Às margens da clt: o direito ao trabalho das pessoas presas e as regras de mandela

AutorClarice Calixto
Páginas432-438

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1. Introdução

Relatório do Ministério da Justiça divulgado em junho de 2015 demonstra que 84% dos brasileiros privados de liber-dade não trabalham. Assim, no universo de 607 mil pessoas no Brasil que cumprem pena nas prisões, mais de meio milhão de pessoas não estão envolvidas em atividades laborais. Esses números foram obtidos considerando os dados fornecidos pelos estados brasileiros1 ao Departamento Penitenciário Nacional como um retrato da realidade dos estabelecimentos penais brasileiros em junho de 2014, constituindo o banco de dados do INFOPEN - Sistema Nacional de Informações Penitenciárias (DEPEN, 2015).

A constatação de que apenas 16% das pessoas presas trabalham representa um diagnóstico bastante preocupante e deve suscitar relevantes questionamentos sobre a falta de efetividade do direito ao trabalho das pessoas privadas de liber-dade. Como lidar com o fato de que 509 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil não têm acesso nas prisões a oportunidades de trabalho?

Diante dessas indagações, este texto busca explorar a questão do trabalho nas prisões como um direito a ser efetivado, à luz da Constituição de 1988 e das Regras de Mandela da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovadas em maio de 2015 pela Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Criminal, em processo de revisão das Regras Mínimas para Tratamento de Reclusos, de 1955. Para refletir sobre o tema, busca-se identificar os múltiplos aspectos da categoria de análise "trabalho" e discutir o marco jurídico nacional em relação às Regras de Mandela, para indicar abordagens possíveis acerca da problemática do direito ao trabalho nas prisões brasileiras.

2. O trabalho como valor, princípio e direito fundamental

A categoria "trabalho" é extremamente complexa, eis que o trabalho envolve "os mais diversos aspectos da vida e, por isso, está voltado para as mais diversas ciências; cada uma delas se ocupa dele e o enquadra diversamente em seu sistema, mais ou menos central, mais ou menos importante, sempre porém digno de interesse" (BATTAGLIA, 1958, p. 19).

Na perspectiva do Direito, pode-se falar em categoria jurídica do trabalho, uma categoria de múltiplas dimensões, fundada em amplo arcabouço normativo direcionado à sua proteção e à preservação de sua centralidade2 na socie-dade contemporânea. Nessa diretriz, no Brasil, no marco da Constituição da República de 1988, o trabalho pode ser compreendido nas seguintes facetas: é fundamento da República brasileira, revelando-se também como valor, princípio e direito fundamental do ser humano.

O trabalho é fundamento da República Federativa do Brasil, na perspectiva jurídica, porque assim consagrado na Constituição da República de 1988, em seu art. 1º, inciso IV do caput, dispositivo em que consta referência ao "valor social do trabalho".

Sobre os significados desses fundamentos da República, dispostos no texto constitucional, reflete Fábio Konder Comparato:

Pois bem, se analisarmos, ainda que superficialmente, o direito positivo brasileiro, verificaremos que o termo fundamento é empregado sempre com o sentido nuclear de razão justificativa ou de fonte legitimadora. (...) Já no campo da teoria geral do direito, a noção de fun-

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damento diz respeito à validade das normas jurídicas e à fonte da irradiação dos efeitos delas decorrentes. Em outras palavras: - Por que a norma vale e deve ser cumprida? (COMPARATO, 2001)

Quanto ao trabalho como valor, pode-se analisar o valor trabalho, em perspectiva ampla, e o valor social do trabalho, em perspectiva mais estrita. A respeito da perspectiva ampla do valor trabalho, os seus sentidos revelam-se pelo sujeito que trabalha e pela circunstância histórica, conforme disserta Gabriela Neves Delgado:

O trabalho determina a própria valorização do sujeito que labora (entenda-se: a valorização refere-se ao sujeito enquanto trabalhador). Então é possível que, em sociedade, se valorize de maneiras distintas o trabalhador empregado, o trabalhador autônomo, o trabalhador estagiário, entre outros. O que não quer dizer, diga-se de passagem, que o Direito deva identificar essa diferenciação de valores como um critério de exclusão. (DELGADO, 2006A, p. 111-112)

Na perspectiva mais estrita, do valor social do trabalho, pode-se dizer que decorre das necessidades de proteção do trabalhador, afirmadas no campo do Direito a partir das lutas coletivas, em especial depois da intensificação da produção capitalista desde as inovações da Revolução Industrial. Nesse sentido, Daniela Muradas Reis afirma que há um "reconhecimento do valor ínsito ao trabalho humano no plano inter-nacional, reafirmando os marcos jurídicos civilizatórios da relação entre capital e trabalho" (REIS, 2007, p. 255).

