As Condições da Ação Coletiva

AutorIves Gandra Martins Filho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho. Mestre em Direito Público pela UnB e Professor dos Cursos de Pós-Graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS)
Páginas81-92

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No Processo Civil, são condições do exercício do direito de ação a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade ad causam das partes, e o interesse processual, sendo que a ausência de qualquer deles leva à extinção do processo sem julgamento do mérito, em face da carência de ação (CPC, art. 267, VI).

O Processo do Trabalho, por não possuir código próprio, senão as normas de caráter instrumental incluídas na CLT, lança mão das normas gerais de processo civil inscritas no CPC, que se torna fonte subsidiária do processo laboral, tanto individual quanto coletivo (CLT, arts. 763 e 769).

Assim, também o Processo Coletivo aproveita o arcabouço teórico do exercício do direito de ação, tal como desenvolvido no diploma instrumental civil, naquilo que a ação coletiva possui de semelhante com a ação no processo civil, isto é, quanto às normas de caráter estritamente processual, pois que, do ponto de vista do resultado de cada uma das espécies de processo, diferem essencialmente, pois a ação civil visa à aplicação da lei a um caso concreto, enquanto a ação coletiva trabalhista gera a elaboração de norma jurídica, aplicada às partes em litígio.

Passamos, pois, à análise das condições específicas do exercício do direito da ação coletiva.

1. Possibilidade jurídica do pedido e o dissídio de servidor público

Dispunha o Código Civil de 1916, em seu art. 75, que “a todo direito corresponde uma ação que o assegure’’, ou seja, a todo direito material sobre determinado bem que alguém possua corresponde um direito instrumental à tutela desse bem pelo Estado, caso seu detentor seja lesado. Trata-se, pois, do direito de ação: o direito à prestação jurisdicional do Estado, que se reservou o poder de compor os litígios surgidos na sociedade, quando as partes não chegam a um acordo.

Assim, a violação do direito material dá origem a outro direito: o de invocar a jurisdição do Estado. Dirige-se, pois, contra o Estado, que é o detentor do monopólio do uso da força, para fazer prevalecer o interesse juridicamente protegido pelo ordenamento legal.

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Para os romanos, ambos os direitos se confundiam, pois da evolução do jus civile baseado na Lei das XII Tábuas para o jus praetorium fundado nos editos dos pretores, não se previam mais direitos, senão ações que resguardassem pretensões. Ou seja, a previsão de que interesse deve prevalecer, quando há uma disputa em torno de um bem, e que constitui o cerne teleológico de um código civil, deixou de existir, passando-se à atividade pretoriana de encaminhamento procedimental de um litígio, para que fosse solvido por um árbitro eleito pelas partes, que agiria com seu sentido de justiça.

Tal prevalência do direito de ação sobre o direito material é, atualmente, característica dos sistemas da common law (anglo-americano), em que impera o princípio do “remedies precedes rights’’, isto é, a preocupação maior é com o processo (os “writs’’) do que com as soluções propriamente ditas. Daí a tradição do direito costumeiro nos países de origem inglesa, em que a escassez de leis escritas dá ao juiz uma maior liberdade e relevância para a adoção da solução que considerar justa.

Para a teoria civilista da ação, a unificação dos dois direitos (material e instrumental) fazia prevalecer o direito material como único existente: a ação seria mero elemento do direito material, com o qual se confundiria. Assim, a ação seria o próprio direito material se insurgindo, quando violado. Atualmente, no entanto, é pacífica a distinção de ambos os direitos, considerando-se a ação um poder jurídico de invocar a tutela jurisdicional do Estado.

Ora, a possibilidade jurídica do pedido formulado na ação diz respeito à previsão, no ordenamento jurídico do Estado, de proteção ao direito material pretendido pelo autor. Como, a cada direito corresponde uma ação que o assegure, não há necessidade de previsão expressa no Código de Processo de cada ação para cada direito, pois, implicitamente, a cada direito objetivo material violado corresponde uma ação.

No Processo Individual do Trabalho, por exemplo, todo e qualquer direito trabalhista previsto em lei, e que é violado, comporta o ajuizamento da ação genérica denominada reclamação. Já o Processo Civil é mais específico ao nominar uma série de ações, dando-lhes procedimentos próprios (ação de consignação em pagamento, ação de depósito, ação possessória, ação reivindicatória, ação de alimentos etc.).

No Processo Coletivo, a possibilidade jurídica do pedido não pode estar ligada à existência de previsão legal da pretensão do autor, materializada num direito objetivo ao bem em disputa, já que os dissídios coletivos é que criam o direito objetivo, instituindo norma jurídica nova, para disciplinar as relações laborais entre as partes em conflito.

