As Funções dos Contratos Agrários

AutorCassiano Portella Ceresér
Páginas141-163

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3. 1 A função econômica

O instituto jurídico denominado contrato, tão difundido nos dias de hoje, não tem a sua origem atrelada ao mundo jurídico. O seu surgimento remonta a efetiva necessidade do ser humano em celebrar negócios. Nesse contexto, não tem o seu nascimento com os tempos modernos. Pelo contrário: foi o povo Romano quem o organizou e o estruturou de uma forma aproximada ao contrato atualmente hoje conhecido. Tal sociedade, aliás, em virtude de seu magnífico conhecimento jurídico, muito a frente de sua época, já vivia no mundo do contrato. Assim, o contrato é característica de sociedades econômicas e juridicamente desenvolvidas117.

No entanto não se pode afastar a ideia de que o contrato, antes de tudo, personifica-se como um fenômeno econômico. O Direito, por ter o conhecimento de que a vida em sociedade é um fato inevitável, procura, em diferentes graus de ação, impor certos condicionamentos à atividade negocial. Mas nunca o impedindo: estar-se-ia negando a natureza da vida em sociedade caso o legislador elaborasse norma que impedisse o contrato ou até mesmo o afastasse do campo das operações de mercado, onde a iniciativa pessoal e a liberdade individual são, acima de tudo, a razão de ser do fenômeno denominado contrato118.

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Diante disto constitui-se como imprescindível a própria subsistência humana a necessidade de cooperação recíproca entre seus semelhantes. E tal relacionamento formaliza-se sob a égide do instrumento contratual, tido como "instituto econômico para a organização da sociedade, no que diz respeito ao acesso aos bens da vida"119. Nesse norte resta evidenciado que as relações contratuais eficientes e equilibradas, com segurança jurídica, permitem o bom funcionamento da circulação das riquezas. Essa é a função econômica do contrato120, tão importante para a sociedade.

Deduz-se, assim, que o contrato tem como função primária e natural a circulação de riquezas, que corresponde ao seu caráter econômico. É a sua razão de ser, ou seja, para isso é que se celebra um contrato. Sem esse aspecto econômico não haveria necessidade de se ter contrato121.

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Neste mesmo sentido, Enzo Roppo122decompõe o conceito amplo de contrato. Para o célebre autor o contrato deve ser visto como formalização jurídica das operações econômicas, isto é, como conquista da ideia de que as operações econômicas podem e devem ser reguladas pelo Direito, e como construção científica idônea para tal fim. Já as operações econômicas, na sua materiali-dade, seriam tidas como substrato real necessário e imprescindível do conceito de contrato, consistindo num fenômeno de circulação objetiva da riqueza, ou seja, numa atual ou potencial transferência de riqueza (dinheiro, bens materiais e utilidades passíveis de avaliação econômica, ainda que não sejam propriamente coisas) de um sujeito para outro. E o direito dos contratos seria o conjunto, historicamente mutável, das regras e princípios utilizados para conformar, de certa maneira, o instituto jurídico intitulado contrato, e, portanto, para dar certa funcionalidade a determinados fins e a determinados interesses que compõe o complexo das operações econômicas efetivamente levadas a cabo123.

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A denominação "função" não é utilizada em vão pela doutrina. É empregada pelos autores com o intuito de se demonstrar que tal instituto tem uma finalidade, um objetivo determinado e almejado dentro de um sistema. Neste mesmo sentido, alude-se que a referida expressão tem como significado "papel a desempenhar", "obrigação a cumprir pelo indivíduo ou por uma instituição"124. Enfim, possui uma razão de ser dentro do sistema social em que se insere125.

Finalmente, concebido como fato econômico, a relevância dos contratos é imensurável, ao ponto que sua estruturação jurídica compõe o estereotipo do regime que se subordina a economia de qualquer sociedade126.

3. 2 A função social

Como anteriormente debatido, o contrato não é uma exclusividade do mundo jurídico, remontando a sua origem na concreta necessidade de se proceder a circulação de riquezas. Nessa ótica,

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teve seus pilares insculpidos pela civilização Romana, evoluindo gradativamente até se chegar à moderna concepção contratual.

Contudo, somente com o surgimento do Estado Liberal127é

que o contrato passou a ser tido como um instrumento de intercâmbio econômico entre os indivíduos, ou seja, tornou-se o utensílio que efetua a circulação de riquezas entre os membros da sociedade. Nessa perspectiva individualista, a vontade dos contratantes é levada ao extremo, pairando ampla e livremente na esfera contratual. A autonomia da vontade, que sofre pequenas limitações do Poder Público, é que dita o conteúdo dos contratos, o seu destino e a sua força perante os contratantes. Portanto, o contrato passa a ser lei perante os contratantes. Tal força, entretanto, opera-se somente no âmbito interno do contrato128.

