As Condições Gerais dos Contratos e as Cláusulas Abusivas em Portugal: Dos Males Diagnosticados aos Remédios Prescritos

AutorMário Frota
CargoFundador e presidente da APDC ? Associação Portuguesa de Direito do Consumo
Páginas123-152

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I Introdução

A problemática das condições gerais dos contratos e das cláusulas abusivas apostas, em Portugal, nos formulários em circulação no mercado de consumo para eventual adesão, entre outros, dos consumidores que intentem aceder a bens e serviços aí disponíveis, a despeito das soluções da lei editada em 25 de outubro de 1985 (DL 446/85) e adaptada à diretiva europeia de abril de 1993 (Diretiva 93/13, do Parlamento e do Conselho de Ministros), persiste em preocupar quantos têm em mira a higienização dos contratos-tipo e dos de adesão que enxameiam tanto o comércio internacional como o doméstico.

Há inúmeras situações que, por desviantes, merecem peculiares reflexões de quantos pugnam pelos interesses e direitos dos consumidores, aviltados pela plétora de cláusulas abusivas que, qual pecha de difícil erradicação, pululam pelos contratos de consumo celebrados um pouco por toda a parte.

Há hipóteses que mal se admite ocorram, mas que se volvem persistentemente no quotidiano, falecendo, ao que parece, meios para debelar os vícios que se instalam e tendem a perpetuar as manchas de ilicitude que se espraiam pelo sistema, inquinando-o.

Um sem número de reflexões se vêm tecendo, em manifestações promovidas pela sociedade científica em cujo seio nos movemos – a apDC –, um pouco por toda a parte, sempre que o ensejo o justifique.

Os poderes públicos, porém, dos quais depende a concretização em letra de forma das soluções aventadas e das propostas carreadas, guardam de Conrado o prudente silêncio, numa cumplicidade que representa autênticos crimes de lesa-cidadania perpetrados pelos poderes de que há que esperar envolvimento, empenhamento, compromisso e afirmação de distanciamento dos que atentam contra a certeza e a segurança do direito e se mancomunam para alcançar soluções manifestamente contrárias à transparência, à licitude e à celeridade requeridas.

João Alves, procurador da República nos juízos e varas cíveis de Lisboa1, por exemplo, afiança que há um preocupante quadro toldado de mediocridades, de insuficiências e imperfeições no que tange à perseguição das cláusulas abusivas apostas nos contratos em geral e nos de consumo, em particular, que importa de todo dissipar. Nos seus rasgos essenciais, eis as contundentes observações que com absoluta propriedade e indiscutível autoridade houve por bem formular:

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insuficiente formação das magistraturas no âmbito dos direitos coletivos;

deficiente acesso a bibliotecas de eleição de proximidade;
ausência de uniformidade na atuação do Ministério Público, o que não é de estranhar dada a inexistência de qualquer coordenação específica na área dos interesses coletivos;

– em termos de carreira profissional, o acesso a jurisdições ou funções especializadas a que não subjaz a experiência, a formação e as habilitações académicas adquiridas, mas predominantemente a classificação e a antiguidade, como critério de proscrever;

inexistência de bases de dados de apoio – o Boletim de Interesses Difusos que outrora se ensaiara como veículo de comunicação entre os magistrados do Ministério Público, por louvável iniciativa da Procuradoria-Geral da República, encontra-se inativo e o site de interesses difusos perdeu atualidade há um ror de anos;

– a existência de uma dada morosidade durante a fase de instrução prévia à instauração da ação inibitória – o MP não tem poderes que lhe permitam instruir, em caso de falta de colaboração de particulares, eventuais providências cautelares ou ações para defesa dos consumidores;

a morosidade na fase judicial das ações inibitórias, especialmente na primeira instância; por norma, são necessários quatro/cinco anos (primeira instância, Relação e Supremo) até ao trânsito em julgado da decisão;

o registo das cláusulas declaradas nulas, no nível da percepção e facilidade de consulta da página da internet do Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação, é muito deficiente.

Para além do quadro precedente, registe-se que, considerada pela, ao tempo, ministra da tutela, a professora Elisa Ferreira, em pleno Parlamento, em 15 de março de 1996, em defesa da Proposta de Lei de Proteção do Consumidor, instante a necessidade de se dotar o Instituto do Consumidor (em cujas atribuições sucedeu, no âmbito do PRACE, a Direção-Geral do Consumidor) de legitimidade processual ativa para poder instaurar ações inibitórias tendentes à repressão em juízo de práticas lesivas do estatuto do consumidor, a despeito de inúmeras situações de lesões em massa a exigir intervenção imediata, nem uma só ação inibitória, de 1996 a esta parte, Instituto e Direção-Geral propuseram em mais de 18 anos de vigência da lei. O que reflete bem o descaso a que as entidades oficiais votaram e votam este relevante segmento da tutela da posição jurídica do consumidor, na sua dimensão metaindividual ou transindividual.

