As diferencas entre o marxismo juridico de Roberto Lyra Filho e Marcio Bilharinho Naves: The differences between legal marxism in Roberto Lyra Filho and Marcio Bilharinho Naves.

Autorde Souza, Nathalia Karollin Cunha Peixoto

1 Introducao

Uma questao no marxismo e desconcertante para a teoria do direito. Se o direito e considerado parte da superestrutura que se assenta sobre uma infraestrutura economica que o determina, como pode o direito ser efetivo no contexto de mudanca social ja que o direito e determinado pela economia ou, no minimo, e uma expressao necessaria das praticas economicas capitalistas? Esse questionamento encontra lugar, inclusive, no marxismo juridico brasileiro e ha duas possibilidades de resposta para ele.

A primeira delas sustenta que, muito embora haja uma superestrutura economica, o direito nao e unicamente determinado por ela. Nesse sentido, o direito pode protagonizar papeis revolucionarios, o direito pode atuar de maneira conservadora ou revolucionaria, dependendo do uso que se faz dele. No entanto, e inegavel a importancia que o direito tem para sociedade e para a conquista de melhorias sociais. A revolucao e o socialismo, ocorrem por meio da atuacao contundente do direito, visto como um direito popular. Consequencia desse posicionamento e que, dada a indiscutivel relevancia do direito para a revolucao social e ja que o direito nao seria mera consequencia do capitalismo, mas esta para alem dele, ainda que superada as formas burguesas e conservadoras do juridico, restaria ainda muito direito na sociedade. O direito nao se extingue com o capitalismo e com a revolucao para a derrocada do sistema produtivo burgues, mas sim se transmuta em um direito muito mais humano, justo e popular. Existiria, portanto, um direito socialista e comunista. Denominaremos essa posicao de tese da superveniencia do direito pelo fato de o direito sobreviver ao fim capitalismo.

A segunda alternativa sustenta que o direito, como o conhecemos, surge somente com o surgimento do capitalismo, sendo um pre-requisito indispensavel para o estabelecimento da troca universalizada, que, por seu turno, confirma-se somente com o surgimento desse sistema produtivo. O direito, nele incluido igualdade, liberdade juridica e autonomia da vontade, seria um pre-requisito para universalizacao da circulacao mercantil e, consequentemente, da exploracao do trabalhador e do ganho de mais-valia. Haveria, indiscutivelmente, uma relacao simbiotica entre a forma do direito e a da mercadoria. Nesse sentido, havera direito sempre que houver capitalismo, e a existencia do juridico seria prova de que vige ainda o sistema de exploracao burgues. Para tanto, a superacao do sistema produtivo burgues implica a superacao das formas juridicas burguesas. Nao existiria, portanto, um direito comunista, conclusao essa que se denominou, oposta aquela primeira, de tese da nao superveniencia do direito.

Esses dois posicionamentos sao representados plenamente por duas figuras importantissimas do marxismo juridico no Brasil, os professores Roberto Lyra Filho e Marcio Bilharinho Naves. Figurando Lyra Filho como representante do primeiro posicionamento e Naves do segundo. Os trabalhos desses dois pensadores funcionam como marco teorico, como divisor de aguas para o marxismo juridico nacional. Por mais que haja variacoes, qualquer pensador posterior a Lyra Filho e a Naves tende a se localizar mais proximo ou mais distante de um desses polos, a utilizar mais as obras de uma dessas figuras ou a criticar mais a uma delas, a se aproximar ou se distanciar da tese da superveniencia ou da nao superveniencia do direito ou do papel de importancia ou de obstaculizacao atribuido ao direito. Lyra Filho e figura importante da teoria juridica critica, sendo amplamente conhecido nos bancos das faculdades de direito, tendo influenciado pensadores como Jose Geraldo de Sousa Junior, alem de ter exercido, como teoria, papel importante no processo de redemocratizacao brasileiro, nas decadas de 80/90. Naves, por sua vez, em sua longinqua obra, fez um alerta dos vinculos indissociaveis entre direito (e mesmo os direitos humanos) e capitalismo. Tendo elaborado a mais importante e influente obra pachukaniana do pais: Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Sua voz e ressonante tambem em trabalhos importantes como o de Alysson Mascaro e de Kashiura Jr.

Nesse contexto teorico, o presente trabalho tem por objeto fazer uma exposicao dos principais argumentos que tornam esses pensadores, muito embora marxistas, tao diferentes. Nesse sentido, sera necessario fazer um resgate de outros pensadores que serviram como lente para a leitura dos dois autores presentemente abordados. Assim, sera possivel concluir, principalmente, pela influencia da teoria critica, do marxismo lukacsiano, da teoria gramsciana, do pensamento de Bloch e do hegelianismo na leitura elaborada por Lyra Filho sobre o marxismo e o direito, bem como pela leitura pachukaniana, althusseriana e maoista de Naves sobre os mesmos temas. Porem, a principal diferenca, a qual se reputa a hipotese principal deste artigo, e que o que tanto os distingue, o ponto do qual partem todas as demais diferencas, reside na aplicacao do metodo dialetico marxiano e o peso que tem a influencia e a importancia de Hegel sobre ele. Diante disso, pode-se tambem antecipar que as conclusoes do artigo proposto seguem no mesmo sentido da hipotese aventada, ou seja, as consideracoes sobre a dialetica sustentas por Lyra Filho e Naves figurarao o ponto de destaque do trabalho proposto.