Historicamente, a resistência dos trabalhadores em face do processo de mercantilização da mão de obra contribuiu para uma transformação no estatuto do trabalho, que culminou na institucionalização do Direito do Trabalho e na constitucionalização dos direitos sociais.

A instituição desses direitos como bens imateriais, que não podem ser vendidos no mercado, obrigou o Estado a universalizar e desmercantilizar3 as necessidades estritamente relacionadas ao trabalho. A partir da consagração do trabalho como direito social, fala-se em valorização social, configura-se o valor jurídico denominado valor social do trabalho (KRAYCHETE SOBRINHO, 2002).

O trabalho é princípio, consagrado nos arts. , 170 e 193 da Constituição da República de 1988, sob a forma, mais precisamente, de um conjunto de princípios afirmativos do trabalho na ordem jurídica brasileira. Explicitando o conteúdo desse conjunto de princípios, afirma Mauricio Godinho Delgado:

(...) são quatro os principais princípios constitucionais afirmativos do trabalho na ordem jurídico--cultural brasileira: o da valorização do trabalho, em especial do emprego; o da justiça social; o da submissão da propriedade à sua função socioambiental; e o princípio da dignidade da pessoa humana.

Trata-se de efetivos princípios constitucionais do trabalho. São eminentemente constitucionais, não apenas porque reiteradamente enfatizados no corpo normativo da Carta Magna de 1988, mas sobretudo por fazerem parte do próprio núcleo losó co, cultural e normativo da Constituição. São princípios que acentuam a marca diferenciadora da Carta de 1988 em toda a História do País e de todo o constitucionalismo brasileiro, aproximando tal Constituição dos documentos juspolíticos máximos das sociedades e Estados mais avançados, no plano jurídico, na Europa Ocidental. (DELGADO, 2007B)

O trabalho é um direito fundamental do ser humano. Essa premissa teórica é central para o desenvolvimento desta pesquisa, fundada no marco teórico de perspectivas jurídicas tuitivas consagradas depois da promulgação da Constituição da República de 1988, no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro (DELGADO; DELGADO, 2012) (BARZOTTO, 2007) (FONSECA, 2009) (GOMES, 2008).

Segundo essa premissa, o trabalho é direito fundamental, grafado com a letra "d" minúscula, porque é direito subjetivo do ser humano, posição jurídica exigível e imponível4.

Tal direito fundamental é previsto na Constituição da República de 1988 em seu Título II, que se refere aos direitos e garantias fundamentais e, mais especificamente, em seu Capítulo II, que se refere aos direitos sociais, no art. 7º.

O art. 7º da Constituição da República de 1988 apresenta rol de direitos trabalhistas (e previdenciários), todos alçados à condição de direitos fundamentais do ser humano. Esse dispositivo também expressa o princípio da norma mais favorável ao trabalhador, por meio da expressão "além de outros que visem à melhoria de sua condição social", contida no caput. Por meio desse reconhecimento da relevância da norma mais favorável, "a Constituição reforçou a imperatividade da ordem jurídica trabalhista infraconstitucional que regula os contratos empregatícios na economia e socie-dade brasileiras, incentivando também iniciativas de incremento dessa legislação ao longo do tempo" (DELGADO; DELGADO, 2012, p. 47).

O direito subjetivo ao trabalho é também consagrado no plano internacional, sob o ponto de vista dos direitos humanos5. Consideram-se direitos humanos dos trabalhadores

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aqueles dispostos na Declaração adotada pela Conferência Internacional do Trabalho em sua 86ª sessão, em Genebra. Tal Declaração da Organização Internacional do Trabalho refere-se aos "princípios e direitos fundamentais no trabalho, de 18 de junho de 1998. Esses direitos estão relacionados em quatro temas: abolição do trabalho forçado, erradicação do trabalho infantil, liberdade sindical e não-discriminação" (BARZOTTO, 2007, p. 17).

Para compreender essa manifestação internacional, é importante lembrar que o direito ao trabalho "afirmou-se na cultura jurídica ocidental contemporânea a partir da segunda metade do século XIX com os movimentos sociais e jurídicos que desaguaram no Direito do Trabalho" (DELGADO, 2006B, p. 71), moldado pelas lutas coletivas e pelo reconhecimento estatal.

Os direitos humanos dos trabalhadores6 consagrados pela Organização Internacional do Trabalho "constituem uma base mínima universal de direitos do trabalho para todos os países membros, independente de sua ratificação das convenções pertinentes" (CACCIAMALI, 2002).

A discussão sobre a efetivação desses direitos humanos dos trabalhadores, no contexto da economia globalizada, é também realizada no âmbito da Organização Mundial do Comércio, tendo em vista o impacto da proteção e da desproteção dos trabalhadores nas relações comerciais entre os países. Nesse sentido, conforme lembra Fernanda Andrade, podem ser apontados os interessantes debates sobre a adoção da "cláusula social"7, por meio da qual...

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