre os candidatos. E os eleitores menos esclarecidos, escolherem o candidato mais demagogo!

E continuou:

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- O que é essencial, e que ainda não foi feito, seria a adoção do voto de repulsa, coisa muito diferente do que votar "em branco", porque facultaria ao eleitor recusar os nomes impostos pelos dirigentes dos partidos políticos. Essa recusa poderia ser exercitada para cada candidato, individualmente, ou para o cargo, mediante a opção "nenhum deles", a ser incluída no sistema eletrônico de votação. Primeiro de tudo, é preciso dizer que é impossível existir democracia sem partidos políticos.6 É por meio dos partidos políticos que os cidadãos, com vocação para a coisa pública e que pensam igual, aglutinam-se e têm oportunidades para galgar os cargos de Poder Público, em cada eleição. Mas, como sabemos todos nós, os partidos políticos, em nosso país, são praticamente iguais. Na essência, a diferença é apenas de SIGLA. A leitura dos respectivos estatutos nos prova isso. Neles, encontramos as mesmas expressões indefinidas e que se prestam para tudo, a exemplo de "democracia", "liberdade", "igualdade", "direitos humanos", "direitos sociais", "direito do povo", "justiça social", "ordem econômica", "progresso social" e outras similares, de conteúdos meramente conceituais.

- Na prática - continuou -, a direção de cada partido, para escolha e lançamento de candidato, preocupa-se apenas com o poder de captação de votos, quer pela penetração do nome imposto, via popularidade pela mídia, a exemplo de artistas, de radialistas, de esportistas e outros, quer pelo poderio econômico do candidato lançado, mediante vultosa contribuição financeira para a campanha de todos os demais candidatos desse partido. O que se tem visto é que a seriedade, a competência e a honradez do candidato lançado têm sido absolutamente secundárias aos dirigentes dos partidos políticos. Muito menos, a ideologia ou a falta dela. Interessa apenas o poder de captação de voto dos eleitores desavisados ou despo-litizados. Nesse quadro de realidade, o eleitor se torna refém dos dirigentes partidários, porque não pode recusar os nomes impostos, como eu já disse. Em verdade, a criação de cada um dos partidos políticos e a disputa ferrenha pelo respectivo comando não têm outro objetivo que não seja o recebimento e manejo do dinheiro público que lhes é repassado sob rubrica de Fundo Partidário, assim como manejar as "doações" expressivas e não registráveis que empresas privadas fazem como "investimentos" - fato de todos conhecido como "Caixa 2". É sabido que o propósito de doações dessa origem, quando volumosas, é enlaçar os candidatos que forem elei-

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tos e, também, os que não forem, mas que passem ou continuem a ocupar cargos de decisão na Administração Pública. É com...

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