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Cfr., mais recentemente, o flagrante caso dos formulários de adesão da CAIXADIRECTA, da Caixa geral de Depósitos, e do conflito entre Ministério Público e Direção-Geral do Consumidor a propósito da ação inibitória que à DGC cumpriria instaurar, sem que o houvesse feito, porém, em iniciativa que a apDC promovera, aliás, após análise das condições gerais pré-definidas em formulário em circulação no mercado e da detecção de inúmeras condições gerais incursas nas proibições da lei.

II Superação do statu quo: soluções propugnadas

Por forma a ultrapassar as entorses detectadas no dia a dia, a apDC, por nosso intermédio, na Conferência Regional realizada por ocasião do seu XXI aniversário, enunciou um conjunto de medidas e formulou propostas como resposta às exigências postuladas.

Ei-las, no plano funcional:

1. Formação dos auditores de justiça

Instante necessidade de prover à formação dos auditores de justiça, como à formação continuada dos magistrados judiciais e do Ministério Público, voltada para os direitos e interesses transindividuais, com a modelação dos mecanismos tanto materiais como processuais em vista de uma intervenção adequada ante a factualidade subsistente.

2. Bibliografia

Dotação de obras da especialidade a fundos bibliográficos adjacentes às estruturas judiciais de molde a tornarem-se acessíveis aos magistrados em exercício de funções.

3. Coordenação da atividade funcional dos magistrados do Ministério Público

Definição de uma metodologia adequada à coordenação da atividade dos magistrados do Ministério Público dispersos pelo território nacional de molde a conseguir-se uma uniformidade de critérios e procedimentos, que não a algo de desregrado, descompassado e desconexo.

4. Acesso à jurisdição e a funções especializadas

Acesso à jurisdição e a funções especializadas em conformidade com a formação, as habilitações específicas hauridas e a experiência dos magistrados

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do Ministério Público em cada dos domínios, que não em obediência a critérios outros porque deslocados.

5. Boletim de Interesses e Direitos Coletivos

Revivescência (recriação de um) Boletim de Interesses e Direitos Coletivos e reconfiguração do “sítio” dos Interesses e Direitos Coletivos (outrora Difusos), no seio do Ministério Público (Procuradoria-Geral da República), a fim de fornecer adequadas ferramentas a quantos se ocupam de domínios tais.

6. Outorga de distintas atribuições e competências ao Ministério Público

Reconfiguração dos meios processuais ao alcance do Ministério Público, enquanto titular de legitimidade processual ativa nos interesses individuais homogéneos, coletivos e difusos2de molde a contrabater a ausência manifesta de cooperação por parte dos demandados nas ações inibitórias previstas no artigo 25 da LCGC e a acelerar procedimentos.

III Propostas com vista a acelerar procedimentos
1. Legitimatio ad causam

PRIMEIRA: Que não há razões de base susceptíveis de justificar a incoincidência entre o rol de legitimados da LDC – Lei de Defesa do Consumidor e da LCGC – Lei das Condições Gerais dos Contratos: donde deverem os consumidores individuais, tanto os diretamente lesados, como os que o não houverem sido, poder instaurar ações inibitórias que por objeto tenham cláusulas abusivas, como sucede, aliás, em teoria, com a DGC – Direção-Geral do Consumidor, que figura na alínea c) do artigo 13 da LDC, que não no artigo 26 da LCGC.

Exposição de motivos

O artigo 26 da Lei das Condições Gerais dos Contratos (DL 446/85, de 25 de outubro, com as alterações decorrentes dos DL 220/95, de 31 de agosto (retificação 114-B/95, de 31 de agosto), DL 249/99, de 07 de julho e DL 323/2001, de 17 de dezembro) reza o seguinte:

“Artigo 26º

Legitimidade ativa
1 – A ação destinada a obter a condenação na abstenção do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais gerais só pode ser intentada:

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a) Por associações de defesa do consumidor dotadas de representatividade, no âmbito previsto na legislação respectiva;
b) Por associações sindicais, profissionais ou de interesses económicos legalmente constituídas, actuando no âmbito das suas atribuições;
c) Pelo Ministério Público, oficiosamente, por indicação do Provedor de
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