As Interfaces entre Direito e Economia.

AutorAntonio Augusto Cruz Porto
Páginas42-60

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A percepção de que o mercado - em sentido amplo e não apenas o mercado financeiro54especificamente - assumiu relevância substancial nos últimos tempos implica também a adoção de novas posturas em relação à aplicação do Direito (leia-se, ainda que restritivamente: norma jurídica). Quanto

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mais entrelaçados são os campos do conhecimento humano e, fundamentalmente, quanto mais as condutas humanas se vinculam a conotações mercantilizadas, ou mercadológicas55, apoiadas inteiramente sobre uma estrutura econômica de incentivos e de maximização do bem-estar individual, tanto mais forte se revela necessária a presença de um ordenamento jurídico eficaz, ágil e dinâmico.

É avistar: à mesma medida da interligação entre os fatores econômicos, sociais, políticos e ambientais amplia-se a importância do Direito, bem como dos reflexos advindos da aplicação da norma jurídica aos casos concretos, de sorte que "o jurista não pode, em sã consciência, desprezar o imenso ferramental das outras ciências, com o qual é possível compreender melhor a conduta humana"56.

Ademais, nesse perpassar integrativo de ciências, nota-se também a relevância do intercâmbio de ideias, da avaliação holística do mundo e da percepção sistêmica dos contornos sociais. Dessa forma, o ato consciente e volitivo de fazer recair a norma jurídica a uma determinada situação concreta passa a não mais significar um mecânico processo de subsunção do fato à norma, impondo-se, ao revés, demandar a confecção de uma análise conjuntural, estrutural, orçamentária, sistêmica, ambiental etc. por parte daquele que está a exercer a função de sua aplicação.

Pois bem. Em uma concepção puramente objetiva, o Direito é regencial. Funda-se, precipuamente, em um conjunto ordenado de preceitos do qual se extrai a norma jurídica como instrumento de regulação (indução) do comportamento humano. Na Escola Positivista, apartava-se a ciência jurídica do seu objeto (Direito = objeto da ciência jurídica57), consi-

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derando-se este como um sistema uno e ordenado de normas cujas prescrições pressupõem a existência de uma força coativa58. O Direito, portanto, é o objeto de uma ciência jurídica fulcrada na ideia do dever-ser.

Tradicionalmente, sobretudo em momento histórico-científico posterior à escola do Juspositivismo, em uma reação à desvinculação do Direito e da Moral, os juristas passaram a retomar a cognição do Direito enquanto valor, balizando-o em princípios constitucionais e reaproximando-o ao Jusnaturalismo, "tendo os seus praticantes não apenas abandonado a ideia de ciência jurídica, mas também efetivamente se afastado das demais ciências naturais e sociais na medida em que elas teriam falhado em fornecer uma Teoria do Valor que pudesse racionalizar decisões jurídicas"59. Aproximou-se, assim, o Direito da Filosofia, de modo que os seus paradigmas dominantes de lá emprestaram

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uma metodologia científica, em detrimento, porém, de outros ramos do conhecimento. Tendências neoconstitucionalistas ainda buscam aproximar o direito de novos paradigmas constitucionais, ampliando a força normativa dos preceitos axiológicos insculpidos na Constituição como antepostos interpretativos à inserção da norma infraconstitucional (interpretação em conformidade à Constituição).

Atualmente, à vista dos crescentes movimentos de multilateralização econômica e de globalização financeira, das discussões a respeito de impactos desregulatórios nos mercados e da redução da eficiência da pura aplicação da norma na resolução dos conflitos sociais passou-se a pressupor a necessidade de o jurista dar-se a conhecer de outros ramos científicos e a preocupar-se com o resultado prático da implementação do ordenamento jurídico. Abre-se, pois, o espectro funcional do Direito.

A Economia, por sua vez, é uma ciência social de nature-za comportamental. Estuda, portanto, o comportamento humano60e analisa como os homens tomam suas decisões em um mundo de recursos escassos e necessidades ilimitadas, observando seus padrões decisórios.

Fábio Nusdeo61assim a define propriamente:

[...] em qualquer sociedade estabelecem-se relações e instituições destinadas a lhe permitir enfrentar o problema da escassez, vale dizer, a criar um padrão decisório coerente a ser utilizado quando recursos escassos devam ser destinados a um fim qualquer. A atividade econômica é, pois, aquela aplicada na escolha de recursos para o atendimento das necessidades

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humanas. Em uma palavra: é a administração da escassez. E a Economia, o estudo dessa atividade, vale dizer, do comportamento humano e das relações e fenômenos dele decorrentes, que se estabelecem em sociedade permanentemente confrontada com a escassez.