Nessa concepção clássica, o contrato se traduz num instrumento de realização de operações econômicas. Para tanto, o instituto pressupõe alguns princípios que, na realidade, constituem verdadeiros pilares de todo um sistema político-jurídico-econômico vigente. São eles:

  1. a liberdade contratual: pressupõe que os contratantes podem contratar o que for de seu interesse, respeitadas as devidas limitações impostas pelo Poder Público. Essa liberdade se perfectibiliza, in concreto, da seguinte forma: na liberdade de se contratar ou não contratar; na liberdade de escolha da pessoa com quem se quer fazê-lo; na liber-dade de escolha de seu conteúdo; e, finalmente, uma vez concluído, por constituir fonte formal de direito, autoriza

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    qualquer das partes a utilizar-se do Judiciário para fazê-lo respeitar ou garantir a sua fiel execução129;

  2. a obrigatoriedade do contrato130: significa que o contrato tem força de lei, ou seja, é a "irreversibilidade da palavra empenhada"131. As cláusulas contratuais possuem, portanto, força de lei entre as partes. Tal princípio é largamente utilizado pela doutrina sob a denominação de pacta sunt servanda132.

  3. a relatividade dos efeitos dos contratos: os efeitos dos contratos recairão somente sobre os contratantes, não beneficiando ou prejudicando terceiros. Somente as partes contratantes é que estão vinculadas ao contrato. O referido princípio é conhecido na doutrina como res inter alios acta tertio nec nocet nec prodest133.

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    Analisando criticamente a visão do Estado Liberal acerca dos contratos, alguns doutrinadores134passaram a compor a ideia de que o contrato, além de possuir uma função natural, que é econômica, também possui uma função ideológica, que reflete um processo de transformação histórico das relações sociais. Seguindo essa linha de raciocínio deve-se ter que naquele momento histórico reinava a ideologia liberal, ditada por uma classe que vislumbrava a busca desenfreada pela mais-valia: a burguesia. Por consequência, essa ideologia acabou se refletindo nos contratos, inserindo em seus pilares basilares os princípios inerentes àquela - os quais foram supracitados135.

    Sob este prisma, a liberdade para contratar era a resposta imediata ao intervencionismo econômico do Estado. Porém, só se efetivaria integralmente caso também se evidenciasse uma igual-dade entre os contratantes. Mas uma igualdade formal, uma vez que as diferenças econômicas e sociais acabavam por refletir nas partes contratantes. Assim, tais pilares continham a função de promover o desenvolvimento do capitalismo liberal, mesmo que isso culminasse na exploração dos trabalhadores pela classe burguesa136. Era a forma encontrada de se liberar a força de trabalho,

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    vista agora como uma mercadoria livre e passível de ser adquirida pela classe detentora dos meios de produção137.

    Em contraposição a ideologia do Estado Liberal, que predominava no mundo, surgiu uma nova corrente de pensamento, mais voltada para o âmbito social. A conhecida Doutrina Social teve o seu desenvolvimento no fim do século XIX e início do século XX138. O Estado Social139passava, agora, a se instaurar de forma progressiva no mundo, acarretando o enfraquecimento das concepções liberais140, especialmente da autonomia da vontade no intercâmbio negocial. Além disso, o Estado passou a intervir

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    de forma mais efetiva na esfera econômica, criando mecanismos dos mais diferentes graus de intervenção no mercado141.

    Hoje, no Brasil, vivemos o chamado Estado Democrático de Direito142. Essa postura institucional consagrada pela Constituição Federal não pressupõe a total intervenção do Estado no ambiente econômico. Não é finalidade do Estado a participação direta na circulação de riquezas. Tal incumbência está voltada para a iniciativa privada e aos trabalhadores. Porém, este almeja o desenvolvimento econômico em sinergia com o desenvolvimento social. Ambos devem seguir um mesmo caminho, devem estar vinculados. Logo, o desenvolvimento econômico buscado é aquele que interessa a toda a sociedade 143.

    Por conseguinte, toda essa alteração de ideologia política acabou por produzir reflexos no mundo contratual. Mas os seus princípios, por mais que impregnados de ideais liberais, não foram bruscamente afastados, visto que os contratos ainda conservam a sua função natural, que é a circulação de riquezas. Dessa

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    forma, os instrumentos contratuais conservam elementos advindos da ideologia liberal.

    Contudo, aos princípios liberais adicionaram-se outros, advindos dessa nova concepção política. Princípios estes que se, por um lado, diminuíram a rigidez e a força dos até então pilares dos contratos, por outro vieram a enriquecer ainda mais o direito contratual. E é dentro desses novos pilares contratuais que encontramos a chamada Função Social dos Contratos.

    A Função Social dos Contratos foi expressamente incorporada ao ordenamento jurídico nacional144ao tempo da elaboração do novo Código Civil Brasileiro145...

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