Assim, a previsão antecipada do direito diz respeito ao direito instrumental, ou seja, ao próprio direito de ação coletiva, tal como garantido na Constituição Federal (CF, art. 114, § 2º) e disciplinado pela CLT (arts. 856-875).

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À primeira vista, tal adequação do conceito de possibilidade jurídica do pe-dido ao processo coletivo pareceria não ter efeitos práticos, de vez que a norma constitucional é ampla e genérica, abrangendo todas as categorias profissionais, o que implicaria inexistência de qualquer óbice à ação coletiva sob tal prisma, mas, na realidade, a referida condição da ação se reveste de especial importância no Processo Coletivo, se se atenta para o fato de que nem todas as categorias têm acesso ao dissídio coletivo.

Com efeito, a Carta Magna de 1988 concedeu ao servidor público o direito de sindicalização e o direito de greve (CF, art. 37, VI e VII), mas retirou-lhe, como categoria, o direito de firmar acordos e convenções coletivas (CF, art. 39, § 2º, conjugado com o art. 7º, XXVI). Com isso, no entender do Supremo Tribunal Federal, restou comprometido o direito do servidor público ajuizar dissídio coletivo, pois não se admite a hipótese de negociação coletiva entre a administração pública e seus servidores.

Ao julgar a ADIn 492-DF, o STF não apenas afastou da competência da Justiça do Trabalho a apreciação dos dissídios individuais e coletivos dos servidores públicos federais, cujo regime unificado, de cunho estatutário, passou a ser regido pela Lei n. 8.112/1990, mas também deixou claro que o Judiciário Trabalhista carece de competência normativa para todo e qualquer dissídio coletivo instaurado por servidor público, celetista ou estatutário, federal, estadual ou municipal, de vez que não podem as Cortes Laborais criar novas normas e condições de trabalho a serem impostas sobre entes públicos.

Seguindo nessa esteira, o TST tem assentado não usufruir a Justiça do Trabalho de competência normativa em relação a dissídios coletivos de servidores públicos, quer sejam estaduais1, municipais2, autárquicos3 ou fundacionais4. Assim, foi editada a Orientação Jurisprudencial n. 5 da SDC, destacando a impossibilidade jurídica do dissídio coletivo contra pessoa jurídica de direito público.

Isto porque, em se tratando de dissídio coletivo de natureza econômica, a sentença terá natureza impositiva, majorando salários e instituindo outras vantagens econômicas que a Constituição estabelece só poderem ser concedidas aos servidores públicos mediante lei (CF, art. 61, § 1º, II, a). Assim, não pode o Judiciário Trabalhista exercer seu poder normativo em matéria reservada à lei.

Ademais, em se tratando de entes públicos, a Constituição veda a realização de despesas fora daquelas previstas no orçamento (CF, art. 167, II), o que impede a concessão, pelo Judiciário, de majoração salarial aos servidores públicos, pois a mesma não estaria prevista na correspondente lei orçamentária. Sob tal prisma, sequer o servidor público celetista, estadual ou municipal, alcança ver seu salário

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aumentado ou reajustado mediante dissídio coletivo, de vez que sendo a ação coletiva intentada contra a administração pública, haverá a impossibilidade jurídica do pedido56. Apenas nos casos de dissídios coletivos de natureza jurídica, ou dissídios de greve visando ao cumprimento da legislação salarial vigente, é que o conflito comportaria o ajuizamento da ação coletiva.

No rol das entidades contra as quais não se pode ajuizar dissídio coletivo se enquadram os Conselhos Regionais de Fiscalização Profissional, em face de sua personalidade jurídica de direito público, considerados que são como autarquias federais. Assim, o pleito de instituição de cláusulas econômicas em dissídio cole-tivo ressente-se da possibilidade jurídica, visto que as entidades de direito público só podem conceder aumento de remuneração ao seu pessoal mediante autorização de lei específica, prévia dotação orçamentária e observância dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal.7Outras hipóteses de impossibilidade jurídica do pedido em dissídio coletivo seriam:
a) dissídio coletivo de natureza jurídica postulando interpretação de norma legal de caráter geral, já que o TST não o admite (RITST, art. 313, II);
b) fixação de condições menos benéficas do que as previstas em lei, quando frustrada a negociação coletiva em relação às matérias em que a Constituição Federal admite a flexibilização, ou seja, redução salarial e ampliação da jornada de trabalho (CF, art. 7º, VI, XIII e XIV)8; e

c) estabelecimento, para empregados de entidades sindicais, de condições de trabalho distintas daquelas às quais estão sujeitos os integrantes da categoria representada pelos seus empregadores (Orientação Jurisprudencial n. 37 da SDC).

2. Legitimação “ad causam’’: autorização da assembleia geral

A legitimação como condição da ação consiste na titularidade do direito material que se postula. É a “legitimação ad causam’’, que se diferencia da legitimação como pressuposto...

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