Karl Polanyi, por sua vez, anota que o termo econômico é utilizado para delinear um tipo de atividade humana que contém dupla acepção. A primeira, de natureza formal, "provém do caráter lógico da relação meios-fins, como em economizar ou conseguir algo a baixo preço"62, da qual deriva a ideia de definir o econômico pela escassez. O segundo significado, de conotação substantiva, "aponta para a realidade elementar de que os seres humanos, como quaisquer outros seres vivos, não podem existir sem um meio físico que os sustente"63.

As decisões econômicas, por sua vez, são especulativas, embora eventualmente apoiadas em padrões comportamentais monolíticos e similares, consistentes em antecipações futuras por meio de expectativas e previsões. Assim, na medida em que tais decisões projetam o porvir, inexoravelmente incerto, a economia introduz em sua operação normal o risco como elemento estrutural do destempo entre o investimento e a rentabilidade; o Direito, por seu turno, insinua aos agentes econômicos o que esperar do futuro e lhes permite distribuir os riscos sobre formas contratuais64.

A finitude dos recursos e, por sua vez, a forma ilimitada com que os anseios humanos ganham corpo tendem a gerar, indelevelmente, conflitos. Seja com vistas à adoção de definições prévias acerca dos métodos e das searas de alocação dos

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recursos financeiros, seja por conta da desigualdade na distribuição desses mesmos recursos, age o Estado, por meio de instrumentos preventivos (políticas públicas) ou repressivos (exercício legal do poder de polícia e/ou legitimação do Poder Jurisdicional)65, objetivando coordenar a implementação de políticas governamentais ou dirimir os conflitos resultantes dessa escassez em confronto com as necessidades ilimitadas.

Há, pois, evidente interconexão entre os subsistemas sociais, notadamente entre o Direito e a Economia66. Como elucida José Eduardo Faria, relacioná-los torna-se preponderante para materialização do "duplo objetivo de identificar como as mudanças econômicas suscitam novos arranjos normativos e como elas podem limitar o papel das instituições jurídicas na concretização das promessas constitucionais de transformação social"67. Perscruta-se, pois, o sentido econômico do direito, porquanto "as leis são comandos de autoridade que impõem custos ou benefícios aos participantes de uma transação na economia e que sofrem incentivos (positivos ou negativos) no processo de seu cumprimento"68.

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Nesse contexto, não se pode deixar de consignar, mesmo em poucas linhas, a concepção externada por Luhmann, fundamentalmente no que concerne à subdivisão da sociedade em sistemas que se comunicam e interagem por meio de suas funcionalidades externas, a partir de uma técnica denominada ‘acoplamento estrutural’69. Vale assentar que a teoria luhmanniana foca as funções de um determinado sistema e de seus elementos, não se restringindo unicamente a suas estruturas internas70.

Nesse sentido, assinala André Trindade71:

[...] a concepção luhmanniana de direito foge da sua clássica definição como conjunto de normas e passa a empregar e a seguir uma acepção de sistema de operações que maneja esquemas próprios. Um sistema que utiliza do processo de seleção para gerar uma lógica própria a qual permite uma diferenciação do direito dos demais sistemas que compõem a sociedade.

Niklas Luhmann, portanto, observa o sistema jurídico72 como, simultaneamente, aberto em termos cognitivos e fecha-

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do em termos operativos. Noutras palavras, o sistema jurídico correlaciona-se abertamente com outros sistemas inseridos na sociedade (econômico, filosófico, político, meio ambiente etc.), acoplando eventuais demandas que lhe são formuladas por esse(s) ambiente(s), na mesma medida em que somente as processa nos limites pertinentes às suas estruturas, seus filtros e suas operações, as quais, por configurarem a diferenciação do Direito em relações a outros sistemas sociais, fecham-no em termos operacionais.

Nas relações entre os subsistemas da sociedade, Luhmann elege diversas formas de acoplamentos estruturais, que vinculam estavelmente processos sociais de sistemas autônomos. Marcelo Neves73, perscrutando a teoria dos sistemas arquitetada pelo sociólogo alemão, destaca, exemplificativamente:

[...] economia e direito, a propriedade e o contrato são apresentados como acoplamentos estruturais entre os sistemas econômico e jurídico. No âmbito do direito, o contrato e a propriedade servem como critério orientador da definição entre lícito e ilícito; no campo da economia, são instrumentos, critérios e programas para orientação do lucro conforme a diferença binária entre ter/não ter. O sentido econômico e o jurídico do contrato permanecem específicos a cada um dos sistemas, um primariamente normativo e outro prima-riamente cognitivo. Não obstante, a economia moderna não pode prescindir desses institutos jurídicos para o seu desenvolvimento, assim como o direito moderno pressupõe uma dinâmica veloz de trocas, circulação e apropriação econô-mica de bens e valores para manter e inovar os institutos do contrato e da mutação de propriedade.

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Assim, o Direito, ao trabalhar operacionalmente a partir do binômio legal/ilegal, pode acoplar anseios de outras áreas do conhecimento, integrando-os...

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