O metodo utilizado para elaboracao deste artigo sera o de revisao, releitura ou regaste, bem como o de cotejo entre distincoes marcantes das obras mais importantes tanto dos pensadores principais quanto dos subjacentes. Apesar de simples, e a maneira mais efetiva de se esclarecer a comunidade academica questoes basicas, porem dificultosas,--devido a profusao de correntes marxistas existentes, dentro e fora do direito--para todos aqueles que iniciam a leitura do marxismo juridico no Brasil.

A relevancia desta proposta de trabalho esta em que o estudo do marxismo por si somente ja e bastante complexo, algo semelhante tambem ocorre com o marxismo juridico. O contexto teorico rico e ainda carente de obras introdutorias que esclarecam a leitora ou ao leitor iniciante ou a leitora e ao leitor em duvidas sobre qual perspectiva se tem debrucado analise, facilitando, assim, posicionamentos conscientes e debates engajados e esclarecidos sobre a questao marxismo e direito. E comum dentro do marxismo juridico pesquisas tentarem conciliar o inconciliavel, isto e, tentarem conciliar visoes que, em verdade, sao excludentes. Isso ocorre devido a amplitude dos escritos existentes e a falta de sistematizacao desses trabalhos. Um trabalho introdutorio sobre o marxismo e tambem um resgate de parte de nossa historia de lutas e parte importante da historia do papel da universidade brasileira na conquista de direitos, alem de contar uma historia sobre nos mesmos: a historia da recepcao do marxismo pelo direito no Brasil.

2 Roberto Lyra Filho

O pensamento de Roberto Lyra Filho pode ser incluido dentro de uma categoria conhecida como "critica juridica". Esse grupo, constituido por eminentes pensadores juridicos, tais como, alem de Lyra Filho, Jose Geraldo de Souza Jr., Roberto Aguiar, Tarso Genro, Luiz Fernando Coelho, Luiz Alberto Warat, Ferraz Jr., mesmo que sustentasse relevantes posicionamentos comuns, como a percepcao de uma ideologia juridica dominante, o ensino juridico como manutencao do status quo e da injustica social, a defesa da democracia e a opcao pelos injusticados, nunca chegou a constituir uma escola de pensamento, isso porque seus membros possuiam abordagens diversas (WOLKMER, 2006, p. 89). O estudo critico do direito no Brasil tem enfoque principal nas decadas de 70, 80 e inicio dos anos 90. Com um amplo debate e abundantes publicacoes (WOLKMER, 2006, p. 89-92).

O trabalho de Lyra Filho, entretanto, e um divisor de aguas na historia do proprio direito brasileiro. Foi marcante principalmente no processo de redemocratizacao no Brasil. Ele influenciou e influencia pensadores, incluindo os anteriormente abordados, e estudantes. Possui tambem uma serie de pesquisas, em nivel de pos-graduacao, relacionadas ao estudo de suas obras, trabalho esse de fato importante.

Soares (2016) aponta que o pensamento de Lyra Filho, no seu percurso de consolidacao de uma ontologia marxista do direito, assenta-se sobre os pilares conceituais de tres pensadores marxistas, quais sejam, Lukacs, com a sua Ontologia do Ser Social, Bloch, com a sua obra Principio Esperanca e Gramsci, especialmente com seu conceito de ontologia da praxis, presente em seus Cadernos do Carcere. Soares ainda acrescenta, muito embora de maneira menos desenvolvida, a influencia do pluralismo juridico, de porte marxista e nao pos-moderno--como faz questao de enfatizar--de Boaventura de Sousa Santos. No entanto, alem dessas influencias mencionadas por Soares, ha que se mencionar outras de igual peso teorico na constituicao do original pensamento de Lyra Filho. Uma delas e a acao da Teoria Critica da Escola de Frankfurt, bem como do "insuspeito flerte com o hegelianismo" (2016, p. 324, grifo nosso) apenas citado, porem nao desenvolvido, no importante trabalho de Soares.

Em resumo, o presente trabalho identificou cinco grandes influencias na estrutura do pensamento e obra de Lyra Filho: Lukacs, Bloch, Gramsci, a Escola de Frankfurt e Hegel. No entanto, no pensamento de Lyra Filho--que converge para uma visao heterodoxa, de superveniencia e mesmo de necessidade do direito como principio organizador das relacoes sociais em todas as comunidades, socialistas ou nao--o substrato comum dessa miriade de pensadores e a leitura e a aplicacao da dialetica hegeliana, ou seja, todos os pensadores utilizados por Lyra Filho, e mesmo o proprio jusfilosofo carioca, partem da perspectiva de uma leitura hegeliana dos trabalhos de Marx ou, no mesmo sentido, partem de uma visao conhecida como marxismo hegeliano. O que, na parte final desta exposicao, mostrar-se-a nao ser mera coincidencia.

Nesse aspecto, a leitura de Lyra Filho de dialetica aposta na...

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